Thursday, 13 May 2021

Thursday's Serial: "O Guarani" by José de Alencar (in Portuguese) - XVII

Capítulo IV: Revelação

Apenas Álvaro, com a chegada dos seus companheiros, viu-se livre dos inimigos que o atacavam, voltou a Peri, que assistia imóvel a toda esta cena.

— Vinde! disse o moço com autoridade.

— Não! respondeu o índio friamente.

— Tua senhora te chama!

Peri abaixou a cabeça com uma profunda tristeza.

— Dize à senhora que Peri deve morrer; que vai morrer por ela. E tu parte, porque senão seria tarde.

Álvaro olhou a fisionomia inteligente do índio para ver se descobria nela algum sinal de perturbação de espírito; porque o moço não compreendia, nem podia compreender a causa dessa obstinação insensata.

O rosto de Peri, calmo e sereno, não lhe deixou ver senão uma resolução firme, inabalável, tanto mais profunda quanto se mostrava sob uma aparência de sossego e tranqüilidade.

— Assim, tu não obedeces à tua senhora?

Peri custou a arrancar a palavra dos lábios.

— A ninguém.

Quando pronunciava esta palavra, um grito fraco soou ao lado dele; voltando-se viu a índia que lhe haviam destinado por esposa caindo atravessada por uma flecha. O tiro fora destinado a Peri por um dos selvagens; e a menina lançando-se para cobrir o corpo daquele que amara uma hora, recebera a seta no peito.

Seus olhos negros, desmaiados pelas sombras da morte, volveram a Peri um último olhar; e cerrando tornaram a abrir-se já sem vida e sem brilho. Peri sentiu um movimento de piedade e simpatia vendo essa vitima de sua dedicação, que como ele sacrificava sem hesitar a sua existência para salvar aquele a quem amava.

Álvaro nem se apercebeu do que acabava de passar; lançando um olhar para seus homens que batiam-se valentemente com os Aimorés fez um aceno a Aires Gomes.

— Escuta, Peri; tu sabes se costumo cumprir a minha palavra; jurei a Cecília levar-te; e ou tu me acompanhas, ou morreremos todos neste lagar.

— Faze o que quiseres! Peri não sairá daqui.

— Vês estes homens?... são os únicos defensores que restam à tua senhora; se todos eles morrem, bem sabes que é impossível que ela se salve.

Peri estremeceu. Ficou um momento pensativo; depois sem dar tempo a que o seguissem, lançou-se entre as árvores.

D. Antônio de Mariz e sua família, tendo ouvido os tiros de arcabuzes, esperavam com ansiedade o resultado da expedição.

Dez minutos haviam decorrido na maior impaciência, quando sentiram tocar na porta e ouviram a voz de Peri; Cecília correu, e o índio ajoelhou-se a seus pés pedindo-lhe perdão. O fidalgo, livre do pesar de perder um amigo, assumira a sua costumada severidade, como sempre que se tratava de uma falta grave.

— Cometeste uma grande imprudência, disse ele ao índio; fizeste sofrer teus amigos; expuseste a vida daqueles que te amam; não precisas de outra punição além desta.

— Peri ia salvar-te!

— Entregando-te nas mãos do inimigo?

— Sim!

— Fazendo-te matar por eles?

— Matar e...

— Mas qual era o resultado dessa loucura?

O índio calou-se.

— É preciso explicares-te, para que não julguemos que o amigo inteligente e dedicado de outrora tornou-se um louco e um rebelde.

A palavra era dura; e o tom em que foi dita ainda agravava mais a repreensão severa que ela encerrava.

Peri sentiu uma lágrima umedecer-lhe as pálpebras:

— Obrigas Peri a dizer tudo!

— Deves fazê-lo, se desejas reabilitar-te na estima que te votava, e que sinto perder.

— Peri vai falar.

Álvaro entrava nesse momento tendo deixado no alto da esplanada os seus companheiros já livres de perigo, e quites por algumas feridas que não eram felizmente muito graves.

Cecília apertou as mãos do moço com reconhecimento; Isabel enviou-lhe num olhar toda a sua alma.

As pessoas presentes se gruparam ao redor da poltrona de D. Antônio, em face do qual Peri de pé com a cabeça baixa, confuso e envergonhado como um criminoso, ia justificar-se.

Dir-se-ia que confessava uma ação indigna e vil; ninguém adivinhava que sublime heroísmo, que concepção gigantesca havia neste ato, que todos condenavam como uma loucura.

Ele começou:

Quando Ararê deitou o seu corpo sobre a terra para não tornar a erguê-lo, chamou Peri e disse:

Filho de Ararê, teu pai vai morrer; lembra-te que tua carne é a minha carne; e o teu sangue e o meu sangue. Teu corpo não deve servir ao banquete do inimigo.

Ararê disse, e tirou suas contas de frutos que deu a seu filho: estavam cheias de veneno; tinham nelas a morte.

Quando Peri fosse prisioneiro, bastava quebrar um fruto, e ria do vencedor que não se animaria a tocar no seu corpo.

Peri viu que a senhora sofria, e olhou as suas contas; teve uma idéia; a herança de Ararê podia salvar a todos.

Se tu deixasses fazer o que queria, quando a noite viesse não acharia um inimigo vivo; os brancos e os índios não te ofenderiam mais.

Toda a família ouvia esta narração com uma surpresa extraordinária; compreendiam dela que havia em tudo isto uma arma terrível— o veneno; mas não podiam saber os meios de que o índio se servira ou pretendia servir-se para usar desse agente de destruição.

— Acaba! disse D. Antônio; por que modo contavas então destruir o inimigo?

— Peri envenenou a água que os brancos bebem, e o seu corpo, que devia servir ao banquete dos Aimorés!

Um grito de horror acolheu essas palavras ditas pelo índio em um tom simples e natural.

O plano que Peri combinara para salvar seus amigos acabava de revelar-se em toda a sua abnegação sublime e com o cortejo de cenas terríveis e monstruosas que deviam acompanhar a sua realização.

