Thursday, 22 April 2021

Thursday's Serial: "O Guarani" by José de Alencar (in Portuguese) - XIV

Capítulo X: Na Brecha

Quando Peri entrou no quarto de Cecília, Loredano passeava do outro lado da esplanada, em frente do alpendre.

O italiano refletia sobre os acontecimentos que haviam passado nos últimos dias, sobre as vicissitudes que correra a sua vida e a sua fortuna.

Por diferentes vezes tinha posto o pé sobre o túmulo; tinha tocado a sua última hora; e a morte fugira dele, e o respeitara. Também por diferentes vezes havia encarado a felicidade, o poder, a fortuna; e tudo se esvaecera como um sonho.

Quando à frente dos aventureiros revoltados ia atacar a D. Antônio de Mariz que não lhe podia resistir, os Aimorés tinham aparecido de repente e mudado a face das coisas.

A necessidade da defesa contra o inimigo comum trouxe uma suspensão de hostilidades; acima da ambição estava o instinto da vida e da conservação. A luta de interesses e de ódios cedeu à grande luta das raças inimigas.

Por isso no primeiro ataque dos selvagens, todos por um movimento espontâneo trataram de repelir o inimigo, e de salvar a casa da ruína que a ameaçava. Depois separaram-se de novo, e sempre observando-se, sempre prontos a defenderem-se um do outro, os dois grupos continuaram a repelir os índios com a maior coragem.

No meio disto porém Loredano que se constituíra o chefe da revolta, não abandonava o seu projeto de apoderar-se de Cecília e vingar-se de D. Antônio de Mariz e de Álvaro.

Seu espírito tenaz trabalhava incessantemente procurando o meio de chegar àquele resultado; atacar abertamente o fidalgo era uma loucura que não podia cometer. A menor luta que houvesse entre eles, entregava-os todos aos selvagens, que excitados pela vingança e pelos seus instintos sanguinários e ferozes, atacavam o edifício sem repouso e sem descanso.

A única barreira que continha os Aimorés era a posição inexpugnável da casa, assentada sobre um rochedo, apenas acessível por um ponto, pela escada de pedra que descrevemos no primeiro capitulo desta história.

Esta escada era defendida por D. Antônio de Mariz e pelos seus homens; a ponte de madeira tinha sido destruída; mas apesar disso os selvagens a substituiriam facilmente se não fosse a resistência desesperada que o fidalgo opunha aos seus ataques.

Desde o momento pois, que impelido pelo seu amor, D. Antônio corresse em defesa de sua família e abandonasse a escada, os duzentos guerreiros Aimorés se precipitariam sobre a casa, e não havia coragem que lhes pudesse resistir.

O italiano que compreendia isto, estava bem longe de tentar o menor ataque a peito descoberto; a prudência o aconselhava então como o tinha aconselhado no dia do primeiro assalto.

O que ele procurava era um meio de, sem estrépito, sem luta, imprevistamente, fazer morrer D. Antônio de Mariz, Peri, Álvaro e Aires Gomes; feito isto os outros se reuniriam a ele pela necessidade da defesa e pelo instinto da conservação.

Tornar-se-ia então senhor da casa; ou repelia os índios, salvava Cecília e realizava todos os seus sonhos de amor e de felicidade; ou morria tendo ao menos esgotado até ao meio a taça do prazer que seus lábios nem sequer haviam tocado.

Era impossível que esse espírito satânico, fixando-se em uma idéia durante três dias, não tivesse conseguido achar um meio para a consumação desse novo crime que planejara.

Não só o tinha achado, mas já havia começado a pô-lo em prática; tudo o protegia, até mesmo o inimigo que o deixava em repouso, atacando unicamente o lado da casa protegido por D. Antônio de Mariz.

Passeava pois embalando-se de novo nas suas esperanças, quando Martim Vaz, saindo do alpendre, chegou-se a ele.

— Uma com que não contávamos!... disse o aventureiro.

— O quê? perguntou o italiano com vivacidade.

— Uma porta fechada.

— Abre-se!

— Não com essa facilidade.

— Veremos.

— Está pregada por dentro.

— Terão pressentido?...

— Foi a idéia que já tive.

Loredano fez um gesto de desespero.

— Vem!

