Tuesday 7 September 2021

Tuesday's Serial: "Turbilhão" by Coelho Neto (in Portuguese) - VII

 Capítulo IX

Deitado, d’olhos fechados e amollecido de fadiga, Paulo não poude conciliar o somno, recordando todas as peripecias do jogo. Estava ainda sob a impressão intensa da sorte que tantos cominentarios provocára. O proprio Junqueira, sempre indifferente, lamentára que elle «não soubesse aproveitar o seu dia». Se houvesse carregado teria levado a banca á gloria. Tal idéa irritava-o. Esmurrava a mesa, fazendo e desfazendo calculos. Chegou a sentar-se na cama para recomeçar as sommas, os calculos de fortuna, Ritinha, porém, surgiu-lhe na lembrança.

Mamede andava infeliz, pedia-lhe dinheiro, deixava-o só com a rapariga horas e horas, como se a entregasse, e ella, sempre risonha, toda se lhe rendia, dengosa, retribuindo-lhe os beijos, falando-lhe em tom de queixume, d’olhos amorte Não, aquilo não podia continuar. O melhor era tomar um cômodo ali perto, na Lapa; o mulato que se arranjasse! e riu, antegozando a vitória daquela traição. Demais, Ritinha já lhe havia confessado que não gostava de Mamede - vivia com ele por viver; era um bruto, principalmente quando bebia. Às vezes entrava em casa cambaleando, nojento. E eram sempre amofinações, desassossego, vergonhas: gente à porta a reclamar dinheiro, ameaças de denúncias, rusgas com os vizinhos, um inferno! Não era homem para ela.

Voltou-se na cama, com um travesseiro entre os braços, fechou os olhos e ficou a balançar a perna, gozando a tepidez dos lençóis. Como seria feliz se ela ali estivesse, muito chegada ao seu corpo, enlaçando-o com os braços, excitando-o com a umidade quente da sua boca, falando-lhe baixinho, em arrulho amoroso, toda dele, nua e insaciável, fazendo-se pequenina, mimosa, para que ele a levantasse, beijasse, despertando-a do torpor lúbrico em que ficava, com um sorriso parado, olhos enlanguescidos, os braços abertos e abandonados, os peitos empinados, rígidos de sensualidade.

O mar estourava d'encontro às pedras do cais, e, de quando em quando, com um rumor que crescia e morria, tiniam campainhas de bondes.

Adormeceu por fim e teve sonhos bizarros. Acordou, de repente, pensando em ladrões. Abriu muito os olhos na treva, pôs-se a tatear procurando a caixa de fósforos. Sentia gente no quarto, ouvia passos surdos, distinguia vagamente um vulto junto à porta. Riscou um fósforo e, ao trêmulo vislumbre, relanceou espavoridamente o olhar pelo aposento: a porta estava fechada. Para maior segurança levantou-se, deu volta à chave. Lá fora só havia o estrondo das ondas. E impaciente, ansioso pela manhã, querendo desforrar-se da timidez da véspera, suspirou rolando na cama que o seu corpo aquecia.

Eram dez horas da manhã quando acordou com a cabeça pesada, como se houvesse bebido copiosamente na véspera. Pareceu-lhe ouvir vozes na sala. Levantou-se, pé ante pé, encostou-se à porta, cujos vidros tinham uma empanada de metim vermelho, e reconheceu a voz esganiçada do Fábio. Murmurou entredentes: "Canalha!" e ficou à escuta, muito interessado.

Dona Júlia defendia-o: "Que sim, ela mesma lembrara aquele recurso. Ele estava desempregado, fizera grandes despesas, por isso, coitado! recorrera a um amigo. A quem havia ele de pedir?" O velho interrompeu-a: "Pois sim, mas por que não fora ele mesmo ao Engenho Novo? Não - mandara Mamede, um vagabundo..."

— Vergonha, compadre.

— Qual vergonha! Orgulho, tolices...

— É vergonha, compadre. Depois do que aconteceu ele tem vergonha de aparecer a todos os conhecidos. Eu mesma, o senhor vê? eu mesma não procuro ninguém, meto-me no meu canto, curtindo calada os meus desgostos. Deixe lá, compadre! - suspirou enclavinhando as mãos.

Paulo mal distinguia os dois vultos como sombras levemente esfumadas numa tela. Rilhava os dentes. O seu desejo era escancarar a porta, entrar arrebatadamente na sala, atirar-se ao velho às bofetadas.

Parecia um senhor a repreender uma escrava. Revoltava-se contra a paciência humilde de Dona Júlia. Devia ser mais enérgica, devia repelir o idiota. Repentinamente o coração bateu-lhe com força. Chegou-se mais à porta: a velha rejeitava o dinheiro que o compadre oferecia.

— Não, obrigada. Sempre é uma dívida e eu agora não sei quando poderei pagar. Ele arranjou. Fez-se silêncio. Orgulho? Pobre de mim! Se eu dantes não tinha, quanto mais agora. Arranjou, palavra!

— Então... resmungou o velho.

E Paulo, satisfeito, ria acenando de cabeça, a aplaudir. Endireitou-se, de mãos nos rins, cansado da posição que mantivera. Sentou-se a mesa com muito cuidado e, tomando o lápis, recomeçou os cálculos pensando em números da roleta.

Longe, a sereia de um paquete reboava soturna. Ficou a encher de somas as folhas de papel rabiscadas até que ouviu a porta da rua guinchar e a voz do Fábio, a despedirse. Pouco depois Dona Júlia bateu no vidro, chamando-o.

— Já vou. - Enfiou apressadamente as calças e, em mangas de camisa, arrastando chinelas, saiu do quarto, dizendo logo, com ódio:

— Veio falar de mim, essa besta...

— Não, não falou.

— Ora! não falou... Eu ouvi tudo, mamãe.

— Ficou aborrecido porque mandaste Mamede.

— Sim... Queria que eu fosse para pregar-me um dos tais sermões. A senhora fez bem em não aceitar o dinheiro. Que o guarde, não precisamos de esmolas. Pensava, sem dúvida, que íamos morrer à mingua. A mim é que ele não engana. - E foi caminhando para a sala de jantar.

O dia estava enevoado e triste; o ar frio picava. Paulo, a olhar o quintalejo, esfregava os braços voluptuosamente e, quando Felícia apareceu com o café, sentou-se trincando o pão com apetite. Cantavam na vizinhança e a voz, fresca e aguda, vibrava em trilos alegres.

— Onde estão os jornais?

— Em cima da mesa, - disse Felícia do corredor.

Estavam debaixo de umas velhas camisas que Dona Júlia remendava. Sentou-se na cadeira de balanço e, de pernas cruzadas, pôs-se a ler as folhas. As camaxirras chilreavam no jardim vizinho e o sol, rompendo as nuvens escuras, brilhou um instante, mas foi esmaecendo e, de novo, o dia entristeceu e esfriou. Com os olhos nas colunas dos jornais Paulo não via mais que manchas - o seu espírito estava longe. Por vezes demorava um instante nos períodos - aqui, num telegrama; ali, numa local: mas outra nuvem passava e lá volvia ele aos castelos do sonho, à fortuna, ao amor - ganhando à banca, torcendo-se de volúpia, vendo pilhas de fichas ou os olhos negros, irrequietos de Ritinha. Atirou longe os jornais e levantou-se bocejando alto, a estrincar os dedos.

