Saturday 9 March 2024

Good Reading: "Relatório ao Governo do Estado de Alagoas" by Graciliano Ramos (in Portuguese)

PREFEITURA MUNICIPAL DE PALMEIRA DOS ÍNDIOS

Relatório ao Governo do Estado de Alagoas

 

Exmo. Sr. Governador:

 

Trago a V. Exa. um resumo dos trabalhos realizados pela Prefeitura de Palmeira dos Índios em 1928.

 

Não foram muitos, que os nossos recursos são exíguos. Assim minguados, entretanto, quase insensíveis ao observador afastado, que desconheça as condições em que o Município se achava, muito me custaram.

 

COMEÇOS

O principal, o que sem demora iniciei, o de que dependiam todos os outros, segundo creio, foi estabelecer alguma ordem na administração.

Havia em Palmeira inúmeros prefeitos: os cobradores de impostos, o Comandante do Destacamento, os soldados, outros que desejassem administrar. Cada pedaço do Município tinha a sua administração particular, com Prefeitos Coronéis e Prefeitos inspetores de quarteirões. Os fiscais, esses, resolviam questões de polícia e advogavam.

Para que semelhante anomalia desaparecesse lutei com tenacidade e encontrei obstáculos dentro da Prefeitura e fora dela

— dentro, uma resistência mole, suave, de algodão em rama; fora, uma campanha sorna, oblíqua, carregada de bílis. Pensavam uns que tudo ia bem nas mãos de Nosso Senhor, que administra melhor do que todos nós; outros me davam três meses para levar um tiro.

Dos funcionários que encontrei em janeiro do ano passado restam poucos: saíram os que faziam política e os que não faziam coisa nenhuma. Os atuais não se metem onde não são necessários, cumprem as suas obrigações e, sobretudo, não se enganam em contas. Devo muito a eles.

Não sei se a administração do Município é boa ou ruim. Talvez pudesse ser pior.

 

RECEITA E DESPESA

A receita, orçada em 50:000$000, subiu, apesar de o ano ter sido péssimo, a 71:649$290, que não foram sempre bem aplicados por dois motivos: porque não me gabo de empregar dinheiro com inteligência e porque fiz despesas que não faria se elas não estivessem determinadas no orçamento.

 

PODER LEGISLATIVO

Despendi com o poder legislativo 1:616$484 — pagamento a dois secretários, um que trabalha, outro aposentado, telegramas, papel, selos.

 

ILUMINAÇÃO

A iluminação da cidade custou 8:921$800. Se é muito, a culpa não é minha: é de quem fez o contrato com a empresa fornecedora de luz.

 

OBRAS PÚBLICAS

Gastei com obras públicas 2:908$350, que serviram para construir um muro no edifício da Prefeitura, aumentar e pintar o açougue público, arranjar outro açougue para gado miúdo, reparar as ruas esburacadas, desviar as águas que, em épocas de trovoadas, inundavam a cidade, melhorar o curral do matadouro e comprar ferramentas. Adquiri picaretas, pás, enxadas, martelos, marrões, marretas, carros para aterro, aço para brocas, alavancas etc. Montei uma pequena oficina para consertar os utensílios estragados.

 

EVENTUAIS

Houve 1:069$700 de despesas eventuais: feitio e conserto de medidas, materiais para aferição, placas.

724$000 foram-se para uniformizar as medidas pertencentes ao Município. Os litros aqui tinham mil e quatrocentos gramas. Em algumas aldeias subiam, em outras desciam. Os negociantes de cal usavam caixões de querosene e caixões de sabão, a que arrancavam tábuas, para enganar o comprador. Fui descaradamente roubado em compras de cal para os trabalhos públicos.

 

CEMITÉRIO

No cemitério enterrei 189$000 — pagamento ao coveiro e conservação.

 

ESCOLA DE MÚSICA

A Filarmônica 16 de Setembro consumiu 1:990$660 — ordenado de um mestre, aluguel de casa, material, luz.

 

FUNCIONÁRIOS DA JUSTIÇA E DA POLÍCIA

Os escrivães do júri, do cível e da polícia, o delegado e os oficiais de justiça levaram 1:843$314.

