Tuesday, 24 October 2023

Tuesday's Serial: “A Cachoeira de Paulo Afonso” by Castro Alves (in Portuguese) - II

 

O NADADOR

Ei-lo que ao rio arroja-se.

As vagas bipartiram-se;

Mas rijas contraíram-se

Por sobre o nadador...

Depois s'entreabre lúgubre

Um círculo simbólico...

É o riso diabólico

Do pego zombador!

 

Mas não! Do abismo — indômito

Surge-me um rosto pálido,

Como o Netuno esquálido,

Que amaina a crina ao mar;

Fita o batel longínquo

Na sombra do crepúsculo...

Rasga com férreo músculo

O rio par a par.

 

Vagas! Dalilas pérfidas!

Moças, que abris um túmulo,

Quando do amor no cúmulo

Fingis nos abraçar!

O nadador intrépido

Vos toca as tetas cérulas...

E após — zombando — as pérolas

Vos quebra do colar.

Vagas! Curvai-vos tímidas!

 

Abri fileiras pávidas

Às mãos possantes, ávidas

Do nadador audaz!...

Belo, de força olímpica

— Soltos cabelos úmidos —

Braços hercúleos, túmidos...

É o rei dos vendavais!

 

Mas ai! Lá ruge próxima

A correnteza hórrida,

Como da zona tórrida

A boicininga a urrar...

É lá que o rio indômito,

Como o corcel da Ucrânia,

Rincha a saltar de insânia,

Freme e se atira ao mar.

 

Tremeste? Não! Qu'importa-te

Da correnteza o estrídulo?

Se ao longe vês teu ídolo,

Ao longe irás também...

Salta à garupa úmida

Deste corcel titânico...

— Novo Mazeppa oceânico —

Além! além! além!...

 

 

NO BARCO

— Lucas! — Maria! murmuraram juntos...

E a moça em pranto lhe caiu nos braços.

Jamais a parasita em flóreos laços

Assim ligou-se ao piquiá robusto...

 

Eram-lhe as tranças a cair no busto

Os esparsos festões da granadilha...

Tépido aljofar o seu pranto brilha,

Depois resvala no moreno seio...

 

Oh! doces horas de suave enleio!

Quando o peito da virgem mais arqueja,

Como o casal da rola sertaneja,

Se a ventania lhe sacode o ninho.

 

Cantai, ó brisas, mas cantai baixinho!

Passai, ó vagas..., mais passai de manso!

Não perturbeis-lhe o plácido remanso,

Vozes do ar! emanações do rio!

 

"Maria, fala!" — "Que acordar sombrio",

Murmura a triste com um sorriso louco,

"No Paraíso eu descansava um pouco...

Tu me fizeste despertar na vida ...

 

"Por que não me deixaste assim pendida

Morrer co'a fronte oculta no teu peito?

Lembrei-me os sonhos do materno leito

Nesse momento divinal... Qu'importa?...

 

"Toda esperança para mim 'sta morta...

Sou flor manchada por cruel serpente...

Só de encontro nas rochas pode a enchente

Lavar-me as nódoas, m'esfolhando a vida.

 

"Deixa-me! Deixa-me a vagar perdida...

Tu! — Parte! Volve para os lares teus.

Nada perguntes... é um segredo horrível...

Eu te amo ainda... mas agora — adeus!"

 

 

ADEUS

— Adeus — Ai criança ingrata!

Pois tu me disseste — adeus — ?

Loucura! melhor seria

Separar a terra e os céus.

 

— Adeus — palavra sombria!

De uma alma gelada e fria

És a derradeira flor.

 

— Adeus! — miséria! mentira

De um seio que não suspira,

De um coração sem amor.

 

Ai, Senhor! A rola agreste

Morre se o par lhe faltou.

O raio que abrasa o cedro

A parasita abrasou.

 

O astro namora o orvalho:

— Um é a estrela do galho,

— Outro o orvalho da amplidão.

 

Mas, à luz do sol nascente,

Morre a estrela — no poente!

O orvalho — morre no chão!

 

Nunca as neblinas do vale

Souberam dizer-se — adeus —

Se unidas partem da terra,

Perdem-se unidas nos céus.

 

A onda expira na plaga...

Porém vem logo outra vaga

P'ra morrer da mesma dor...

 

— Adeus — palavra sombria!

Não digas — adeus —, Maria!

Ou não me fales de amor!

 

 

MUDO E QUEDO

E calado ficou... De pranto as bagas

Pelo moreno rosto deslizaram,

qual da braúna, que o machado fere,

Lágrimas saltam de um sabor amargo.