Os dois encaminharam-se para o alpendre, onde dormiam os aventureiros armados, prontos ao menor sinal de ataque.

O italiano acordou João Feio, e por precaução mandou-o fazer a guarda na esplanada, apesar de não haver receio que os selvagens atacassem do seu lado. O aventureiro, ainda tonto de sono, ergueu-se e saiu.

Loredano e seu companheiro caminharam para uma sala interior que servia de cozinha e despensa a esta parte da casa. Quando iam entrar, a luz que o aventureiro levava na mão para esclarecer o caminho, apagou-se de repente.

— Sois um desazado! disse Loredano contrariado.

— E tenho eu culpa! Queixai-vos do vento.

— Bom! não gasteis o tempo em palavras! Tirai fogo.

O aventureiro voltou a procurar o seu fuzil.

Loredano ficou em pé na porta à espera que o seu companheiro voltasse; e pareceu-lhe ouvir perto dele a respiração de um homem. Aplicou o ouvido para certificar-se; e por segurança tirou o seu punhal e colocou-se no centro da porta, para impedir a saída de quem quer que fosse.

Não ouviu mais nada; porém sentiu de repente um corpo frio e gelado que tocou-lhe a fronte; o italiano recuou, e brandindo a sua faca deu um golpe às escuras.

Pareceu-lhe que tinha tocado alguma coisa; entretanto tudo conservou-se no mais profundo silêncio.

O aventureiro voltou trazendo a luz.

— É singular, disse ele; o vento pode apagar uma candeia, mas não lhe tira o pavio.

— O vento, dizeis. Acaso o vento tem sangue?

— Que quereis dizer?

— Que o vento que apagou a vela é o mesmo que deixou o seu sinal neste ferro.

E Loredano mostrou ao aventureiro a sua faca, cuja ponta estava tinta de sangue ainda liquido.

— Há aqui então um inimigo?...

— Decerto; os amigos não precisam ocultar-se.

Nisto ouviram um rumor no telhado, e um morcego passou agitando lentamente as grandes asas: estava ferido.

— Eis o inimigo!... exclamou Martim rindo-se.

— É verdade, respondeu Loredano no mesmo tom; confesso que já tive medo de um morcego.

Tranqüilos a respeito do incidente que os havia demorado, os dois entraram na cozinha, e daí por uma brecha estreita praticada na parede penetraram no interior da casa há pouco habitada por D. Antônio de Mariz e sua família.

Atravessaram parte do edifício e chegaram a uma varanda que tocava de um lado com o quarto de Cecília e do outro com o oratório e o gabinete de armas do fidalgo.

Aí o aventureiro parou; e mostrando a Loredano a porta adufada de jacarandá, que dava entrada para o gabinete, disse-lhe:

— Não é com duas razões que a deitaremos dentro!

Loredano aproximou-se e reconheceu que a solidez e fortaleza da porta não lhe permitia a menor violência: todo o seu plano estava destruído.

 

Contava durante a noite se introduzir furtivamente na sala, e assassinar a D. Antônio de Mariz, Aires Gomes e Álvaro antes que eles pudessem ser socorridos por seus companheiros, consumado o crime, estava senhor da casa.

Como remover o obstáculo que lhe aparecia? A menor violência contra a porta despertaria a atenção de D. Antônio de Mariz e inutilizaria todo o seu projeto.

Enquanto refletia nisso, os seus olhos caíram sobre uma estreita fresta que havia no alto da parede do oratório, e que servia mais para dar ar do que luz.

Por esta abertura o italiano conheceu que aquela parte da parede era singela, e feita de um só tijolo; com efeito o oratório tinha sido outrora um corredor largo que ia da varanda à sala, e que fora separado por uma ligeira divisão.

Loredano mediu a parede de alto a baixo, e acenou ao seu companheiro.

— É por aqui que havemos de entrar, disse ele apontando para a parede.

— Como? A menos de não ser um mosquito para passar por aquela fresta!

— Esta parede assenta sobre uma viga; tirada ela, está aberto o caminho!

— Entendo.

— Antes que possam tomar a si do susto, teremos acabado.

O aventureiro quebrou com a ponta da faca o reboco da parede e descobriu a viga que lhe servia de alicerce.

— Então?

— Não há dúvida. Daqui a duas horas dou-vos isto pronto.