— Que dia fúnebre!

— É volta de tempo. Amanhã é lua nova - explicou a velha limpando os óculos.

— Está frio. - E, lentamente, esfregando as mãos, foi caminhando para o quintal. - Onde está a toalha, Felícia?

— Na corda, nhonhô.

Dona Júlia sentou-se junto à janela e, tomando as velhas camisas, pôs-se a examiná-las vagarosamente. E ali ficou, numa curta felicidade, esquecida da sua mágoa, como se nada houvesse perturbado a tranqüilidade de sua vida modesta e mansa.

Esses instantes eram rápidos e raros. Às vezes, cosendo, distraída, entoava baixinho modinhas tristes, mas voltando-lhe a lembrança da filha, calava-se envergonhada como se ali houvesse um morto ou se o dia fosse de respeito, como os da Semana Santa. A alegria passava fugitivamente por aquele coração ferido, como a sombra duma ave rasteja n'água de uma lagoa triste. Quando o filho reapareceu já a encontrou na tortura.

— Viste na Gazeta o suicídio daquela moça?

— Não, senhora.

— Dezoito anos! - suspirou baixando a cabeça ao peso dum pensamento doloroso. - É duma coisa assim que eu tenho medo. E levantou os olhos que brilhavam úmidos por trás das lentes dos óculos de ferro. - É mesmo, meu filho. Foi uma loucura, mas sabe Deus se, a esta hora, ela não está arrependida por aí. É por isso que eu não durmo.

— Ora, mamãe... Está a senhora a gastar cera com ruim defunto.

— Para que falas assim!

Encarou-o repreensiva e já as lágrimas rolavam-lhe dos olhos, grossas e compridas, caindo nas velhas camisas que ela amontoara ao colo, quando Paulo, encolhendo os ombros, resmungou:

— Está bom...

— Deixa! o choro alivia-me.

— Mas mamãe há de passar toda a vida chorando?

— E achas que posso viver alegre?

— Mas isso aborrece.

— Aborrece... Aborrece por quê? Eu não tenho o teu coração. Vivo aqui sozinha e, quem me faz companhia, ainda assim, é ela.

— Violante?

— Então?

— Pois sim...

— Agradece a Deus esse gênio. És indiferente, não te importas. Eu não sou assim. Que hei de fazer? A culpa não é minha.

Estavam os dois conversando quando Felícia entrou na sala, a correr, espantada como se houvesse visto algo de sobrenatural. Paulo encarou-a.

— Que é?

A negra resmungava, com os olhos cravados no corredor da cozinha; pôs-se depois a examinar o vestido, a esfregar os braços; e respirou largamente.

— Que é, Felícia? - perguntou Dona Júlia, descansando os óculos na costura.

— Que coisa, minh'ama! Esta casa não é direita - e meneou com a cabeça lentamente. - Não é direita, não. Já não é a primeira que me acontece.

— Que foi? indagou o estudante.

— É alma, nhonhô. Eu ouço voz: chamam por mim, puxam o meu vestido. Outro dia, eu estava estendendo roupa no quintal, e ouvi um gemido saindo do chão, como de gente enterrada. Fiquei toda arrepiada, com os cabelos em pé, e corri para dentro. Estava batendo meio-dia.

— Tu estás malucando, rapariga - disse Paulo com indiferença.

— Malucando... Eu só queria que vosmecê ouvisse. Esta casa não é direita, - repetiu d'olhos baixos, fazendo com a mão um gesto negativo. - Não é direita, não! Queira Deus que seja maluquice minha; e vagarosamente, receosamente, foi caminhando para a cozinha.

Uma chuva miúda, peneirada, batida de vento, entrava pela janela. orvalhando o oleado da mesa. Paulo desceu a vidraça, murmurando contra aquele tempo inconstante. O céu estava completamente encoberto, não havia mais esperança de sol, e o mar, enfurecido, estrondava d'encontro ao cais.

— Vais sair com este tempo?

— Que remédio!

— Mas almoças primeiro?

— Almoço.

Recolheu-se ao quarto e, com a toalha úmida pelos ombros, esfregando as mãos, ficou a pensar no jogo que devia fazer. Antes, porém podia dar um pulo à estalagem: prometera um presente à Ritinha; ao mesmo tempo resolveriam sobre a mudança, traçando o programa amoroso da vida em comum, num cantinho que ele mobilaria com gosto, onde poderia passar parte das noites gozando os carinhos dengosos da mulata. Pôs-se a assobiar, indo e vindo no acanhado aposento, até que ouviu uma badalada de sino. Meio-dia! Ficou espantado e, às pressas, como se o chamassem negócios, atirou longe a toalha e começou a vestir-se azafamadamente. Ainda atava a gravata, quando abriu a porta e bradou:

— Olhe o meu almoço, mamãe.

À mesa, preocupado, mastigava maquinalmente, d'olhos parados, balançando as pernas. Dona Júlia notou-lhe a distração.

— Tu não estás aqui, Paulo.

— Senhora!? - exclamou ele, como se houvesse sido despertado.

— Estás tão distraído...

— Pensando na vida.

— Pois sim, mas come descansado. Essa comida, assim, não sustenta. Há tempo para tudo.

— Fala-se em um concurso na Secretaria do Exterior, - disse abruptamente. - Estou com vontade de entrar. - Baixou os olhos e, de cotovelos fincados na mesa, a cabeça nas mãos, ajuntou: Só assim eu me veria livre desta canalha. Somos nós dois apenas... - Dona Júlia olhava, sem compreender o que ele dizia. Mamãe não tem vontade de ver a Europa?

— Eu? Sair daqui? Deus me livre! Que vou eu buscar na Europa?

— Ora, que vai buscar... Pois eu ando a pensar nisso. A diplomacia foi sempre o meu ideal. Que futuro tenho eu aqui?

— Pois não estás estudando medicina?

— Ora, médicos há-os por aí aos centos, pedindo empregos públicos. Não vale a pena perder seis anos em uma Academia para andar, depois, atrás de ministros, implorando um lugar de amanuense. Demais, com essa história de Violante, não tenho coragem de voltar à faculdade. Enfim...

Levantou-se, foi à janela olhar através dos vidros embaçados.

— Deus me livre de sair daqui - resmungou Dona Júlia, raspando da toalha umas migas de pão. - Não abandono minha filha, isso nunca!

Uma cena estranha, que se passava à porta da cozinha, levou a atenção dos dois para aquele ponto. Felícia, ajoelhada na soleira, à chuva, a cabeça toda para trás, os braços abertos em cruz, olhava enlevadamente o céu, a chorar. De instante a instante esmurrava o peito suspirando agoniadamente. Os dois olhavam embasbacados, e a negra, sem dar por eles, continuava naquele êxtase, supliciando-se.

— Que tem Felícia, mamãe?

— Não sei.

— Essa rapariga não anda boa.

— Parece que, com a morte do filho, a coitada ficou sofrendo.

— De que morreu ele?