Mudos, quedos os dois neste momento

Mergulhavam no dédalo d'angústia,

No labirinto escuro que desgraça...

Labirinto sem luz, sem ar, sem fio...

 

Que dor, que drama torvo de agonias

Não vai naquelas almas!... Dor sombria

De ver quebrado aquele amor tão santo,

De lembrar que o passado está passado...,

Que a esperança morreu, que surge a morte!...

Tanta ilusão!... tanta carícia meiga!...

Tanto castelo de ventura feito

À beira do riacho, ou na campanha!...

Tanto êxtase inocente de amorosos!...

Tanto beijo na porta da choupana,

Quando a lua invejosa no infinito

Com uma bênção de luz sagrava os noivos!...

 

Não mais! não mais! O raio, quando esgalha

O ipê secular, atira ao longe

Flores, que há pouco se beijavam n'hástea,

Que unidas nascem, juntas viver pensam,

E que jamais na terra hão de encontrar-se!

 

Passou-se muito tempo... Rio abaixo

A canoa corria ao tom das vagas.

 

De repente ele ergueu-se hirto, severo,

— O olhar em fogo, o riso convulsivo —

Em golfadas lançando a voz do peito!...

 

"Maria! — diz-me tudo... Fala! fala

Enquanto eu posso ouvir... Criança, escuta!

Não vês o rio?... é negro!... é um leito fundo...

A correnteza, estrepitando, arrasta

Uma palmeira, quanto mais um homem!...

Pois bem! Do seio túrgido do abismo

Há de romper a maldição do morto;

Depois o meu cadáver negro, lívido,

Irá seguindo a esteira da canoa

Pedir-te inda que fales, desgraçada,

Que ao morto digas o que ao vivo ocultas!..."

 

Era tremenda aquela dor selvagem,

Que rebentava enfim, partindo os diques

Na fúria desmedida!...

 

                                           Em meio às ondas

 

Ia Lucas rolar

 

                                                 Um grito fraco,

 

Uma trêmula mão susteve o escravo...

E a pálida criança, desvairada,

Aos pés caiu-lhe a desfazer-se em pranto.

 

Ela encostou-se ao peito do selvagem

— Como a violeta, as faces escondendo

Sob a chuva noturna dos cabelos — !

Lenta e sombria após contou destarte

A treda história desse tredo crime!...

 

 

NA FONTE

I

"Era hoje ao meio-dia.

Nem uma brisa macia

Pela savana bravia

Arrufava os ervaçais...

Um sol de fogo abrasava;

Tudo a sombra procurava;

Só a cigarra cantava

No tronco dos coqueirais.

 

II

"Eu cobri-me da mantilha,

Na cabeça pus a bilha,

Tomei do deserto a trilha,

Que lá na fonte vai dar.

Cansada cheguei na mata:

Ali, na sombra, a cascata

As alvas tranças desata

Como u'a moça a brincar.

 

III

"Era tão densa a espessura!

Corria a brisa tão pura!

Reinava tanta frescura,

Que eu quis me banhar ali.

Olhei em roda... Era quedo

O mato, o campo, o rochedo...

Só nas galhas do arvoredo

Saltava alegre o sagüi.

 

IV

"Junto às águas cristalinas

Despi-me louca, traquinas,

E as roupas alvas e finas

Atirei sobre os cipós.

Depois mirei-me inocente,

E ri vaidosa... e contente...

Mas voltei-me de repente...

Como que ouvira uma voz!

 

V

"Quem foi que passou ligeiro,

Mexendo ali no ingazeiro,

E se embrenhou no balceiro,

Rachando as folhas do chão?...

Quem foi?! Da mata sombria

Uma vermelha cutia

Saltou tímida e bravia,

Em procura do sertão.

 

VI

"Chamei-me então de criança;

A meus pés a onda mansa

Por entre os juncos s'entrança

Como uma cobra a fugir!

Mergulho o pé docemente;

Com o frio fujo à corrente...

De um salto após de repente

Fui dentro d'água cair.

 

VII

"Quando o sol queima as estradas,

E nas várzeas abrasadas

Do vento as quentes lufadas

Erguem novelos de pó,

Como é doce em meio às canas,

Sob um teto de lianas,

Das ondas nas espadanas

Banhar-se despida e só!...

 

VIII

"Rugitavam os palmares...

Em torno dos nenufares

Zumbiam pejando os ares

Mil insetos de rubim...

Eu naquele leito brando

Rolava alegre cantando...

Súbito... um ramo estalando

Salta um homem junto a mim!"

 

 

NOS CAMPOS

"Fugi desvairada!