Martim Vaz, depois da morte de Rui Soeiro e Bento Simões, tinha-se tornado o braço direito de Loredano; era o único a quem o italiano confiara o seu segredo, oculto para os outros em quem receava ainda a influência de D. Antônio de Mariz.

O italiano deixou o aventureiro no seu trabalho e voltou pelo mesmo caminho; chegando à cozinha, sentiu-se sufocado por uma fumaça espessa que enchia todo o alpendre. Os aventureiros acordados de repente blasfemavam conta o autor de semelhante lembrança.

Quando Loredano no meio deles procurava indagar a causa do que sucedia, João Feio apareceu na entrada do alpendre.

Havia na sua fisionomia uma expressão terrível de cólera e ao mesmo tempo de espanto; de um salto aproximou-se do italiano e chegando-lhe a boca ao ouvido disse:

— Renegado e sacrílego, dou-te uma hora para ires entregar-te a D. Antônio de Mariz, e obter dele o nosso perdão e o teu castigo. Se o não fizeres dentro desse tempo, é comigo que te hás de avir.

O italiano fez um movimento de raiva; mas conteve-se:

— Amigo, o sereno transtornou-vos o juízo; ide deitar-vos. Boa noite, ou antes bom dia!

A alvorada despontava no horizonte.

 

 

Capítulo XI: O Frade

Saindo do quarto de Cecília Peri tomara pelo corredor que comunicava com o interior do edifício.

O índio, a cuja perspicácia nada escapava do que se passava no interior da casa, por mais insignificante que fosse, havia percebido o plano de Loredano desde a primeira pancada dada para a abertura da brecha.

Na véspera o som do ferro na parede tinha ido despertar a sua atenção na sala onde ele repousava um momento, deitado aos pés do leito de sua senhora; seu ouvido fino e delicado auscultara o seio da terra. Levantou-se de salto, e atravessando todo o edifício chegou, guiado pelas pancadas, ao lugar onde Loredano e o aventureiro começavam a abrir uma fenda no muro.

Em vez de atemorizar-se com esta nova audácia do italiano, o índio sorriu-se; a brecha que praticava seria a sua perdição, por que ia dar fácil passagem a ele, Peri.

Contentou-se pois em examinar todas as portas que comunicavam com a sala e pregá-las por dentro; seria um novo obstáculo que demoraria os aventureiros, e lhe daria tempo de sobra para exterminá-los.

Foi por isso que do quarto de Cecília cuja porta fechou sobre, caminhou direito à brecha e por ela penetrou na despensa dos aventureiros.

Era uma sala bastante espaçosa, onde havia uma mesa, algumas talhas e uma grande quartola de vinho; o índio mesmo às escuras chegou-se a cada um desses vasos; e por alguns instantes ouviu-se o fraco vascolejar do liquido que eles continham.

Então Peri viu uma luz que se aproximava; era Loredano e o seu companheiro.

A vista do italiano lhe gelou o sangue no coração. Tal ódio votava a esse homem abjeto e vil, que teve medo de si, medo de o matar. Isso fora agora uma imprudência; pois inutilizaria todo o seu plano.

Muita vez depois da noite em que Loredano penetrara na alcova de Cecília, Peri tivera ímpetos de ir vingar a injúria feita a sua senhora no sangue do italiano, para quem pensava que uma morte não era bastante punição.

Mas lembrava-se que não se pertencia; que precisava da vida para consumar sua obra salvando Cecília de tantos inimigos que a cercavam. E recalcava a vingança no fundo do coração.

Fez o mesmo então: cosido com a parede conseguiu apagar a vela. Ia sair, quando sentiu que o italiano tomava a porta.

Hesitou.

Podia lançar-se sobre Loredano e subjugá-lo; mas isso produziria uma luta e denuncia ria a sua presença; era preciso que fugisse sem que restasse um só vestígio de sua passagem; a mais leve suspeita faria abortar o seu plano.

Teve uma idéia feliz: ergueu a mão molhada e tocou o rosto do italiano; enquanto este recuava para atirar a punhalada às escuras, o índio resvalou entre ele e a porta.

A faca de Loredano tinha-lhe ferido o braço esquerdo; não soltou porém nem um gemido, não fez um movimento que o traísse; ganhou o fundo do alpendre antes que o aventureiro voltasse com a luz.