Confiado nesse veneno que os índios conheciam com o nome de curare, e cuja fabricação era um segredo de algumas tribos, Peri com a sua inteligência e dedicação descobrira um meio de vencer ele só aos inimigos, apesar do seu número e da sua força.

Sabia a violência e o efeito pronto daquela arma que seu pai lhe confiara na hora da morte; sabia que bastava uma pequena parcela desse pó sutil para destruir em algumas horas a organização a mais forte e a mais robusta. O índio resolveu pois usar deste poder que na sua mão heróica ia tornar-se um instrumento de salvação e o agente de um sacrifício tremendo feito à amizade.

Dois frutos bastaram; um serviu para envenenar a água e as bebidas dos aventureiros revoltados; e o outro acompanhou-o até o momento do suplício, em que passou de suas mãos aos seus lábios.

Quando o cacique vendo-o cobrir o rosto perguntou-lhe se tinha medo, Peri acabava de envenenar o seu corpo, que devia daí a algumas horas ser um germe de morte para todos esses guerreiros bravos e fortes.

O que porém dava a esse plano um cunho de grandeza e de admiração, não era somente o heroísmo do sacrifício; era a beleza horrível da concepção, era o pensamento superior que ligara tantos acontecimentos, que os submetera à sua vontade, fazendo-os suceder-se naturalmente e caminhar para um desfecho necessário e infalível.

Porque, é preciso notar, a menos de um fato extraordinário, desses que a previdência humana não pode prevenir, Peri quando saiu da casa tinha a certeza de que as coisas se passariam como de fato se passaram.

Atacando os Aimorés a sua intenção era excitá-los à vingança; precisava mostrar-se forte, valente, destemido, para merecer que os selvagens o tratassem como um inimigo digno de seu ódio. Com a sua destreza e com a precaução que tomara tornando o seu corpo impenetrável, contava evitar a morte antes de poder realizar o seu projeto; quando mesmo caísse ferido, tinha tempo de passar o veneno aos lábios.

A sua previsão porém não o iludiu; tendo conseguido o que desejava, tendo excitado a raiva dos Aimorés, quebrou a sua arma e suplicou a vida ao inimigo; foi de todo o sacrifício o que mais lhe custou.

Mas assim era preciso; a vida de Cecília o exigia; a morte que o havia respeitado até então podia surpreendê-lo; e Peri queria ser feito prisioneiro, como foi, e contava ser.

O costume dos selvagens, de não matar na guerra o inimigo e de cativá-lo para servir ao festim da vingança, era para Peri uma garantia e uma condição favorável à execução do seu projeto.

Quanto à peripécia final, que a intervenção de Álvaro obstara, não fora esse incidente imprevisto, que seria igualmente infalível.

Segundo as leis tradicionais do povo bárbaro, toda a tribo devia tomar parte no festim: as mulheres moças tocavam apenas na carne do prisioneiro; mas os guerreiros a saboreavam como um manjar delicado, adubado pelo prazer da vingança; e as velhas com a gula feroz das harpias que se cevam no sangue de suas vítimas.

Peri contava pois com toda a segurança que dentro de algumas horas o corpo envenenado da vitima levaria a morte às entranhas de seus algozes, e que ele só destruiria toda uma tribo, grande, forte, poderosa, apenas com o auxilio dessa arma silenciosa.

Pode-se agora compreender qual tinha sido o seu desespero vendo esse plano inutilizado; depois de ter desobedecido à sua senhora, depois de haver tudo realizado, quando só faltava o desfecho, quando o golpe que ia salvar a todos caia, mudar-se de repente a face das coisas e ver destruída a sua obra, filha de tanta meditação!

Ainda assim quis resistir, quis ficar, esperando que os Aimorés continuariam o sacrifício; mas conheceu que a resolução de Álvaro era inabalável como a sua; que ia ser a causa da morte de todos os defensores fiéis de D. Antônio, sem ter já a certeza de sua salvação.

No primeiro momento que sucedeu à confissão de Peri, todos os atores desta cena, pálidos, tomados de espanto e de terror, com os olhos cravados no índio, duvidavam ainda do que tinham ouvido; o espírito horrorizado não formulava uma idéia; os lábios trêmulos não achavam uma palavra. D. Antônio foi o primeiro que recobrou a calma; no meio da admiração que lhe causava aquela ação heróica, e das emoções produzidas por essa idéia ao mesmo tempo sublime e horrível, uma circunstância o tinha sobretudo impressionado. Os aventureiros iam ser vitimas de envenenamento; e por maior que fosse o grau de baixeza e aviltamento a que tinham descido esses homens pela sua traição, a nobreza do fidalgo não podia sofrer semelhante homicídio. Ele os puniria a todos com a morte ou com o desprezo, essa outra morte moral; mas o castigo na sua opinião elevava a morte à altura de um exemplo; enquanto que a vingança a fazia descer ao nível do assassinato.

— Vai, Aires Gomes, gritou D. Antônio ao seu escudeiro; corre e previne a esses desgraçados, se ainda é tempo!

 

 

Capítulo V: O Paiol

Cecília ouvindo a voz de seu pai, estremeceu como se acordasse de um sonho.

Atravessou o aposento com passo vacilante, e chegando-se a Peri, fitou nele os seus lindos olhos azuis com uma expressão indefinível.

Havia nesse olhar ao mesmo tempo a admiração imensa que lhe causava a ação heróica do índio; a dor profunda que sentia pela sua perda; e uma exprobração doce por não ter ele ouvido as suas súplicas.

O índio nem se animava a levantar os olhos para sua senhora; não tendo realizado o seu desejo, considerava agora tudo quanto fizera como uma loucura.

Sentia-se criminoso; e de toda a sua ação heróica e sublime para os outros, só lhe restava o pesar de ter ofendido Cecília, e de lhe haver causado inutilmente um desgosto.

— Peri, disse a menina com desespero, por que não fizeste o que tua senhora te pedia?...

O índio não sabia o que responder; temia ter perdido a afeição de Cecília, e essa idéia martirizava os últimos momentos que lhe restavam a viver.