— Morreu na revolta. Dizem que foi degolado. Era marinheiro.

— Felícia! bradou o rapaz.

A negra voltou a cabeça, espantada e, vendo-o, levantou-se e desapareceu. Ele foi à cozinha, já a encontrou junto ao fogão, enrolando a trunfa.

— Que história é essa, Felícia? Fizeste alguma promessa? Perguntou a rir.

— Não ria, nhonhô... Vosmecê é muito criança ainda, está começando a viver. Não ria, não.

— Mas que tens tu?

— Que é que eu tenho? Eu sei, meu senhor? Olhe, nhonhô, - explicou com mistério, chegando-se muito ao rapaz, para que ele lhe ouvisse bem as palavras: A gente está aqui e está lá. Não é a alma dos outros que vem, é da gente que vai. Quem morre descansa, quem está vivo é que vai mexer com os mortos. O cemitério é como uma casa de marimbondos: vosmecê passando quieto, os bichinhos não mordem, mas bulindo... - e curvou-se, arregalando muito os olhos, a fitar o rapaz. - Eu fui bulir... - concluiu, encolhendo os ombros com resignação.

— E os maribondos caíram em cima de ti.

— É, sim senhor.

Paulo não conteve o riso e, rindo, tornou à sala.

 

— Que tem ela? perguntou Dona Júlia.

— Disse que os mortos são como os maribondos. Foi bulir com eles e não a deixam.

Depois da saída de Paulo, Dona Júlia, que logo atinara com a causa da "maluquice" da negra, foi ter com ela e pôs-se a dar-lhe conselhos. "Que se deixasse de espiritismo. Não acreditasse naquelas comédias, visse o exemplo das outras. Se quisesse fazer alguma coisa pela alma do filho, mandasse rezar uma missa. Aquilo era uma exploração, uma vergonha que a polícia devia proibir."

A negra protestou, defendendo a sua crença:

— Não! minh'ama, desculpe, mas vosmecê não tem razão; antes de eu ir lá era pior: não podia dormir. Agora ainda eu descanso, e dantes? Vosmecê não tem razão. Eu sei que meu filho vem me buscar, e minha ama pensa que eu tenho medo? Não senhora. Se fosse ele só, eu ficava contente, mas é que, atrás dele, vêm muitos e são maus. querem a minha perdição; desses é que eu tenho medo. Se eu dissesse a vosmecê os conselhos que eles me dão, vosmecê havia de dizer que eu estava variando. Desses é que eu tenho medo, desses sim.

— Mas não te metas mais com aquela gente, confia em Deus, entrega-te a Nossa Senhora. Tu não sofres mais do que eu: perdeste teu filho, e eu?

— Nhá Violante está viva, pode voltar. Damião... esse...

— Está com Deus.

— Qual, minh'ama, isso é o que a gente diz.

E as duas continuaram ainda conversando.

 

 

Capítulo X

Paulo, chegando ao largo da Carioca, avistou Mamede num grupo, á porta do Café Paris. Lembrou-se de Ritinha: estava só, podia ir vêl-a com segurança. O mulato não déra por elle — lá estava a falar, com largos gestos, sacudindo as abas de um cavour cinzento. Era cedo para o seu jogo, tinha tempo de chegar á estalagem — e foi caminhando para a rua da Carioca. Passou um bonde apinhado, com as cortinas esvoaçando, e Paulo, hesitante, com receio de ser pilhado pelo mulato, já seguia para a esquina, a espial-o, quando o viu passar, apressado, entrando na rua da Uruguayana para a Cordeiro...) pensou, mas, para certificar-se, seguiu-o á distancia, e só descançou quando o viu enveredar para a rua da Conceição. Podia ir tranquillo porque, ainda perdendo, Mamede só deixava a batota quando o banqueiro suspendia o jogo. Ficava peruando, a filar cigarros, esperando um amigo, um conhecido, que lhe emprestasse uns cobres e, quando saía, a pretexto de negócios, era para ir para a Rua do Ouvidor, pescar alguma coisa para tentar a desforra.

Entrou na confeitaria, escolheu doces, frutas e, tomando um tílburi, mandou tocar para a Rua do Riachuelo. Para o jogo era cedo, raros seriam os pontos àquela hora. Às vezes o Junqueira, para matar o tempo, arriscava-se a bancar o dado. A roleta só funcionava à noite.

A estalagem estava enlameada, com poças fundas, mas, apesar da chuva, o trabalho prosseguia. As lavadeiras lá estavam, dobradas sobre as tinas, cantando e esfregando a roupa. A máquina do alfaiate trepidava com fúria e, sob uma coberta de zinco, um velho amolador, em mangas de camisa, pedalava com lentidão, afiando um machado.

Antes de chegar à casa de Ritinha, ouvia-lhe o riso vibrante: tinha visita. Esteve um momento parado, protegendo os embrulhos sob o guarda-chuva, mas não querendo despertar a coscuvilhice daquela gente, entrou no pequeno jardim, e, abrigado sob a latada, que gotejava, pediu licença.

— Quem é? perguntou a mulata.

— Mamede está?

— Oh! É o senhor? Entre. Então precisa pedir licença? Mamede não está, mas é o mesmo.

Apareceu à porta, risonha. Uma crioula gorda, com a cara esfuracada pelas bexigas, levantou-se vexada, cumprimentando-o. Ritinha apresentou-a:

— Dona Castorina. É quem cose para mim. Fomos vizinhas muito tempo. Sente-se - e ofereceu uma cadeira ao estudante. - Bom tempo aquele! relembrou saudosa. Qual! eu ainda volto para aquela casinha, - disse com a cabeça pendida, alisando molemente os cabelos. - Tola fui eu em ouvir cantos de sereias... Podia estar muito bem.

A crioula arregalou os olhos e, sorrindo, acenou afirmativamente.

— A senhora não imagina como eu tenho saudades daquele lugar, a gente vivia independente, à sua vontade, não era isto! - e esticou um beicinho desprezível. - Não nasci para morar em cortiço. A gente tem casa e não tem: volta e meia é um vizinho pedindo uma coisa e outra. A senhora pensa? O que eles querem é meter o nariz na vida da gente. Comigo não! Eu passo por soberba, mas tanto se me dá como se me deu. Bom dia, boa tarde e acabou-se. Eu, não. A senhora não acha?

A crioula sorriu, já de pé, concordando:

— Ora! não há como uma casa: custa mais um pouco, mas a gente está sossegada. - E despediu-se desculpando-se: "Tinha ainda umas voltas..."

Estendeu a mão ao estudante e as duas caminharam para a porta, ficaram algum tempo cochichando, à risota.

— Cuidado com a lama. Vejam como está isto. Parece um chiqueiro.

E a crioula, abrindo o guarda-chuva, com a saia arrepanhada, despediu-se:

— Adeusinho! Apareça.

— Sim.

Voltando-se repentinamente, a mulata fitou o estudante com um malicioso.

— Então, como vais?

— Eu, bem; e o senhor?

Paulo foi buscá-la à porta, enlaçou-a pela cinta, beijou-a. Ela recebeu-o com indiferença, deixando-se levar molemente.

— Estás zangada? - perguntou sentando-a nos joelhos.