Mas Peri não estava contente; o seu sangue ia denunciá-lo; não lhe convinha de modo algum que o italiano suspeitasse que ele ali tinha estado.

Os morcegos que esvoaçavam espantados pelo teto do alpendre lembraram-lhe um excelente expediente; agarrou o primeiro que lhe passou ao alcance do braço, e abrindo-lhe uma cesura com a faca, soltou-o.

Ele sabia que o vampiro procuraria a luz, e iria esvoaçar em torno dos dois aventureiros; contava que as gotas de sangue que caiam de sua asa ferida os enganaria; a realidade correspondeu às suas previsões.

Apenas Loredano desapareceu, Peri continuou a execução do seu plano; chegou-se a um canto do alpendre onde havia um resto de fogo encoberto pela cinza, e atirou sobre ele alguma roupa dos aventureiros que ai estava a enxugar.

 

Este incidente, por insignificante que pareça, entrava nos planos de Peri; a roupa queimando-se devia encher a casa de fumaça, acordar os aventureiros e excitar-lhes a sede. Era justamente o que desejava o índio.

Satisfeito do resultado que obtivera, Peri atravessou a esplanada; ai porém foi obrigado a recuar, surpreendido do que via.

Um homem do lado de D. Antônio de Mariz e um aventureiro revoltado conversavam através da estacada que dividia esses dois campos inimigos; havia realmente motivo para que o índio se admirasse.

Não só isso era contra a ordem expressa de D. Antônio de Mariz, que proibira qualquer relação entre os seus homens e os revoltados, como contrariava o plano de Loredano, que temia ainda o respeito e o hábito de obediência que os aventureiros tinham para com o fidalgo.

O que se tinha passado antes, explicava esse acontecimento extraordinário.

O aventureiro a quem Loredano mandara rondar a esplanada, enquanto ele entrava, tinha começado o seu giro de uma ponta à outra do pátio.

Sempre que chegava junto da estacada, notava que do outro lado um homem se aproximava como ele, voltava, e se alongava pela beira da esplanada; adivinhou facilmente que era também uma sentinela.

João Feio era um franco e jovial companheiro, e não podia suportar o tédio de um passeio alta noite, no meio de um sono interrompido, sem uma pinga para beber, sem um camarada para conversar, sem uma distração enfim.

Para maior desprazer, uma das vezes que se aproximava da estacada, sentiu uma baforada de tabaco, e viu que o seu companheiro de guarda fumava.

Levou a mão ao bolso das bragas, e achou algumas folhas de fumo, mas não trazia o seu cachimbo; ficou desesperado, e decidiu dirigir-se ao outro.

— Olá, amigo! também fazeis a vossa guarda?

O homem voltou-se, e continuou o seu caminho sem dar resposta.

No segundo giro o aventureiro atirou segunda isca.

— Felizmente o dia não tarda a raiar; não vos parece?

O mesmo silêncio que a primeira vez; o aventureiro contudo não desanimou, e na terceira volta retrucou:

— Somos inimigos, camarada; mas isso não impede a um homem cortês de responder quando outro lhe fala.

Desta vez o silencioso sentinela voltou-se de todo:

— Antes da cortesia está a nossa santa religião, que manda a todo cristão não falar a um herege, a um réprobo, a um fariseu.

— Que é lá isso? Falais sério, ou quereis fazer-me enraivar por nonadas?

— Falo-vos sério, como se estivesse diante do nosso Santo Redentor confessando as minhas culpas.

— Pois então, digo-vos que mentis! Porque tão bom podeis ser, porém melhor crente que eu não o é outrem.

— Tendes a língua um pouco longa, amigo. Mas Belzebu vos fará as contas, que não eu: perderia a minha alma se tocasse o corpo de endemoninhados!

— Por São João Batista, meu patrão, não me façais saltar esta estacada para perguntar-vos a razão por que tratais em ar de mofa a devoção dos mais. Chamai-nos rebeldes, mas hereges não.

— E como quereis então que chame os companheiros de um frade sacrílego, maldito, que abjurou dos seus votos, e atirou o seu hábito as urtigas?

— Um frade! Dissestes vós?

— Sim, um frade. Não o sabíeis?