— Cecília não te disse, continuou a menina soluçando, que ela não aceitaria a salvação com o sacrifício de tua vida?

— Peri já te pediu que perdoasses! murmurou o índio.

— Oh! Se tu soubesses o que fizeste hoje sofrer a tua senhora!... Mas ela te perdoa.

— Ah!... exclamou Peri, cuja fisionomia iluminou-se.

— Sim!... Cecília te perdoa tudo que sofreu, e tudo que vai sofrer! Mas será por pouco tempo...

A menina dizia essas palavras com um triste sorriso de sublime resignação; conhecia que não havia mais esperança de salvação, e esta idéia quase a consolava.

Não pôde acabar porém; a palavra ficou-lhe presa aos lábios, trêmula, convulsa: seus olhos se fixavam em Peri com um sentimento de terror e de espanto.

A fisionomia do índio se tinha decomposto; seus traços nobres alterados por contrações violentas, o rosto encovado, os lábios roxos, os dentes que se entrechocavam, os cabelos eriçados davam-lhe um aspecto medonho.

— O veneno!... gritaram os espectadores dessa cena horrorizados.

Cecília fez um esforço extraordinário, e lançando-se para o índio, procurou reanimá-lo.

— Peri!... Peri!... balbuciava a menina aquecendo nas suas as mãos geladas de seu amigo.

— Peri vai te deixar para sempre, senhora.

— Não!... Não!... exclamou a menina fora de si. Não quero que tu nos deixes!... Oh! tu és mau, muito mau!... Se estimasses tua senhora, não a abandonarias assim!...

As lágrimas orvalhavam as faces da menina, que no seu desespero não sabia o que dizia. Eram palavras entrecortadas, sem sentido; mas que revelavam a sua angústia.

— Tu queres que Peri viva, senhora? disse o índio com a voz comovida.

— Sim!... respondeu a menina suplicante. Quero que tu vivas!

— Peri viverá!

O índio fez um esforço supremo, e restituindo um pouco de elasticidade aos seus membros entorpecidos, dirigiu-se à porta e desapareceu.

Todas as pessoas presentes o acompanharam com os olhos e o viram descer à várzea e ganhar a floresta correndo.

A última palavra que ele proferira tinha um momento restituído a esperança a D. Antônio de Mariz; mas quase logo a dúvida apoderou-se do seu espírito; julgou que o índio se iludia.

Cecília porém tinha mais do que uma esperança; tinha quase uma certeza de que Peri não se enganara: a promessa de seu amigo lhe inspirava uma confiança profunda. Nunca Peri lhe havia dito uma coisa que se não realizasse; o que parecia impossível aos outros, tornava-se fácil para sua vontade firme e inabalável, para o poder sobre-humano, de que a força e a inteligência o revestia.

Quando D. Antônio de Mariz e sua família se recolheram tristemente impressionados, Álvaro, de pé na porta do gabinete, fez um gesto de espanto ao fidalgo, e apontou-lhe para o oratório.

A parede do fundo, prestes a tombar, oscilava sobre a sua base como uma árvore balançada pelo vento.

D. Antônio sorriu; e ordenando à sua família que entrasse no gabinete, tirou a pistola da cinta, armou-a e esperou na porta ao lado de Álvaro.

No mesmo instante ouviu-se um grande estrondo, e no meio da nuvem espessa de pó que se elevou desse montão de ruínas, seis homens precipitaram-se na sala.

Loredano foi o primeiro; apenas tocou o chão, ergueu-se com extraordinária rapidez, e seguido pelos seus companheiros caminhou direito ao gabinete onde se achava recolhida a família.

Recuaram, porém, lívidos e trêmulos, horrorizados diante da cena muda e terrível que se apresentava aos seus olhos espantados.

No meio do aposento via-se um desses grandes vasos de barro vidrado, feitos pelos índios, e que continha pelo menos uma arroba de pólvora. De uma aberta que havia nesse vaso corria um largo trilho que ia perder-se no fundo do paiol, onde se achavam enterradas todas as munições de guerra do fidalgo.

Duas pistolas, a de D. Antônio de Mariz e a de Álvaro esperavam um movimento dos aventureiros para lançarem a primeira faisca ao vulcão. D. Lauriana, Cecília e Isabel de joelhos, oravam julgando a cada momento ver confundirem-se no turbilhão todos os espectadores dessa cena.

Era esta a arma terrível de que falara há pouco D. Antônio, quando dizia à Álvaro que Deus lhe havia confiado o poder de fulminar todos os seus inimigos. O moço compreendeu então a razão por que o fidalgo o tinha obrigado a partir com todos os homens para salvar Peri, julgando-se bastante forte para defender, ele só, a sua família

Quanto aos aventureiros, lembraram-se do juramento solene de D. Antônio de Mariz; o fidalgo os tinha a todos fechados na sua mão, e bastava apertar essa mão para esmagá-los como um torrão de argila. Lançando um olhar esvairado em torno de si os seis criminosos quiseram fugir, mas não tiveram animo de dar um passo e ficaram como pregados ao solo.

Ouviu-se então um rumor de vozes da parte de fora, e Aires Gomes seguido pelos aventureiros apresentou-se à porta da sala.

Loredano conheceu que desta vez estava irremediavelmente perdido, e assentou de vender caro a sua vida; mas a desgraça pesava sobre ele. Dois dos seus companheiros caíram a seus pés estorcendo-se em convulsões horríveis, e soltando gritos que metiam dó e compaixão.

A princípio ninguém compreendeu a causa dessa morte súbita e violenta; mas a lembraça do veneno de Peri acudiu logo à memória de alguns e explicou tudo.

Os aventureiros que chegavam guiados por Aires Gomes apoderaram-se de Loredano e foram ajoelhar-se confusos e envergonhados aos pés de D. Antônio de Mariz, pedindo-lhe o perdão de sua falta.