 

ADMINISTRAÇÃO

A administração municipal absorveu 11:457$497 — vencimentos do Prefeito, de dois secretários (um efetivo, outro aposentado), de dois fiscais, de um servente; impressão de recibos, publicações, assinatura de jornais, livros, objetos necessários à secretaria, telegramas.

Relativamente à quantia orçada, os telegramas custaram pouco. De ordinário vai para eles dinheiro considerável. Não há vereda aberta pelos matutos, forçados pelos inspetores, que prefeitura do interior não ponha no arame, proclamando que a coisa foi feita por ela; comunicam-se as datas históricas ao Governo do Estado, que não precisa disso; todos os acontecimentos políticos são badalados. Porque se derrubou a Bastilha — um telegrama; porque se deitou uma pedra na rua — um telegrama; porque o deputado F. esticou a canela — um telegrama. Dispêndio inútil. Toda a gente sabe que isto por aqui vai bem, que o deputado morreu, que nós choramos e que em 1559 D. Pero Sardinha foi comido pelos caetés.

 

ARRECADAÇÃO

As despesas com a cobrança dos impostos montaram a 5:602$244. Foram altas porque os devedores são cabeçudos. Eu disse ao Conselho, em relatório, que aqui os contribuintes pagam ao Município se querem, quando querem e como querem.

Chamei um advogado e tenho seis agentes encarregados da arrecadação, muito penosa. O Município é pobre e demasiado grande para a população que tem, reduzida por causa das secas continuadas.

 

LIMPEZA PÚBLICA — ESTRADAS

No orçamento limpeza pública e estradas incluíram-se numa só rubrica. Consumiram 25:111$152.

Cuidei bastante da limpeza pública. As ruas estão varridas; retirei da cidade o lixo acumulado pelas gerações que por aqui passaram; incinerei monturos imensos, que a Prefeitura não tinha suficientes recursos para remover.

Houve lamúrias e reclamações por se haver mexido no cisco preciosamente guardado em fundos de quintais; lamúrias, reclamações e ameaças porque mandei matar algumas centenas de cães vagabundos; lamúrias, reclamações, ameaças, guinchos, berros e coices dos fazendeiros que criavam bichos nas praças.

 

POSTO DE HIGIENE

Em falta de verba especial, inseri entre os dispêndios realizados com a limpeza pública os relativos à profilaxia do Município.

Contratei com o dr. Leorne Menescal, chefe do Serviço de Saneamento Rural, a instalação de um posto de higiene, que, sob a direção do dr. Hebreliano Wanderley, tem sido de grande utilidade à nossa gente.

 

VIAÇÃO

Consertei as estradas de Quebrangulo, da Porcina, de Olhos d’Água aos limites de Limoeiro, na direção de Cana Brava.

Foram reparos sem grande importância e que apenas menciono para que esta exposição não fique incompleta. Faltam-nos recursos para longos tratos de rodovias, e quaisquer modificações em caminhos estreitos, íngremes, percorridos por animais e veículos de tração animal, depressa desaparecem. É necessário que se esteja sempre a renová-las, pois enxurradas levam num dia o trabalho de meses e os carros de bois escangalham o que as chuvas deixam.

Os empreendimentos mais sérios a que me aventurei foram a estrada de Palmeira de Fora e o terrapleno da Lagoa.

 

ESTRADA DE PALMEIRA DE FORA

Tem oito metros de largura e, para que não ficasse estreita em uns pontos, larga em outros, uma parte dela foi aberta em pedra.

Fiz cortes profundos, aterros consideráveis, valetas e passagens transversais para as águas que descem dos montes.

Cerca de vinte homens trabalharam nela quase cinco meses.

Parece-me que é uma estrada razoável. Custou 5:049$400.

Tenciono prolongá-la à fronteira de Sant’Ana do Ipanema, não nas condições m que está, que as rendas do Município me não permitiriam obra de tal vulto.

 

OUTRA ESTRADA

Como, a fim de não inutilizar-se em pouco tempo, a estrada de Palmeira de Fora se destina exclusivamente a pedestres e a automóveis, abri outra paralela ao trânsito de animais.