— O quê? De que frade falais vós?

— Do italiano, bofé!

— Ele!...

O homem, que não era outro senão o nosso antigo conhecido mestre Nunes, contou então, exagerando com o fervor de seus sentimentos religiosos, aquilo que sabia da história de Loredano.

O aventureiro horrorizado, tremendo de raiva, não deixou mestre Nunes acabar a sua história e lançou-se para o alpendre, onde viu-se a ameaça que fez ao italiano.

Quando eles se separaram, Peri saltou por cima da estacada, e dirigiu-se para o quarto que há pouco tinha deixado.

O dia vinha então rompendo; os primeiros raios do sol iluminavam já o campo dos Aimorés, assentado sobre a várzea à margem do rio. Os selvagens irritados olhavam de longe a casa, fazendo gestos de raiva por não poderem vencer a barreira de pedra que defendia o inimigo.

Peri olhou um momento aqueles homens de estatura gigantesca, de aspecto horrível, aqueles duzentos guerreiros de força prodigiosa, ferozes como tigres.

O índio murmurou:

— Hoje cairão todos como a árvore da floresta, para não se erguerem mais.

Sentou-se no vão da janela, e encostando a cabeça sobre a curva do braço, começou a refletir.

A obra gigantesca que empreendera, obra que parecia exceder todo o poder do homem, estava prestes a realizar-se; já tinha levado ao cabo metade dela, faltava a conclusão, a parte a mais difícil e a mais delicada.

Antes de lançar-se, Peri queria prever tudo; fixar bem no seu espírito as menores circunstâncias; traçar a sua linha invariável a fim de marchar firme, direito, infalível ao alvo a que visava; a fim de que a menor hesitação não pusesse em risco o efeito do seu plano.

Seu espírito percorreu em alguns segundos um mundo de pensamentos; guiado pelo seu instinto maravilhoso e pelo seu nobre coração, formulou num rápido instante um grande e terrível drama, do qual devia ser o herói; drama sublime de heroísmo e dedicação, que para ele era apenas o cumprimento de um dever e a satisfação de um desejo.

As almas grandes têm esse privilégio; suas ações, que nos outros inspiram a admiração, se aniquilam em face dessa nobreza inata do coração superior, para o qual tudo é natural e possível

Quando Peri ergueu a cabeça, estava radiante de felicidade e orgulho; felicidade por salvar sua senhora; orgulho pela consciência de que ele só bastava para fazer o que cinqüenta homens não fariam; o que o próprio pai, o amante, não conseguiriam nunca.

Não duvidava mais do resultado: via nos acontecimentos futuros como no espaço que se estendia diante dele, e no qual nem um objeto escapava ao seu olhar límpido; tanto quanto é possível ao homem, ele tinha a certeza e a convicção de que Cecília estava salva.

Cobriu o peito e as costas com uma pele de cobra que ligou estreitamente ao corpo; vestiu por cima o seu saiote de algodão; experimentou os músculos dos braços e das pernas; e sentindo-se forte, ágil e flexível, saiu inerme.

 

 

Capítulo XII: Desobediência

Álvaro, recostado da parte de fora a uma das janelas da casa, pensava em Isabel.

Sua alma lutava ainda, mas já sem força, contra o amor ardente e profundo que o dominava; procurava iludir-se, mas a sua razão não o permitia.

Conhecia que amava Isabel, e que a amava como nunca tinha amado Cecília; a afeição calma e serena de outrora fora substituída pela paixão abrasadora.

Seu nobre coração revoltava-se contra essa verdade; mas a vontade era impotente contra o amor; não podia mais arrancá-lo do seu seio; não o desejava mesmo.

Álvaro sofria; o que dissera na véspera a Isabel era realmente o que sentia; não se exagerara; no dia em que deixasse de amar Cecília e fosse infiel à promessa feita a D. Antônio, se condenaria como um homem sem honra e sem lealdade.

Consolava-o a idéia de que a situação em que se achavam não podia durar muito; pouco tardava que exaustos, enfraquecidos, sucumbissem à força dos inimigos que os atacavam.

Então nos momentos extremos, à borda do túmulo, quando a morte o tivesse já desligado da terra, poderia com o último suspiro balbuciar a primeira palavra do seu amor: poderia confessar a Isabel que a amava.