O fidalgo tinha assistido a todos esses acontecimentos que se sucediam tão rapidamente, sem deixar a sua primeira posição; dir-se-ia que sobre essas paixões humanas que se debatiam a

 

 

Capítulo VI: Trégua

Eram oito horas da noite.

Os aventureiros, sentados no terreiro em roda de um pequeno fogo, esperavam tristemente que cozinhassem alguns legumes destinados à magra ceia.

A penaria tinha sucedido à abundância de outrora; privados da caça, sua alimentação ordinária, estavam reduzidos a simples vegetais. Os seus vinhos e as bebidas fermentadas de que faziam largas libações, tinham sido envenenados por Peri; e foram pois obrigados a deitá-los fora muito felizes ainda por não terem sido vitimas deles.

Loredano fechando a porta da despensa é que os tinha salvado; apenas dois dos aventureiros que o haviam acompanhado tinham tocado nessas bebidas, e por isso poucas horas depois caíram mortos, como vimos, na ocasião em que iam atacar D. Antônio de Mariz.

Não eram porém essas cenas de lato e a situação critica em que se achavam, que infundiam nesses homens sempre alegres e tão galhofeiros aquela tristeza que não lhes era habitual. Morrer com as armas na mão, batendo-se contra o inimigo, era para eles uma coisa natural, uma idéia a que a sua vida de aventuras e de perigos os tinha afeito.

O que realmente os entristecia, era não terem uma boa ceia, e um canjirão de vinho diante de si; era o seu estômago que se contraia por falta de alimento, e que tirava-lhes toda a disposição de rir e de folgar.

A chama avermelhada da fogueira às vezes oscilava ao sopro do vento, e estendendo-se pelo terreiro ia iluminar a alguma distância com o seu frouxo clarão o vulto de Loredano atado ao poste sobre a pira de lenha.

Os aventureiros tinham resolvido demorar o suplício e dar tempo a que o frade se arrependese dos seus crimes e se decidisse a morrer como cristão, humilde e penitente; por isso deixaram-lhe a noite para refletir.

Talvez entrasse também nessa resolução um requinte de maldade e de vingança; julgando o italiano a verdadeira causa da posição em que estavam colocados, os seus companheiros o odiavam e queriam prolongar o seu sofrimento como uma reparação do mal que lhes tinha feito.

Assim, de vez em quando algum deles se erguia, e chegando-se ao frade, exprobrava-lhe a sua perversidade e cobria-o de impropérios e de injúrias. Loredano estorcia-se de raiva, mas não proferia uma palavra, porque os seus algozes o tinham ameaçado de cortar-lhe a língua.

Aires Gomes veio chamar os aventureiros da parte de D. Antônio de Mariz; todos se apressaram em obedecer, e pouco depois entraram na sala onde estava toda a família.

Tratava-se de uma sortida com o fim de procurar víveres que pudessem alimentar os habitantes da casa, até que D. Diogo tivesse tempo de chegar com o socorro que tinha ido procurar. D. Antônio de Mariz reservava dez homens para defender-se; os outros partiriam com Álvaro; se fossem felizes, havia ainda uma esperança de salvação; de fossem malsucedidos, uns e outros, os que fossem e os que ficassem morreriam como cristãos e portugueses.

Imediatamente a expedição preparou-se, favorecida pelo silêncio da noite partiu e interno-se pela floresta; devia afastar-se sem ser percebida pelos Aimorés, e procurar pelas vizinhanças fazer uma ampla provisão de alimentos.

Durante a primeira hora que sucedeu à partida, todos os que ficaram, com o ouvido atento escutaram, temendo ouvir a cada momento o estrondo de tiros que anunciasse um combate entre os aventureiros e os índios. Tudo conservou-se em silêncio; e uma esperança, bem que vaga e tênue, veio pousar nesses corações quebrados por tantos sofrimentos e tantas angústias.

A noite passou-se tranqüilamente; nada indicava que a casa estivesse cercada por um inimigo tão terrível como os Aimorés.

D. Antônio admirava-se que os selvagens, depois do ataque da manhã, se conservassem tranqüilos no seu campo, e não tivessem investido a habitação uma só vez. Passou-lhe pelo espírito a idéia de que se tivessem retirado com a perda de alguns dos seus principais guerreiros; mas ele conhecia de há muito o espírito vingativo e a tenacidade dessa raça para admitir semelhante suposição.

Cecília recostou-se num sofá, e alquebrada de fadiga conseguiu adormecer apesar das idéias tristes e das inquietações que a agitavam. Isabel, com o coração cerrado por um terrível pressentimento, lembrava-se de Álvaro, e acompanhava-o de longe na sua perigosa expedição, misturando as suas preces com as palavras ardentes do seu amor.

Assim passou-se esta noite; a primeira, depois de três dias, em que a família de D. Antônio de Mariz pôde gozar alguns momentos de sossego.

De vez em quando o fidalgo chegando à janela via ao longe, perto do rio, brilharem os fogos do campo dos Aimorés; mas uma calma profunda reinava em toda aquela planície. Nem mesmo se ouvia o eco enfraquecido de uma dessas cantigas monótonas com que os selvagens costumam à noite acompanhar o embalançar de sua rede de palha; apenas o sussurrar do vento nas folhas, a queda da água sobre as pedras, e o grito do oitibó.

Contemplando a solidão, o fidalgo insensivelmente voltava a essa esperança que há pouco sorrira, e que o seu espírito tinha repelido como uma simples ilusão. Tudo com efeito parecia indicar que os selvagens haviam abandonado o seu campo, deixando nele apenas os fogos que haviam servido para esclarecer os seus preparativos de partida.

Para quem conhecia, como D. Antônio, os costumes desses povos bárbaros, para quem sabia quanto era ativa, agitada, ruidosa esta existência nômada, o silêncio em que estava sepultada a margem do rio era um sinal certo de que os Aimorés já ali não estavam. Contudo o fidalgo, demasiadamente prudente para se fiar em aparências, recomendara aos seus homens que redobrassem de vigilância para evitar alguma surpresa.