— Eu, não. Por quê?

— Tão fria...

— Como queria o senhor que eu estivesse?

— Tu não és assim...

— Eu danço conforme tocam, - disse baixando a cabeça.

— É por que não tenho aparecido?

— Decerto.

— Se soubesses como tenho andado atrapalhado.

— Faço idéia...! Já acharam sua irmã?

— Qual! Escuta, disse ele, evitando o assunto: Pensaste no que te propus?

— Que foi? Não me lembro.

— Vivermos juntos.

Olharam-se longamente, por fim a mulata meneou com a cabeça.

— Não. Tudo quanto o senhor quiser, menos isso.

— Por quê?

— Porque não.

— Gostas mais de Mamede?

Ela conservou-se calada, retorcendo a renda do casaco.

— Fala.

— Não é por isso.

— Então por que é?

Ela deu d'ombros.

— Fala.

— Não sou mulher para o senhor.

— Por quê?

— Ora... por quê! O senhor bem sabe.

E, de olhos baixos, com a voz arrulhante:

— A gente dá um passo desses, depois arrepende-se e quem sofre é a mulher. Olhe, uma companheira minha, por nome Belmira, vivia com um moço empregado na Estrada de Ferro. Ele não lhe dava luxo porque não podia, mas nada lhe faltava, verdade seja dita. Um dia, por uma coisa à-toa, brigaram e Belmira, que já andava de namoro com um mocinho como o senhor, deu um pontapé no seu homem e foi para a companhia do outro. Viveram bem durante um ano, mas o moço formou-se e foi para a terra dele prometendo voltar e a coitada ficou para aí com uma filhinha, sem um pão para comer. Não...

— E pensas que eu sou capaz de fazer o mesmo contigo?

— Ora! Eu sei o que são entusiasmos... - e esticou o braço para a mesa: que é que tem nesse embrulho?

— Frutas e doces.

— Para mim?

— Para quem hão de ser? Mas vamos ao nosso caso: Queres ou não?

— Não. - Voltou rapidamente a cabeça. - Mas me diga uma coisa: o senhor não vem aqui quando quer?

— Venho.

— E então?!

— Mas quero que sejas só minha! - exclamou apertando-a com frenesi.

— Isso é lembrança. Que tem uma coisa com outra?

— Tem muito.

— Qual nada!

Tomou o embrulho ao colo, desfê-lo separando os dois que vinham unidos. Palpou-os e, sentindo as frutas, rasgou o papel.

— Assim até tem mais graça e quando o senhor me enjoar pode dizer adeusinho.

E, arregaçando faceiramente o lábio, com a cabeça pendida trincou uma pêra.

— Então decididamente não queres?

— Olhe, quer saber? a coisa de que eu tenho mais medo neste mundo é barriga. Deus me livre! Se eu fosse como muitas que há por aí, isso sim, mas eu! Eu, se tiver um filho, na roda é que ele não vai - mal ou bem hei de criá-lo, o pouco que eu tiver há de chegar para ele. Não quero que Deus me castigue por causa de maluquices. Se vier...

— E Mamede?

— Ah! Mamede é da minha cor, não terá vergonha do meu filho. mas com um moço branco como o senhor... Não! Amanhã encontra uma moça bonita, quer casar... e Ritinha que se agüente no balanço.

— Má!

— Má, por quê?

Encararam-se e ele, apertando-a, ameaçou-a:

— Pois eu venho aqui todos os dias!

— Pode vir, contanto que Mamede não saiba.

— Que saiba! pouco me importa.

— Isso não, que eu não quero cenas comigo. Se o senhor tivesse uma moça por sua conta gostava que ela recebesse outro homem? Não, o direito é o direito. E para quê?

Olhou-o e, vendo-lhe os olhos abrasados, desatou a rir, resmungando:

— Hum! até faz medo à gente... Nossa Senhora!

— Pois eu já tinha apalavrado um cômodo.

— Eu não moro em cômodos.

— Por quê?

— Não gosto.

— Pois eu vejo uma casinha.

— Não quero, já disse. Que teima!

— Mas quero eu! - rugiu Paulo, apertando-a com fúria, procurando-lhe sofregamente a boca úmida que ela desviava encolhendo-se, a rir. Encontraram-se, por fim, os lábios e Ritinha, vencida, derreou a cabeça, retesando a gorja. Os braços penderam-lhe flacidamente, foram-se-lhe os olhos fechando... Súbito, porém, como se a ardência do estudante se lhe houvesse comunicado, correndo-lhe as veias, agitando-lhe os nervos, lançou-lhe os braços ao pescoço e enlaçou-o. Desprendendo-se, ofegante, com a boca entreaberta, levantou-se. Paulo correu à porta e ia fechá-la, quando ela avançou, retendo-o:

— Está maluco!? Pensa que essa gente não viu o senhor entrar? Deus me livre! Logo mais estava tudo nos ouvidos de Mamede. Não, deixe a porta assim mesmo.

— E se ele vier?

— Qual! Ele não vem agora. Está no jogo.

— Isso sei eu que o vi passar para a casa do Cordeiro.

— Pois então?

— Mas pode aparecer por aí.

— Qual nada! Só à noite.

Tomou outra pêra, mas Paulo arrancou-lha da mão.

— Deixa-te disso agora.

— Que é que tem?

— Ora!

Ela abandonou a fruta sobre a mesa, ele beijou-a.

— Olhe, eu digo a Mamede que o senhor esteve aqui antes que ele saiba por algum desses intrigantes. Não quero histórias comigo.

— Pois sim.

Eram quatro horas da tarde quando Paulo, com um último beijo, disse adeus à Ritinha. Chovia e a estalagem triste, de desusada tranqüilidade, com as compridas cordas gotejando e oscilando ao vento, as tinas abandonadas, os coradouros vazios, parecia deserta. Dois pequenos agachados à beira de uma sarjeta, impeliam para a correnteza barquinhos de papel; galinhas muito murchas, encolhidas a um canto, tiritavam encharcadas.

A porta de uma casinha robusta mulher, encostada ao umbral, uma das mãos engastando o queixo, olhava, com melancolia, o céu carregado, cinzento, sem esperança de sol. Adiante, em outra casinha, a família jantava. O homem, já grisalho, em mangas de camisa, à cabeceira da mesa, os braços muito abertos, as bochechas cheias, todo derreado sobre o prato, devorava. Um pequenote, balançando as perninhas escalavradas, esmagava o bolo de feijão; a mulher, magra, triste, comia lentamente, com ar enfastiado. De pé, na penumbra, ao fundo, uma rapariga ruiva, com um prato sob o queixo, chupava talhadas de laranja, chuchurreando tão alto que se ouvia de fora, e um cão negro, sentado, com as orelhas atentamente fincadas, olhava o homem, à espera de algum bocado.

Meninos, com as calças arregaçadas, chapinhavam sordidamente na lama, aos gritos. Entrava gente - um velho mascate, curvado ao peso da grande caixa; um vendedor de fósforos, com o tabuleiro suspenso à altura do ventre, coberto por um encerado; operários, com as ferramentas, e, à porta da venda, que comunicava com a larga entrada da estalagem, em túnel, havia um ajuntamento: homens de pé, outros sentados em pedras, fumando, conversando.