Até então lutaria.

Nisto Peri chegou-se e tocou-lhe no ombro:

— Peri parte.

— Para onde?

— Para longe.

— Que vais fazer?

O índio hesitou:

— Procurar socorro.

Álvaro sorriu-se com incredulidade.

— Tu duvidas?

— De ti não, mas do socorro.

— Escuta; se Peri não voltar, tu farás enterrar as suas armas.

— Podes ir tranqüilo: eu te prometo.

— Outra coisa.

— O que é?

O índio hesitou de novo:

— Se tu vires a cabeça de Peri desligada do corpo, enterra-a com as suas armas.

— Por que este pedido? A que vem semelhante lembrança?

— Peri vai passar pelo meio dos selvagens, e pode morrer. Tu és guerreiro; e sabes que a vida é como a palmeira: murcha quando tudo reverdece.

— Tens razão. Farei tudo quanto pedes; mas espero ver-te ainda.

O índio sorriu.

— Ama a senhora, disse ele estendendo a mão ao moço.

O seu adeus era uma última prece pela felicidade de Cecília.

Peri entrou na sala onde se achava reunida a família.

Todos dormiam; só D. Antônio de Mariz velava sempre apesar da velhice; sua vontade poderosa cobrava novas forças e reanimava o corpo gasto pelos anos. Não lhe restava senão uma esperança; a de morrer rodeado dos entes que amava, cercado de sua família, como um fidalgo português devia morrer; com honra e coragem.

O índio atravessou a sala e colocando-se junto do sofá em que Cecília adormecida repousava, contemplou-a um instante com um sentimento de profunda melancolia.

Dir-se-ia que nesse olhar ardente fazia uma última e solene despedida; que partindo-se, o escravo fiel e dedicado queria deixar a sua alma enleada naquela imagem, que representava a sua divindade na terra.

Que sublime linguagem não falavam aqueles olhos inteligentes, animados por um brilhante reflexo de amor e de fidelidade? Que epopéia de sentimento e de abnegação não havia naquela muda e respeitosa contemplação?

Por fim Peri fez um esforço supremo, e a custo conseguiu quebrar o encanto que o prendia, e o conservava imóvel, como uma estátua, diante da linda menina adormecida. Reclinou sobre o sofá e beijou respeitosamente a fimbria do vestido de Cecília; quando ergueu-se, uma lágrima triste e silenciosa que deslizava pela sua face, caiu sobre a mão da menina.

Cecília, sentindo aquela gota ardente, entreabriu os olhos; mas Peri não viu esse movimento, porque já se tinha voltado e aproximava-se de D. Antônio de Mariz.

O fidalgo sentado na sua poltrona recebeu-o com um sorriso pungente.

— Tu sofres? perguntou o índio.

— Por eles, por ela especialmente, por minha Cecília.

— Por ti não? disse Peri com intenção.

— Por mim? Daria a minha vida para salvá-la; e morreria feliz!

— Ainda que ela te pedisse que vivesses?

— Embora me suplicasse de joelhos.

O índio sentiu-se aliviado como de um remorso.

— Peri te pede uma coisa.

— Fala!

— Peri quer beijar a tua mão.

D. Antônio de Mariz tirou o seu guante, e sem compreender a razão do pedido do índio, estendeu-lhe a mão.

— Tu dirás a Cecília que Peri partiu; que foi longe; não deves contar-lhe a verdade: ela sofrerá. Adeus; Peri sente te deixar; mas é preciso.

Enquanto o índio proferia estas palavras em voz baixa e inclinado ao ouvido do fidalgo, este surpreendido procurava ligar-lhes um sentido que lhe parecia vago e confuso:

— Que pretendes tu fazer, Peri? perguntou D. Antônio.

— O mesmo que tu querias fazer para salvar a senhora.

— Morrer!... exclamou o fidalgo.

Peri levou o dedo aos lábios recomendando silêncio; mas era tarde; um grito partido do canto da sala fê-lo estremecer.

Voltando-se viu Cecília, que ao ouvir a última palavra de seu pai quisera correr para ele, e caíra de joelhos, sem força para dar um passo. A menina com as mãos estendidas e suplicantes parecia pedir a seu pai que evitasse aquele sacrifício heróico, e salvasse a Peri de uma morte voluntária.