Talvez que aquele sossego e aquela serenidade fossem apenas uma dessas calmas sinistras que preludiam as grandes tempestades, e durante as quais os elementos parecem concentrar as suas forças para entrarem nessa luta espantosa que tem por campo de batalha o espaço e o infinito.

As horas correram silenciosamente; a viuvinha cantou pela primeira vez; e a luz branca da alvorada veio empalidecer as sombras da noite.

Pouco e pouco o dia foi rompendo; o arrebol da manhã desenhou-se no horizonte, tingindo as nuvens com todas as cores do prisma. O primeiro raio do sol, desprendendo-se daqueles vapores tênues e diáfanos, deslizou pelo azul do céu, e foi brincar no cabeço dos montes.

O astro assomou, e torrentes de luz inundaram toda a floresta, que nadava num mar de ouro marchetado de brilhantes, que cintilavam em cada uma das gotas do orvalho suspensas às folhas das árvores.

Os habitantes da casa, despertando, admiravam esse espetáculo magnífico do nascer do dia, que depois de tantas tribulações e de tantas angústias, lhes parecia completamente novo.

Uma noite de quietação e sossego os tinha como que restituído à vida; nunca esses campos verdes, esse rio puro e límpido, essas árvores florescentes, esses horizontes descortinados se haviam mostrado a seus olhos tão belos, tão risonhos como agora.

É que o prazer e o sofrimento não passam de um contraste; em lata perpétua e continua, eles se acrisolam um no outro, e se deparam: não há homem verdadeiramente feliz senão aquele que já conheceu a desgraça.

Cecília, com a frescura da manhã, tinha-se expandido como uma flor do campo; suas faces coloriram-se de novo, como se um raio do sol, beijando-as lhes tivesse imprimido o seu reflexo roseado; os olhos brilharam; e os lábios entreabrindo-se para aspirarem o ar puro e embalsamado da manhã, arquearam-se graciosamente quase sorrindo.

A esperança, esse anjo invisível, essa doce amiga dos que sofrem, tinha vindo pousar no seu coração, e murmurava-lhe ao ouvido palavras confusas, cantos misteriosos, que ela não compreendia, mas que a consolavam e vertiam em sua alma um bálsamo suave.

Sentia-se em todas as pessoas de casa um quer que seja, uma animação, um começo de bem-estar que revelava uma grande transformação operada na situação da véspera; era mais do que a esperança, menos do que a seguridade.

Só Isabel não partilhava essa impressão geral; como sua prima, ela também viera contemplar o raiar do dia; mas fora para interrogar a natureza, e perguntar ao sol, à luz, ao céu, se as lúgubres imagens que tinham passado e repassado na sua longa vigília, eram uma realidade ou uma visão.

E uma coisa singular! Esse sol tão brilhante, essa luz esplêndida, esse céu azul, que aos outros reanimara, e que devia inspirar a Isabel o mesmo sentimento, pareceu-lhe ao contrário uma amarga ironia.

Comparou a cena radiante que se apresentava aos seus olhos com o quadro que se desenhava em sua alma; enquanto a natureza sorria, o seu coração chorava. No meio dessa festa esplêndida do nascer do dia, a sua dor, só, isolada, não achava uma simpatia, e repelida pela criação voltava a recalcar-se em seu seio. A moça recostou a cabeça sobre o ombro de sua prima, e escondeu ai o rosto para não perturbar a doce serenidade que se expandia no semblante de Cecília.

Entretanto D. Antônio tinha tratado de averiguar se as suas suspeitas da véspera eram reais; certificou-se de que os selvagens haviam abandonado o campo. Aires Gomes, acompanhado de mestre Nunes, chegou mesmo a sair da casa e aproximar-se com todas as cautelas do lugar onde na véspera os Aimorés festejavam o sacrifício de Peri.

Tudo estava deserto; não se viam mais no campo os vasos de barro, as peças de caça suspensas aos galhos da árvore, e as redes grosseiras que indicavam a alta de uma horda selvagem. Não havia já dúvidas, os Aimorés tinham partido desde a véspera à noite, depois de enterrarem os seus mortos.

O escudeiro voltou a dar esta noticia ao fidalgo, que recebeu-a menos favoravelmente do que se devia supor; ignorava a causa e o fim dessa partida repentina, e desconfiava dela.

Não há que admirar nisto; D. Antônio era um homem prudente e avisado; a sua experiência de quarenta anos o tinha tornado suspeitoso; por coisa nenhuma queria dar aos seus uma esperança que viesse a frustrar-se.— A vossa falta é daquelas que não se perdoam, disse D. Antônio; mas estamos nesse momento extremo em que Deus manda esquecer todas as ofensas. Levantai-vos e preparemo-nos todos para morrer como cristãos.

Os aventureiros ergueram-se, e arrastando Loredano para fora da sala, retiraram-se para o alpendre, com a consciência aliviada de um grande peso.

A família pôde então, depois de tantas emoções, gozar um pouco de sossego e repouso; apesar da posição desesperada em que se achavam, a reunião dos aventureiros revoltados tinha trazido um fraco vislumbre de esperança.

Só D. Antônio de Mariz não se iludia, e desde aquela manhã tinha conhecido que, quando os Aimorés não o vencessem pelas armas, o venceriam pela fome. Todos os viveres estavam consumidos, e só uma sortida vigorosa podia salvar a família desse martírio que a ameaçava, martírio muito mais cruel do que uma morte violenta.

O fidalgo resolveu esgotar os últimos recursos antes de confessar-se vencido; queria morrer com a consciência tranqüila de haver cumprido o seu dever e de haver feito o que fosse humanamente possível. Chamou Álvaro e entreteve-se com o moço durante algum tempo em voz baixa; concertavam um meio de realizar essa idéia, de que dependia toda a esperança de salvação.

Ao mesmo tempo que isto se passava, os aventureiros reunidos em conselho, julgavam a Frei Ângelo di Luca, e o condenavam por um voto unânime.