Fora, ao portão, um garoto apregoava os jornais da tarde. Cães morrinhentos dormitavam pelos cantos e, defronte, num sobradinho amarelo, uma mulher gorda, com fofos de renda à volta do pescoço, chupava roletes de cana, atirando o bagaço à rua.

Apesar da chuva insistente, Paulo adiantou-se para tornar o bonde mais em cima, receando que Mamede o encontrasse ali àquela hora. O bonde estava enlameado e, com o bater das cortinas, iam-lhe ao rosto friíssimos respingos.

Era cedo, talvez, para o jantar. Repentinamente um escrúpulo assaltou-o: "Não, não ia jantar à batota para que o não tomassem por um parasita; tinha dinheiro bastante para pagar-se um bom jantar, bem regado e silencioso".

Detestava as conversas da tavolagem: eram sempre os mesmos assuntos triviais - mulheres e sorte à banca, caprichos da roleta ou dos dados e fantasias de cocottes ou, então, a reles política, recapitulações de artigos de fundo, com os comentários imbecis dos críticos da Rua do Ouvidor.

Só o Junqueira sabia conduzir a palestra para as largas regiões da inteligência, e quando aparecia o Aurélio Mendes, autor do Incréu, romance macabro, vivido em eras obscuras, com alquimistas e bruxas, que era uma critica sutil aos costumes contemporâneos, então apontavam idéias, ressoavam frases, rebrilhavam imagens, explodiam paradoxos. Mas Aurélio andava adoentado e raramente subia à roleta, passando os dias no Laemmert, a folhear brochuras ou na Biblioteca, pesquisando, escavando assuntos para novelas e poemas.

Foi jantar ao Globo. Comia tranqüilamente, olhando as gravuras de uma revista inglesa, quando descobriu, em uma mesa fronteira, dois rapazes que trocavam segredos, olhando-o. Sentiu todo o sangue afluir-lhe ao rosto e, nervoso, carrancudo, chamou o criado e pediu uma garrafa d'água mineral.

Os rapazes continuavam a sorrir e Paulo, a mais e mais perturbado, acompanhava-lhes os movimentos, mirando-os de soslaio. Uma gargalhada estourou, ele recebeu-a em cheio, como uma afronta; o próprio criado, correndo com a garrafa de Seltz, a perguntar-lhe se queria gelo, tinha nos lábios um sorriso escarninho.

Era dele que tratavam e aquela zombaria ligava-se, com certeza, à fuga da irmã. Algum daqueles tipos conhecia-a, era, talvez, o seu amante, e ria-se, narrando, sem dúvida, ao companheiro, fatos miúdos da vida doméstica que lhe relatara Violante - as brigas, as ameaças e, finalmente, a fuga naquela noite agreste.

Mal encetou a costeleta que pedira, rejeitou a sobremesa e foi mais por vergonha do criado, que se serviu de um pouco de queijo. Pagou e saiu, atordoado, como perseguido pelo clamor de uma vaia. Canalhas! rosnou, descendo a escada.

A chuva jorrava torrencial e com muito vento. Ficou no botequim do pavimento térreo, abancou a uma mesa, pediu café e cognac, e quedou acabrunhado, os olhos ao longe, a pensar, com ódio, nos rapazes, desejando um desforço, uma vingança ruidosa. Canalhas!

Lançou os olhos ao relógio - eram cinco e meia, e estava escuro como se fosse noite. Que fazer com aquele aguaceiro? Revoltou-se contra o tempo; parecia um castigo e, como para justificar-se perante Deus, pôs-se a murmurar, passeando pela mesa o seu cálice de cognac:

"Se fosse por vício... Arranjasse eu um emprego... Mas que hei de fazer?" Calou-se, mas intimamente continuou a alegar razões: "Achasse eu um bom lugar... Como manter a casa? A culpa não é minha, bem que tenho procurado - negam-me sempre: que não há vagas..." E, convencido daquele sonho, como se efetivamente houvesse andado a implorar em vão, indignou-se contra os políticos, uns medíocres, que só queriam imbecis que os não suplantassem. "Pulhas!"

A esperança refugiou-o no jogo. Súbito os dois rapazes apareceram, rindo, e era dele que riam - haviam-no avistado. Pagou e levantou-se impetuosamente, sem que os rapazes dessem pela sua fúria.

Fazia um frio de inverno e, com as refregas de vento, a chuva penetrava, gelada, borrifando as mesas mais próximas da porta. Ouvia-se o gorgorejo d'água, que golfava das gárgulas, formando enxurradas. Tílburis passavam à pressa; as goteiras rufavam nos guarda-chuvas.

O botequim enchia-se de gente, que entrava a correr, fugindo à borrasca - uns, limpando os casacos, metiam-se para o fundo, procurando lugar às mesas; outros ficavam pacientemente à porta, esperando uma estiada.

Paulo não se atrevia a sair e começava a impacientar-se, quando viu vir um menino, a correr, rente com a parede, a procurar abrigo. Chamou-o. O garoto levantou a cabeça e deteve-se, com a chuva a bater-lhe nas costas, a escorrer-lhe pelo rosto. Paulo ofereceu-lhe uma gorjeta, para que lhe fosse buscar um tílburi. O pequeno curvou-se, ganhou a rua de um salto, a correr, logo desaparecendo, abrumado pelo aguaceiro.

Um velho, que se acolhera junto à escada, murmurou, aborrecido: "Que tempo!" e logo outro, refugiado, achando ensejo para desabafo, pôs-se a vociferar contra a Prefeitura e os "senhores intendentes", que se abotoavam com o dinheiro do povo, "o nosso sangue", deixando as ruas naquele lamentável estado. Era uma vergonha!

E toda aquela gente, que o temporal prendia, vitimas do mesmo suplício, buscando um derivativo para a cólera, rompeu em acrimoniosas censuras contra o governo, lamentando que tão linda cidade fosse assim esquecida, tornando-se um esterquilínio, um foco de moléstias. O velho ousou uma tímida referência ao tempo da monarquia:

"Era outra coisa. Havia mais cuidado, isso havia. Mais cuidado e mais respeito."

— Ora qual! Vem agora o senhor com a monarquia. No tempo da monarquia era pior. Eu também de lá venho! - berrou um sujeito magro, de pêra, levantando a gola do casaco. - A imundície data de velho tempo e há de acompanhar o país até a consumação dos séculos. É uma praga! Qual monarquia, qual história!

O velho investiu, nervoso, cruzando os braços sobre o guarda-chuva molhado:

— Era pior, era pior, diz o senhor; mas quanto custava um quilo carne? um cruzado!

— À pataca comprei eu muita, e da boa! - emendou outro

— Sim, senhor: à pataca, - confirmou o velho. - E hoje?

— Mas nós falamos de carne ou da imundície da cidade, dos meus esgotos?

— De tudo. É tudo uma patifaria! - rouquejou o velho. Não temos homens... Para que homens? — Para que?!

— Sim, para que?

— Para endireitarem isto.

— Endireitarem... Homens temos nós de sobra. Quer o senhor saber que é que nos falta?