Na moita intrincada,

Rasgando uma estrada,

Fugaz me embrenhei.

Apenas vestindo

Meus negros cabelos,

E os seios cobrindo

Com os trêmulos dedos,

Ligeira voei!

 

"Saltei as torrentes.

Trepei dos rochedos

Aos cimos ardentes,

Nos ínvios caminhos,

Cobertos de espinhos,

Meus passos mesquinhos

Com sangue marquei!

 

. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

 

"Avante! corramos!

Corramos ainda!...

Da selva nos ramos

A sombra é infinda.

A mata possante

Ao filho arquejante

Não nega um abrigo...

Corramos ainda!

Corramos! avante!

 

"Debalde! A floresta

— Madrasta impiedosa —

A pobre chorosa

Não quis abrigar!

"Pois bem! Ao deserto!

 

"De novo, é loucura!

Seguindo meus traços

Escuto seus passos

Mais perto! mais perto!

Já queima-me os ombros

Seu hálito ardente.

Já vejo-lhe a sombra

Na úmida alfombra...

Qual negra serpente,

Que vai de repente

Na presa saltar!...

. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

 

Na douda

Corrida,

Vencida,

Perdida,

 

Quem me há de salvar?"

 

 

NO MONTE

"Parei... Volvi em torno os olhos assombrados...

Ninguém! A solidão pejava os descampados...

Restava inda um segundo... um só p'ra me salvar;

Então reuni as forças, ao céu ergui o olhar...

E do peito arranquei um pavoroso grito,

Que foi bater em cheio às portas do infinito!

Ninguém! Ninguém me acode... Ai! só de monte em monte

Meu grito ouvi morrer na extrema do horizonte!...

Depois a solidão ainda mais calada

Na mortalha envolveu a serra descampada!...

 

"Ai! que pode fazer a rola triste

Se o gavião nas garras a espedaça?

Ai! que faz o cabrito do deserto,

Quando a jibóia no potente aperto

Em roscas férreas o seu corpo enlaça?

 

"Fazem como eu?... Resistem, batem, lutam,

E finalmente expiram de tortura.

Ou, se escapam trementes, arquejantes,

Vão, lambendo as feridas gotejantes,

Morrer à sombra da floresta escura!...

 

"E agora está concluída

Minha história desgraçada.

Quando caí — era virgem!

Quando ergui-me — desonrada!"

 

 

SANGUE DE AFRICANO

Aqui sombrio, fero, delirante

Lucas ergueu-se como o tigre bravo...

Era a estátua terrível da vingança...

O selvagem surgiu... sumiu-se o escravo.

 

Crispado o braço, no punhal segura!

Do olhar sangrentos raios lhe ressaltam,

Qual das janelas de um palácio em chamas

As labaredas, irrompendo, saltam.

 

Com o gesto bravo, sacudido, fero,

A destra ameaçando a imensidade...

Era um bronze de Aquiles furioso

Concentrando no punho a tempestade!

 

No peito arcado o coração sacode

O sangue, que da raça não desmente,

Sangue queimado pelo sol da Líbia,

Que ora referve no Equador ardente.

 

 

AMANTE

"Basta, criança! Não soluces tanto...

Enxuga os olhos, meu amor, enxuga!

Que culpa tem a clícia descaída

Se abelha envenenada o mel lhe suga?

 

"Basta! Esta faca já contou mil gotas

De lágrimas de dor nos teus olhares.

Sorri, Maria! Ela jurou pagar-tas

No sangue dele em gotas aos milhares.

 

"Por que volves os olhos desvairados?

Por que tremes assim, frágil criança?

Est'alma é como o braço, o braço é ferro,

E o ferro sabe o trilho da vingança.

 

"Se a justiça da terra te abandona,

Se a justiça do céu de ti se esquece,

A justiça do escravo está na força...

E quem tem um punhal nada carece!...

 

"Vamos! Acaba a história... Lança a presa...

Não vês meu coração, que sente fome?

Amanhã chorarás; mas de alegria!

Hoje é preciso me dizer — seu nome!"

 

 

ANJO

"Ai! Que vale a vingança, pobre amigo,

Se na vingança a honra não se lava?...

O sangue é rubro, a virgindade é branca —

O sangue aumenta da vergonha a bava.

 

"Se nós fomos somente desgraçados,

Para que miseráveis nos fazermos?

Desportados da terra assim perdemos

De além da campa as regiões sem termos...

 

"Ai! não manches no crime a tua vida,

Meu irmão, meu amigo, meu esposo!...

Seria negro o amor de uma perdida

Nos braços a sorrir de um criminoso!..."