Proferida a sentença apresentaram-se diversas opiniões sobre o suplício que devia ser infligido ao culpado; cada um lembrava o gênero de morte o mais cruel; porém a opinião geral adotou a fogueira como o castigo consagrado pela inquisição para punir os hereges.

Fincaram no meio do terreiro um alto poste e o cercaram com uma grande pilha de madeira e outros combustíveis; depois sobre essa pira ligaram o frade, que sofria todos os insultos e todas as injúrias sem proferir uma palavra.

Uma espécie de atonia se apoderara do italiano desde o momento em que os aventureiros o haviam arrastado da sala de D. Antônio de Mariz; ele tinha a consciência do seu crime e a certeza de sua condenação.

Entretanto na ocasião em que o atavam à fogueira, um incidente despertou de repente a sensibilidade desse homem embrutecido pela idéia da morte, e pela convicção de que não podia escapar a ela.

Um dos aventureiros, um dos cinco cúmplices da última conspiração, chegou-se a Loredano, e tirando-lhe a cinta que prendia o seu gibão, mostrou-a aos seus companheiros. O italiano vendo-se separado do seu tesouro sentiu uma dor muito mais forte do que a que ia sofrer na fogueira; para ele não havia suplício, não havia martírio que igualasse a este.

O que o consolava na sua última hora era a idéia de que esse segredo que possuía, e do qual não pudera utilizar-se, ia morrer com ele, e ficaria perdido para todos; que ninguém gozaria do tesouro que lhe escapava.

Por isso apenas o aventureiro tirou-lhe a cinta onde guardava o roteiro; soltou um rugido de cólera e de raiva impotente; seus olhos injetaram-se de sangue, e seus membros crispando-se feriram-se contra as cordas que os ligavam ao poste.

Era horrível de ver nesse momento; seu aspecto tinha a expressão brutal e feroz de um hidrófobo; seus lábios espumavam, silvando como a serpente; e seus dentes ameaçavam de longe os seus algozes como as presas do jaguar.

Os aventureiros riram-se do desespero do frade por ver roubarem-lhe o seu precioso tesouro, e divertiram-se em aumentar-lhe o suplício, prometendo que apenas livres dos Aimorés fariam uma expedição às minas de prata.

A raiva do italiano redobrou quando Martim Vaz atou a cinta ao corpo, e disse-lhe sorrindo:

— Bem sabeis o provérbio: O bocado não é para quem o faz.

 

Wednesday, 12 May 2021

Homily by Pope Pius XII (in Italian)

Celebrazione eucaristica  per invocare la pace  nel mondo

  


Basilica Vaticana - Domenica, 24 novembre 1940

 

Ai fedeli riuniti nella Basilica Vaticana,

durante la celebrazione della Messa.

 

Il Vangelo di oggi ci presenta, diletti figli, gran parte del discorso fatto dal Nostro Signore Gesù Cristo nel rispondere alle domande degli Apostoli: quando sarebbe avvenuta la distruzione del magnifico tempio di Gerusalemme, sicché non ne rimanesse pietra sopra pietra; quale sarebbe stato il segno del suo secondo avvento e della fine del mondo. Cristo parlava ai suoi Apostoli, seduto, come narra l’Evangelista Matteo, sul monte Oliveto, guardando Gerusalemme e la mole del tempio: scena mesta e divinamente austera, in cui il Verbo di Dio fatto carne, viatore e contemplatore dei secoli eterni, si sollevava e sublimava profeta sopra i profeti. Egli, creatore dell’universo e dell’uomo, Egli, arbitro del passato e dell’avvenire, pendente dalla sua mano, si assideva al centro dei secoli annunziatore della rovina del vecchio tempio e della dispersione dei figli d’Israele, come già prima aveva promesso la edificazione sopra a Pietro del nuovo tempio della sua indistruttibile Chiesa; annunziatore della seconda sua venuta, quando “il segno del Figlio dell’uomo comparirà nel cielo; e allora piangeranno tutte le nazioni della terra, e vedranno il Figlio dell’uomo venire sulle nubi del cielo con grande potenza e maestà. E manderà i suoi Angeli con tromba sonora, e raduneranno i suoi eletti dai quattro venti, da un’estremità all’altra dei cieli!” [1]. “Ecce praedixi vobis … Caelum et terra transibunt, verba autem mea non praeteribunt” [2].

Passeranno il cielo e la terra. Passerà questa terra, che calca il nostro piede, fende e bagna di sudore la nostra mano, scruta il nostro occhio; questa terra, di cui il nostro ferro trafora e tormenta le viscere, scavando i sepolcri delle spente selve, dei mostri coevi di spiagge ignote; dei vapori di estinti vulcani e delle vene dei metalli e delle liquide fiamme, che turbano i sogni dell’uomo e ne scuotono la pace. Passerà questo nostro vecchio globo, che sembra non più bastare agli uomini e a saziare il fremito delle loro contrastanti aspirazioni, per le quali arde ai nostri giorni una lotta di così gigantesche proporzioni, da sorpassare e quasi oscurare i più grandi avvenimenti e rivolgimenti della storia del mondo. Passerà la terra, e noi tutti dovremo comparire davanti al tribunale di Cristo, affinché ciascuno ne riceva la mercede o la pena, secondo che avrà fatto il bene o il male [3]; ma non passeranno le parole di Cristo, che predice e annunzia anzi tempo agli Apostoli la storia della sua Chiesa e del mondo e le tristi vicende che incontreranno attraverso i secoli. E là, in quel medesimo discorso sull’Oliveto, in vista di Gerusalemme, li ammonisce a guardare che alcuno non li seduca. «Perché, diceva loro, sentirete parlare di guerre e di rumori di guerre. Badate di non turbarvi; giacché bisogna che queste cose succedano; ma non è ancora la fine: Audituri enim estis praelia et opiniones praeliorum. Videte ne turbemini; oportet enim haec fieri, sed nondum est finis” [4].