— É vergonha! é patriotismo...!

— Historias! o que nos falta é dinheiro. Os homens são os mesmos, os vicios são os mesinos, estamos como dantes. Houve apenas mudança de rotulo. Explodiu um «apoiado», e o da pêra repetiu: «É isso... houve apenas mudança de rotulo.» A algazarra crescia no fundo do botequim, ao tinir de copos, ao estourar de garrafas, e um bafio quente vinha de dentro, como de um enorme calorifero.

— Decididamente esta coisa não passa, disse o da pera, com impaciencia, e abrindo o guardachuva, despediu-se: «Boa noite, meus senhores!» e arrojou-se. Houve um surdo rufo e o homem lá se foi, a largas pernadas, muito esguio, como um cogumelo negro levado pela enxurrada. Um tilbury appareceu vagaroso, e parou diante do Carceller; pouco depois o garoto surgiu, cançado, com as roupas colladas ao corpo, desenhando-llie as formas mirradas.

— O tilbury está ahi, moço.

Paulo metteu-lhe uma nota na mão e, abrindo o guarda-chuva, em pontas de pés, aos saltos, atravessou o passeio alagado, ganhando o tilbury, e mandou tocar para o largo do Rocio.

Logo ao entrar na batota soube, pelo porteiro, que lhe abriu a grade, que o jogo ainda não havia começado, por falta de pontos. Efetivamente, ao chegar ao fundo do segundo andar, já com todos os bicos de gás fulgurando, encontrou o Messias e os seus ajudantes, reunidos na sala do bilhar, onde reluzia a buvette de mármore, ouvindo as invectivas do Aurélio Mendes. Trocou ligeiros apertos de mão e sentou-se a um canto, discretamente, para não interromper a facúndia do "sinfonista verbal".

Aurélio, muito apiançado da asma, estava em um dos seus dias e. apesar da dispnéia, que o forçava a escancarar a boca de instante a instante, numa necessidade de ar, vociferava contra as "múmias", essa legião decrépita de lorpas, sem imaginação, sem estilo, que empanturrava o mercado de sandices, concorrendo criminosamente para a imbecilização do indígena. Citava autores e obras, recitava trechos, pedindo que lhe mostrassem, naquelas verbiagens insulsas, um período, uma frase, um só vocábulo que revelasse emoção, estesia. Era tudo palhada, tudo palhada! afirmou com desprezo, engrolando um grosso pigarro. Messias, muito míope, d'olhos apertados, em dois talhos, para manter a fama de espirituoso de que gozava, atirou-lhe uma piada:

— Deixa lá, Aurélio, há de chegar o teu dia. O diabo é essa asma que te arrasa. Mas não importa! Hás de ainda de passar aqui pelo Rocio num andor, com uma coroa como a de Camões, e nós lá estaremos à janela, com flores. Hás de ter o teu dia... Mas vê lá essa tosse, isso é que não vai bem.

Os ficheiros riram com estardalhaço e os olhos do Messias apertaram-se ainda mais. Aurélio, com a pilhéria do andor, ficou apoplético e bramiu:

"Não rissem. Lá isso de andor era uma história, mas a baboseira havia de acabar, a Arte Nova aí vinha, sonora e rica, luminosa e forte, veriam! O povo havia de convencer-se de que tudo aquilo não valia os bocejos que provocava e a verdadeira, a pura Arte seria largamente indenizada." E confessou que não desanimava, que havia de trabalhar sempre, com fé: tinha no fundo da gaveta dois poemas e outro romance, além do Incréu, cuja tese era a emancipação da mulher, com um protesto contra o celibato clerical.

— Hás de ter a tua estátua, Aurélio; afirmou Messias estalando os dedos.

— Não me preocupo com banalidades - retorquiu o poeta, abafando um acesso de tosse. E já se dispunha a dar um "pálido esboço" da sua grande tese feminista, quando Junqueira apareceu com um homem gordo, de óculos escuros, ferozmente carrancudo e barbado.

Messias, esquecendo o grande artista, levantouse risonho, muito amável com o Junqueira que murmurava contra o tempo insípido. O gordo reclamou, com pressa, um cálice de cognac que um dos ficheiros logo serviu, açodado e sorrindo.

Era deputado por um dos Estados do Norte. Na Câmara encaramujava-se num silêncio obstinado, contentando-se em dar o seu voto de grande peso nos destinos da Nação. Fora, alijando a gravidade legislativa, era homem alegre e de aventuras - tinha amores, freqüentava assiduamente os cassinos e, uma vez por outra, palpitando, subia sorrateiramente à batota para fazer medrar uns restos escassos do subsídio, e era à mesa dos chopes ou com os cotovelos no pano verde que lançava as suas opiniões sobre a crise financeira, propugnando a necessidade da revisão e duma esquadra que vigiasse os mares.

Paulo, com a chegada do Junqueira e do deputado, animou-se, certo de que o jogo começaria logo, tão impaciente estava por aplicar os planos que imaginara. Aurélio convidou-o para uma partida ao bilhar, logo, porém, Messias anunciou "que iam começar". Paulo aventurou timidamente:

— Mas não há pontos.

— Como não? Para começarmos há o senhor, o Junqueira, o doutor e aqui o nosso Aurélio, que também joga. Não arriscas um pouco, poeta?

— Sim, um pouco, - murmurou complacente, atirando uma tacada.

Os ficheiros passaram à sala da roleta e Messias, no seu andar de palmípede, lá os foi seguindo, vagarosamente.

Chegavam outros pontos subindo as escadas com rumor. Por uma janelinha, ao fundo da sala do jogo, aberta sobre o telhado, esfuziava um vento áspero. Messias fechou-a declarando, com a sua voz macia e imperturbável: "Que chovia a potes". Em torno da roleta empilhavam-se fichas de várias cores e ao lado de Messias acastelavam-se maços de cartões.

Enquanto esperava, Paulo, indo e vindo, consultava-se: Se devia começar jogando forte, fazendo paradas atrevidas que, em dois ou três golpes, o levantassem; se devia insistir no joguinho manhoso, sem comprometer-se, até conseguir um bom lucro para atirar-se, então, afoitamente. Acercou-se de Messias, que já assumira o seu lugar à banca e, com a mão no bolso, acariciava as notas, olhando, ora as fichas, ora os cartões, indeciso, quando os dois outros pontos entraram, vociferando contra a noite estúpida.

Não os conhecia; logo, porém, notou que eram íntimos pela liberdade com que tratavam o banqueiro. Um deles, já velho, abrindo a bojuda carteira, pediu cem fichas; o companheiro contentou-se com a metade. Junqueira e o deputado pediram cartões. Aurélio esgueirou-se sorrateiramente com a coleção das vermelhas e foi sentar-se à cabeceira da mesa para esperar no grande. Na sala do bilhar havia mais gente e Messias voltava-se de quando em quando para espiar; por fim fez soar a campainha que retiniu longamente. De fora bradavam: "Já vamos!"

— É o Narciso, está no cognac, - disse Messias escolhendo uma bola.

Um dos ficheiros foi à lousa marcar o tempo da banca: 8 e 40. A roleta girava, macia e silenciosa. Paulo estendeu uma nota de cem mil-réis.