O fidalgo a compreendeu:

— Não, Peri; eu, D. Antônio de Mariz, não consentirei nunca em semelhante coisa. Se a morte de alguém pudesse trazer a salvação de minha Cecília e de minha família, era a mim que competia o sacrifício. E por Deus e pela minha honra o juro, que a ninguém o cederia; quem quisesse roubar-me esse direito me faria um insulto cruel.

Peri volvia os olhos de sua senhora aflita e suplicante para o fidalgo severo e rígido no cumprimento de seu dever; temia aquelas duas oposições diferentes, mas que tinham ambas um grande poder sobre a sua alma.

Podia o escravo resistir a uma súplica de sua senhora e causar-lhe uma mágoa, quando toda a sua vida fora destinada a fazê-la alegre e feliz? Podia o amigo ofender a D. Antônio de Mariz, a quem respeitava, praticando uma ação que o fidalgo considerava como uma injúria feita à sua honra?

Peri teve um momento de alucinação, em que pareceu-lhe que o coração lhe estacava no peito, e a vida lhe fugia, e a cabeça se despedaçava com a pressão violenta das idéias que tumultuavam no cérebro.

No rápido instante que durou a vertigem, ele viu girarem rapidamente em torno de si as figuras sinistras dos Aimorés que ameaçavam a vida preciosa daqueles a quem mais amava no mundo. Viu Cecília suplicando, não a ele, mas ao inimigo feroz e sanguinário, prestes a manchá-la com as mãos impuras; viu a bela e nobre cabeça do velho fidalgo rojar mutilada com os alvos cabelos tintos de sangue.

O índio horrorizado com estas imagens lúgubres que lhe desenhava a sua imaginação em delírio, apertou a cabeça entre as mãos, como para arrancá-la daquela febre.

— Peri!... balbuciava Cecília; tua senhora te pede!...

— Morreremos todos juntos, amigo, quando chegar o momento, dizia D. Antônio de Mariz.

Peri levantou a cabeça, e lançou sobre a menina e o fidalgo um olhar alucinado:

— Não!... exclamou ele.

Cecília ergueu-se com um movimento instantâneo; de pé e pálida; soberba de cólera e indignação, a gentil e graciosa menina de outrora se tinha de repente transformado numa rainha imperiosa.

Sua bela fronte alva resplandecia com um assomo de orgulho; seus olhos azuis tinham desses reflexos fulvos que iluminam as nuvens no meio da tormenta; seus lábios trêmulos e ligeiramente arqueados pareciam reter a palavra para deixá-la cair com toda a sua força. Atirando a cabecinha loura sobre o ombro esquerdo com um gesto de energia, ela estendeu a mão para Peri:

— Proíbo-te que saias desta casa!...

O índio julgou que ia enlouquecer; quis lançar-se aos pés de sua senhora, mas recuou anelante, opresso e sufocado. Um canto, ou antes uma celeuma dos selvagens soava ao longe.

Peri deu um passo para a porta; D. Antônio o reteve:

— Tua senhora, disse o fidalgo friamente, acaba de te dar uma ordem; tu a cumprirás. Tranqüiliza-te, minha filha; Peri é meu prisioneiro.

Ouvindo esta palavra que destruía todas as suas esperanças, que o impossibilitava de salvar sua senhora, o índio retraindo-se deu um salto, e caiu no meio da sala.

— Peri é livre!... gritou ele fora de si; Peri não obedece a ninguém mais; fará o que lhe manda o coração.

Enquanto D. Antônio de Mariz e Cecília, admirados desse primeiro ato de desobediência, olhavam espantados o índio de pé no meio do vasto aposento, ele lançou-se a um cabide de armas, e empunhando um pesado montante como se fora uma ligeira espada, correu à janela e saltou.

— Perdoa a Peri, senhora!

Cecília soltou um grito e precipitou-se para a janela. Não viu mais Peri.

Álvaro e os aventureiros, de pé sobre a esplanada, tinham os olhos fitos sobre a árvore que se elevava a um lado da casa, na encosta oposta, e cuja folhagem ainda se agitava.

Longe descortinava-se o campo dos Aimorés; a brisa que passava trazia o rumor confuso das vozes e gritos dos selvagens.