No; la consumazione dei secoli non è ancora giunta. Cristo, se è asceso in cielo, sta sempre con noi tutti i giorni, anche in mezzo alle guerre e ai rumori di guerre. Non dobbiamo turbarcene, come non se ne turbarono gli Apostoli, nella predicazione del Vangelo. Ma, se il turbamento non Ci abbatte lo spirito, sentiamo però nel profondo del Nostro animo che l’ora presente è una fase della grave storia dell’umanità predetta da Cristo. E voi, diletti figli, non ignorate quanto questa nuova e fierissima guerra, che pesa sull’Europa e sul mondo, gravi necessariamente anche sul Nostro cuore, per quel paterno affetto, derivante dall’ufficio impostoCi da Dio verso tutte le genti; giacché ben sapete che dell’affetto e dell’amore è figlio il dolore. Non è forse la dolorosa passione di Cristo il frutto del suo amore per noi “Sic Deus dilexit mundum!” [5] E nel suo trionfale ingresso in Gerusalemme, che tanto amò, avvicinandosi alla città e rimirandola, non pianse il divin Redentore sopra di essa? E disse: «O se avessi conosciuto anche tu, e proprio in questo giorno, quello che importa alla tua pace !” [6] Questo ineffabile lamento del Salvatore innanzi a Gerusalemme non poteva non scendere nel cuore dell’umile suo Vicario alla contemplazione dell’Europa e del mondo in immane conflitto. Noi non abbiamo nulla tralasciato per la pace fra le nazioni, consci come siamo di essere servi e ministri di un eccelso Re pacifico, pacificante, non col sangue delle battaglie, ma mediante il sangue della sua croce, e le cose della terra e le cose del cielo [7]. Abbiamo seguito il grido e l’impulso del Nostro cuore, perché fra le genti si ristabilisse la concordia, da lungo tempo turbata e ora miseramente spezzata, con un ordine più equo e unanime, basato su quella giustizia, la quale tranquilla le passioni, sopisce gli odi, spegne i fermenti dei rancori e delle lotte; un ordine che tenda ad attribuire a tutti i popoli, nella tranquillità, nella libertà e nella sicurezza, la parte, ad ognuno di essi in questa terra spettante, delle fonti della prosperità e della potenza, affine di rendere loro possibile l’adempimento della parola del Creatore: “Crescite et multiplicamini, et replete terram” [8]. Fin dallo scoppiare del conflitto, il Nostro pensiero e l’animo Nostro non hanno mai cessato dal far sì che i divini conforti e gli aiuti umani fossero, per quanto Ci era possibile, impartiti a coloro, ai quali l’urto delle armi avesse cagionato perdite e dolori. “Caritas enim Christi urget nos” [9]. Padre comune dei fidenti in Cristo, Pastore dell’immenso ovile di Cristo, sono Nostri figli, sono Nostre pecorelle, i vicini e i lontani, i fedeli e gli smarriti o randagi: a tutti siamo debitori di amore, di conforto, di aiuto, di compassione, ai deboli e ai potenti, ai miseri e agl’infelici, ai sapienti e agl’insipienti [10]. Questa valle di lacrime ha talvolta procellose inondazioni di nuove lacrime da asciugare sul volto dei fanciulli, delle madri, degli uomini, dei vecchi, che sentono un duro abbandono della vita e dello spirito, specialmente in quest’ora agitata, quando la formidabile lotta, non che scemare, più aspra perdura e si avanza.

Ma, se il fragore di guerra sembra vincere e coprire la Nostra voce, dalla terra Noi alziamo lo sguardo al cielo, al Padre delle misericordie e al Dio di ogni consolazione [11], che tutto contempla quaggiù, tutto governa e comanda al flutto dell’oceano: «Verrai fin qui e non passerai oltre; qui romperai il tuo bollente furore” [12]. A Lui, sotto la cui mano divina, nell’ordine universale degli eventi e delle cose, si agita l’azione libera dell’uomo senza poter sfuggire al suo provvido e ineluttabile consiglio; a Lui Noi leviamo il grido del Nostro cuore e del Nostro dolore, invocando migliori tempi al genere umano, migliori aurore e migliori tramonti alle nostre giornate: “Da pacem, Domine, in diebus nostris”. No; il nostro Dio non è come i simulacri delle genti, che hanno orecchi e non odono, hanno mani e non fanno grazie, hanno seno e non amano [13]. Il nostro Dio è amore, è la carità stessa; e noi abbiamo conosciuto e creduto alla carità che Dio ha per noi: «Et nos cognovimus, et credidimus caritati, quam habet Deus in nobis: Deus caritas est” [14].

Questo è il mistero del cuore di Dio, il gran mistero del cristianesimo. Dio, con quella infinita e amorosa misericordia, la quale si spande su tutte le sue creature [15], ci ascolterà — nel momento e nel modo dalla Provvidenza sua benedetta disposti — se ai piedi del suo trono salirà unanime la preghiera fiduciosa e ardente, avvalorata dalla umiliazione della penitenza; perché appartiene alla suprema eminenza della bontà e della carità divina non solo il distribuire l’essere e il benessere a tutti, ma ancora l’esaudire nella sua liberalità i pii desideri che si esprimono per mezzo dell’orazione. Non ci ha il Figlio di Dio incarnato chiamati suoi amici nei suoi discepoli? [16] E non è pregio dell’amicizia che chi ama voglia che sia appagata la brama dell’amato?

Perciò, nella festa di Cristo Re, sotto la protezione della gloriosa Vergine del Rosario, abbiamo chiamato tutti i figli della Chiesa ad elevare con Noi pubbliche preghiere, in questo giorno; sicché ne risulti un solo immenso coro di supplicanti, rispondenti alla Nostra voce, vari di cielo, di lingua, di costumi, di maniera, di rito, ma fervidi di una medesima fede, di una medesima speranza, di un medesimo amore, i quali rivolgano con Noi lo sguardo oltre le stelle, e al trono dell’Altissimo porgano umili invocazioni di grazia e misericordia.