— Uma coleção.

— Tudo?

— Metade.

— Quer o troco em cartões?

— É indiferente.

— Para a terceira dúzia, não? Eu levo.

E o ficheiro, empilhando as fichas de madrepérola sobre cinco cartões, deixou-as à cabeceira da mesa. Aurélio, que calculava, levantou a cabeça:

— Vens jogar cá em cima?

— Sem dúvida. Sou fiel aos meus números.

— Deus queira que estejas com a sorte de ontem.

Junqueira e o deputado iam ladrilhando a cartões a segunda dúzia. O velho espalhava salteadamente, acompanhando um setor e o companheiro, muito atento, com o cigarro amolecido nos beiços, hesitante, passeava uma ficha de casa em casa, como se jogasse as damas.

Messias ia dar à bola quando um rapaz moreno, elegante, apareceu protestando contra a pressa. " Que, ao menos, lhe dessem tempo para fazer jogo. Que diabo! Limpassem-no, mas não com tanta ganância. Assim era demais."

— Sempre se espera pela pior figura, murmurou Messias.

— Quem sabe se eu havia de vir para aqui com os pés encharcados, sem tomar uma coisa? A culpa não é minha. Boa noite, meus senhores. E que cognac infame! Passem-me uma coleção. E a primeira bola? - e, espalhando montinhos de fichas, perguntava: Se haviam jogado durante o dia? Como se portara o zero? Quem ganhara?

O tapete estava coberto, mas o jogo crescia na terceira dúzia. Messias impeliu a roleta e a bola, atirada de resvalo, pôs-se a circular; foram depois saltinhos nas baias, aos estalidos. O deputado ainda aventurou dois cartões; o velho, a tremer, deixou umas fichas no 4. Houve um momento de contida atenção - todo o rumor cessara, posto que a bola ainda rolasse. De repente, a uma leve pancada, Messias anunciou:

"Jogo feito!" Aurélio fitou-o, Paulo ergueu-se na cadeira, à espera do número.

— 11.

E o rateau foi raspando fichas e cartões, numa confusão de cores, com um estralar de rocalha. Só o deputado levantou cinqüenta e dois cartões. Paulo insistiu nos seus números e Aurélio afirmou que vira o onze, vira-o, mas não jogava no pequeno.

— 3.

Narciso pôs-se a tossir e reclamou cognac. O número estava quase franco, apenas o companheiro do velho tinha lá uma ficha. Ele próprio acusou o lucro:

— 35 brancas, aqui.

— Sim senhor, seu Barroso, lá vão.

Ao quinto golpe, insistindo o pequeno, Aurélio levantou-se resmungando:

"Que não tinha vergonha. Se tivesse vergonha, nunca mais jogava um vintém. Vivia a engordar banqueiros." Deu uma volta pela sala, rondando Messias; logo porém, que a bola começou a girar, lá tornou ao seu posto. Paulo, sem uma ficha, brincava com os cartões, receoso.

— Não jogas? indagou o sinfonista.

— Estou sem palpite.

— Pois olha, eu é porque fiquei a tinir, senão atirava agora tudo no grande. Paulo tomou um cartão, ia-o levando para a segunda dúzia; ouvindo, porém, o trepidar da bola, numa inspiração, às pressas, nervosamente, espalhou os cinco cartões em vários números da última dezena e recuou, a esmoer o cigarro apagado, d'olhos no tapete. "Jogo feito!" O coração batia-lhe em sobressalto, faltava-lhe o ar e, quando Messias cantou "33!" ele sentiu um abalo de vertigem e respirou.

— 35 cartões, declarou um dos ficheiros.

— Eu disse! - afirmou Aurélio, esfregando as mãos triunfante. Era fatal!

E quando Paulo recebeu o maço de cartões, já resolvido a jogar forte, o sinfonista, roçando por ele, pediu-lhe "alguma coisa pelo palpite..."

Paulo amuou. O outro insistiu, humilde.

— Eu não gosto de emprestar cartões, Aurélio; isso traz caiporismo.

— Ó filho, pois tu, um homem de espírito, acreditas em baboseiras!

— Baboseiras, não: tenho visto. Enfim...

Passou-lhe dois cartões, e foi o bastante para que desistisse de jogar forte. Pediu uma coleção de fichas. Deu o 31. Trincou o beiço. Teve ímpeto de atirar um murro à cara ossuda e radiante de Aurélio, que levantara 105 fichas. Ele tinha apenas quatro fichas no número - um dos seus números! - e teria aventurado um cartão, talvez dois, se não fosse aquele pedido, que o encabulara.

Intimamente injuriava o glorioso autor do Incréu. Era aquilo sempre, não podia ver um conhecido ganhar. Que diabo! E trêmulo, frenético, bebendo as fichas, ia-as dispondo em ordem, carinhosamente. Junqueira, que estava de azar, volta e meia atirava uma cédula aos ficheiros. O deputado, rindo, atribuía a sua "macaca" à Leontine.

— Sempre que vou à casa do diabo da mulher é isto.

Paulo começava a aquecer-se. Pediu um kummel, disposto a fazer loucura. Não valia a pena estar ali a perder tempo com fichinhas: ou tudo nada; o melhor era atirar de uma vez, e, vendo a calma do Junqueira, que acamava cartões, cercando, com insistência, o 20, arrojou-se carregando no 29 e cobrindo corajosamente os demais números da última dezena.

— 7!

Narciso resmungou uma torpeza, e Barroso, sem tirar o cigarro da boca, mostrou três fichas. Paulo desabafou vendo os seus cartões, as suas fichas rolarem no monte, raspados pelo rateou:

— Estás vendo? Que te disse eu? Justamente quando a sorte começava, vieste com os tais pedidos...

— Ora qual!

— Pois sim, mas nunca me peças dinheiro quando eu estiver jogando.

— E tu não me pedes?

Paulo cresceu para o poeta, de olhos chispantes:

— Nunca! Nunca pedi, nem peço!

— Ora, não pedes...

Ainda resmungaram. O sinfonista, sorrindo, brincava com as fichas, deixando-as cair d'alto por entre os dedos apinhados. Paulo insistiu no grande, mas quando a roleta amorteceu, Messias, sorrindo, chasqueou:

— Não fale mal da Leontine, doutor... - e declarou com lentidão, arrastando a voz: 17.

Houve um largo suspiro de desabafo - o número estava carregado. O doutor tinha dois cartões em pleno, Junqueira tinha outros tantos, e alguns a cavalo e no esguicho; Barroso tinha duas fichas. E murmurava-se: "Era tempo... É número que não falha. Demora, mas sempre vem..."

O sereno Junqueira não se perturbara e continuava a fumar, sem uma ruga na face, sem mais brilho nos olhos, imutável. Paulo começava a desanimar - cem mil-réis já lá estavam nas cordas. Decididamente devia fazer como Junqueira - jogo forte e metódico, escolhendo um número, firmando-se nele - quando desse recuperava o perdido, e ainda lucrava, e, com uma repetição, estourava a banca. Aquilo sim, pensava, maravilhado e invejando, enquanto pagavam ao Junqueira a atrevida parada; aquilo é que era jogar, o mais... histórias!

O tempo da banca estava a expirar quando entraram outros pontos. O melhor era aguardar a outra banca, com o Faustino à bola. Messias era um "mão-de-ferro", ninguém escapava. Logo, porém, que a roleta recomeçou a girar, sem calma para manter o protesto, pediu fichas, concentrou-se no 29; pouco a pouco porém, irresistivelmente, foi, cobrindo números ao acaso, seguindo as mãos que andavam, aos esbarros, deixando fichas, arranjando cartões. Ainda o pequeno.

Retirou-se afogueado, sempre com a idéia fatal de que a sua sorte fora desviada pelo sinfonista. O seu olhar faiscava de ódio, tremiamlhe as mãos, e todo ele escaldava, como em febre. Messias anunciou, em voz rolante, a "última bola!". Narciso pediu fichas para "aquele infamíssimo zero" e, acumulando-o, injuriava-o.

— Vê lá agora, bandido! Juro que nunca mais estrago uma ficha neste miserável, se ele não sair desta vez. Há três dias que acompanho este monstro...

— É capaz de dar agora.

Alguns seguiram o Narciso. Paulo, para não comprar fichas, amarfanhou uma nota e lá a deixou. Deu o 8. Narciso rugiu, e o velho Barroso, cuspindo a ponta do cigarro, acusou - cinco fichas, a sua maior parada da noite.

— O senhor foi o herói, Sr. Barroso, aclamou o deputado.

— É, estava com alguma sorte.

— Se tivesse jogado com mais largueza...

— Tinha perdido, doutor. Este jogo só assim, a brincar; é como dá. Conheço-o muito. Em me alargando um bocado, são favas contadas.

— Fichas a troco.

Paulo contou o dinheiro e achou duzentos e quarenta mil-réis. Aurélio, junto ao Messias, acompanhava, com avidez, o troco que os ficheiros faziam - só o velho Barroso ganhara quantia apreciável. Junqueira, interpelado pelo Narciso sobre o prejuízo, deu d'ombros com indiferença; o deputado pôs-se a passear resmungando uma cançoneta. A esperança do estudante passou-se para a segunda banca - faria jogo mais ousado, longe do Aurélio, que o encaiporava, sempre a dar-lhe conselhos, a discutir, a comentar-lhe as paradas, sapeando, com os cotovelos fincados na mesa, o rosto esmagado entre as mãos lívidas. Foi à buvette, engoliu sofregamente um grog, receoso de perder a primeira bola.

Os pontos fumavam, beberricavam apressados cognacs, todos ansiosos. O próprio Junqueira que, entre uma e outra banca, costumava estirar-se um pouco na chaise longue, saboreando o seu whisky a pequenos goles, deixou-se ficar na sala da roleta, olhos no tapete, como a querer sondá-lo, penetrar a razão da sua longa e pertinaz desfortuna.

Messias continuava a bancar - lá estava repoltreado, pilheriando.

Já os ficheiros iam e vinham, açodados, deixando coleções aqui, ali. Um ar turvo, denso, tresandando acremente a fumo, pesava na sala. Paulo rejeitou as "pérolas", preferiu as sangue de boi. A sua primeira parada foi de um arrojo atrevido. Aurélio aplaudiu com entusiasmo:

— Assim, homem. Assim é que se joga. Nada de piabagem. Ele implorou:

— Pelo amor de Deus! não fales.

Narciso, injuriando o zero, cercava o 17. Mas quando a bola começou a saltar nas baias, não se conteve e, num arranque, esmurrou o seu azar com seis fichas. Deu o 36. Aurélio saltou na cadeira de olhos esbugalhados, e, meneando com a cabeça, num espanto, pôs-se a repetir:

— Sim, senhor...! Sim, senhor...! assombrado com a sorte do estudante, que sorria, feliz, sem ânimo de tocar na rima de fichas que deixara sobre o número. O ficheiro contou: 23, e logo anunciou - 805.

— Homem, agora tiraste o pé do lodo.

— Já era tempo...!

— Boa tacada! - e saiu, circulando a mesa, a repetir: Boa tacada! Boa tacada! - Mas, tomando ao seu posto, segredou ao estudante, retorcendo nervosamente o bigode: Estás de sorte, atira-te!

Às l0 1/2, anunciando-se a última bola, Paulo contou 260 cartões. Aurélio rondava-o d'olhos compridos.

— Fichas a troco... - disse morosamente o Messias, desligando um maço de notas.

Paulo recebeu o bolo - dois contos e seiscentos, aparentando indiferença, mas os dedos tremiam-lhe e uma palidez cadavérica cobria-lhe o rosto. Messias felicitou-o pelo "tiro"; ele sorriu.

Os pontos espalhavam-se comentando o jogo extravagante da noite, e Junqueira, sacudindo os braços, espichou-se na chaise longue abandonadamente, trauteando uma ária de opereta. O deputado propôs um "lansquenetezínho honesto" até meianoite. Paulo declarou superiormente - "que topava", mas os outros negaram-se; até o Messias, sempre pronto, escusou-se alegando um compromisso sério: "Alguém que o esperava no Recreio".

— Homem, aquilo hoje deve estar magnífico, declarou Narciso, levantando-se e tomando o sobretudo.

— Com esta noite? qual! resmungou o deputado.

— Não é o benefício da Eugénie?

— Sim, é...

— Então, meu amigo, está cheio.

Messias, que abrira o postigo, anunciou uma noite magnífica, estrelada e com lua. A notícia abalou o Junqueira que, molemente, estirando os braços, deixou a chaise longue.

— Pois vou também dar uma vista d'olhos. Tenho um camarote. Queres vir, Narciso?

— Não, estou esbarrondado; vou meter-me na cama. Boa noite.

Outros despediram-se; e Paulo, não sem pena, foi tomar o chapéu. Aurélio esperava-o na sala do bilhar, friorento, esfregando as mãos, muito encolhido no seu casaco cor de pinhão.

— Onde vais?

— Ao Recreio. Queres ir?

— Vamos lá.

Procurou a bengala e, lançando por uma janela os olhos ao céu, ainda acastelado de nuvens, picado de estrelas, com uma lua triste, que parecia correr, fugir, declamou:

Lune, quel esprit sombre

romene au bout d'un fil,

Dans l'ombre,

Ta face et ton profil?

Friday 3 September 2021

Friday's Sung Word: "Filosofia" by Noel Rosa and André Filho (in Portuguese)

O mundo me condena, e ninguém tem pena
Falando sempre mal do meu nome
Deixando de saber se eu vou morrer de sede
Ou se vou morrer de fome
Mas a filosofia hoje me auxilia
A viver indiferente assim
Nesta prontidão sem fim
Vou fingindo que sou rico
Pra ninguém zombar de mim

Não me incomodo que você me diga
Que a sociedade é minha inimiga
Pois cantando neste mundo
Vivo escravo do meu samba,
muito embora vagabundo
Quanto a você da aristocracia
Que tem dinheiro, mas não compra alegria
Há de viver eternamente sendo escrava dessa gente
Que cultiva a hipocrisia.

 

You can listen "Filosofia" sung by  Mário Reis here.