Guardate, diletti figli, questo altare, questa croce che lo sormonta, questo pane e questo calice, questa tomba, su cui riverenti posiamo il piede, Pietra fondamentale della Chiesa, famosa e venerata dalla fede delle genti; guardate questo centro glorioso di tutti gli altari dell’universo. Questo è l’incruento Golgota della misericordia e della giustizia divina, sul quale si placa e si propizia la Maestà di Dio. Qui fra le ali delle schiere celesti, sotto lo sguardo dei Profeti, degli Evangelisti, degli Apostoli e dei Santi è il propiziatorio del nuovo ed eterno Testamento, dove Cristo si fa Ostia al Padre, e rinnova col portento dei portenti il suo sacrificio del Golgota nel suo Corpo e nel suo Sangue sparso per la remissione dei peccati, “non solo per i nostri, ma anche per quelli di tutto il mondo” [17]. Si adunino dunque intorno a Noi tutti i credenti in Lui; e uniti in ispirito con Noi, che qui, sotto questa mirabile volta gareggiante col cielo, offriamo a Dio il divino sacrificio di propiziazione, i sacri ministri, in ogni luogo della terra, sacrifichino e offrano all’eterno Padre la medesima oblazione monda del diletto suo Figlio, di Cristo, il quale sull’altare della croce una sola volta si offerse in modo cruento, e in forma incruenta, divisata dal suo immenso e ineffabile amore, un numero senza numero di volte si è immolato e s’immola sui nostri altari.

Sì, o Padre nostro che state nei cieli, o Dio, protettore nostro, volgete lo sguardo a Cristo vostro Figlio; mirate i segni vermigli delle sue ferite, a cui lo condusse l’amore per noi e l’obbedienza a Voi, con le quali volle farsi in ogni tribolazione nostro Avvocato e Propiziatore. O Gesù, Salvatore nostro, parlate al Padre vostro e Padre nostro per noi, supplicatelo per noi, per la vostra Chiesa, per tutti gli uomini, conquista del vostro sangue. O Re pacifico, Principe di pace! Voi, che avete le chiavi della vita e della morte, donate la pace della requie sempiterna alle anime di tutti i fedeli, dal turbine di guerra travolti nella morte, e, noti e ignoti, lacrimati o illacrimati, sepolti sotto le rovine delle città e dei villaggi distrutti, per le pianure insanguinate, su per i colli squarciati, negli abissi delle valli o nei gorghi marini. Scenda sulle loro pene il vostro sangue purificatore a imbiancare i loro manti e a renderli degni e fulgidi al vostro cospetto beatificante. Voi, amoroso confortatore degli infelici, che lacrimaste alle lacrime di Marta e Maria sconsolate per il morto fratello, concedete la pace del conforto, della rassegnazione e dell’aiuto ai miseri, dalle calamità della guerra prostrati nella tribolazione e nel dolore, agli esuli, ai profughi dalla patria, ai raminghi sconosciuti, ai prigionieri, ai feriti fiduciosi in Voi. Rasciugate le lacrime di tante spose, di tante madri, di tanti orfani, di tante famiglie, di tanti derelitti; lacrime nascoste, cadenti sopra il pane del dolore, dopo durati digiuni, in freddi tuguri, pane diviso fra i fanciulli più volte condotti ai vostri altari nell’umile chiesetta a pregare per il babbo o per il fratello maggiore, forse morto, forse languente, forse sperduto. Consolate tutti coi doni celesti e con quei sollievi e soccorsi della feconda carità, che Voi sapete ispirare agli animi gentili, i quali negli affannati e sfortunati riconoscono i loro fratelli e amano le immagini vostre. Concedete ai combattenti, coll’eroismo nell’adempimento del loro dovere, anche fino al supremo sacrificio, per la difesa della Patria, quel nobile senso di umanità, che in ogni evento non fa ad altri ciò che non vorrebbe fosse fatto a sé o al proprio popolo [18].

O Signore, regni e trionfi la carità del vostro divino Spirito sul mondo, e torni fra i popoli e le nazioni la pace della concordia e della giustizia. Siano accetti e graditi al mite e umile vostro Cuore i nostri voti, e Vi renda a noi propizio il numero e la devozione dei santi sacrifici che, prona, tutta la Chiesa, vostra Sposa, per Voi stesso, Sacerdote e Vittima in eterno, offre al divino vostro Padre. Parlate Voi ai cuori degli uomini. Voi avete parole, che penetrano e scuotono il cuore, che illuminano la mente, che calmano le ire, spengono gli odi e le vendette. Dite quella parola che seda le tempeste, che risana gl’infermi, che è luce ai ciechi e udito ai sordi, che è vita ai morti. La pace fra gli uomini, che voi volete, è morta: risuscitatela, o divino Vincitore della morte; e per Voi si tranquillino alfine la terra e il mare; cessino nei cieli i turbini, che, sfidando i raggi del sole od occulti fra le tenebre della notte, gettano su inermi popolazioni il terrore, gl’incendi, le distruzioni, le stragi; la giustizia con cristiana carità pareggi dall’uno e dall’altro lato i sussulti delle bilance; sicché riparata ogni ingiustizia, restaurato l’impero del diritto, estinta ogni discordia e rancore degli animi, risorga e si ravvivi in serena visione di nuova e unanime prosperità una vera e ordinata e duratura pace che affratelli, nel cammino dei secoli e nel consenso del bene più alto, tutte le genti dell’umana famiglia sotto lo sguardo vostro. Così sia.

 

Notes:

[1] Matth., XXIV, 30-31.

[2] Matth., XXIV, 25 et 35.

[3] II Cor., V, 10.

[4] Matth., XXIV, 6.

[5] Ioann., III, 16.

[6] Luc., XIX, 41.

[7] Col., 1, 20.

[8] Gen., IX, 1.

[9] II Cor., V, 14.

[10] Rom., I, 14.

[11] II Cor., I, 3.

[12] Iob., XXXVIII, 11.

[13] Ps. CXIII.

[14] I Ioann., IV, 16.

[15] Ps. CXLIV, 9.

[16] Ioann., XV, 15.

[17] I Ioann., 11, 2.

[18] Matth., VII, 12.