 

TERRAPLENO DA LAGOA

O espaço que separa a cidade do bairro da Lagoa era uma coelheira imensa, um vasto acampamento de tatus, qualquer coisa deste gênero.

Buraco por toda a parte. O aterro que lá existiu, feito na administração do prefeito Francisco Cavalcante, quase que havia desaparecido.

Em um dos lados do caminho abria-se uma larga fenda com profundidade que variava de três para cinco metros. A água das chuvas, impetuosa em virtude da inclinação do terreno, transformava-se ali em verdadeira torrente, o que aumentava a cavidade e ocasionava sério perigo aos transeuntes. Além disso outras aberturas se iam formando, os invernos cavavam galerias subterrâneas, e aquilo era inacessível a veículo de qualquer espécie.

Empreendi aterrar e empedrar o caminho, mas reconheci que o solo não fendido era inconsistente: debaixo de uma tênue camada de terra de aluvião, que uma estacada sustentava, encontrei lixo. Retirei o lixo, para preparar o terreno e para evitar fosse um monturo banhado por água que logo entrava em um riacho de serventia pública. Quase todos os trabalhadores adoeceram.

Estou fazendo dois muros de alvenaria, extensos, espessos e altos, para suportar o aterro. Dei à estrada nove metros de largura. Os trabalhos vão adiantados.

Durante meses mataram-me o bicho do ouvido com reclamações de toda a ordem contra o abandono em que se deixava a melhor entrada para a cidade. Chegaram lá pedreiros — outras reclamações surgiram, porque as obras irão custar um horror de contos de réis, dizem.

Custarão alguns, provavelmente. Não tanto quanto as pirâmides do Egito, contudo. O que a Prefeitura arrecada basta para que não nos resignemos às modestas tarefas de varrer as ruas e matar cachorros.

Até agora as despesas com os serviços da Lagoa sobem a 14:418$627.

Convenho em que o dinheiro do povo poderia ser mais útil se estivesse nas mãos, ou nos bolsos, de outro menos incompetente do que eu; em todo o caso, transformando-o em pedra, cal, cimento etc., sempre procedo melhor que se o distribuísse com os meus parentes, que necessitam, coitados.

(Os gastos com a estrada de Palmeira de Fora e com o terrapleno estão, naturalmente, incluídos nos 25:111$152 já mencionados.)

 

DINHEIRO EXISTENTE

Deduzindo-se da receita a despesa e acrescentando-se 105$858 que a administração passada me deixou, verifica-se um saldo de 11:044$947.

40$897 estão em caixa e 11:004$050 depositados no Banco Popular e Agrícola de Palmeira. O Conselho autorizou-me a fazer o depósito.

Devo dizer que não pertenço ao banco nem tenho lá interesse de nenhuma espécie. A Prefeitura ganhou: livrou-se de um tesoureiro, que apenas serviria para assinar as folhas e embolsar o ordenado, pois no interior os tesoureiros não fazem outra coisa, e teve 615$050 de juros.

Os 40$897 estão em poder do secretário, que guarda o dinheiro até que ele seja colocado naquele estabelecimento de crédito.

 

LEIS MUNICIPAIS

Em janeiro do ano passado não achei no Município nada que se parecesse com lei, fora as que havia na tradição oral, anacrônicas, do tempo das candeias de azeite.

Constava a existência de um código municipal, coisa inatingível e obscura. Procurei, rebusquei, esquadrinhei, estive quase a recorrer ao espiritismo, convenci-me de que o código era uma espécie de lobisomem.

Afinal, em fevereiro, o secretário descobriu-o entre papéis do Império. Era um delgado volume impresso em 1865, encardido e dilacerado, de folhas soltas, com aparência de primeiro livro de leitura do Abílio Borges. Um furo. Encontrei no folheto algumas leis, aliás bem-redigidas, e muito sebo.

Com elas e com outras que nos dá a Divina Providência consegui aguentar-me, até que o Conselho, em agosto, votou o código atual.

 

CONCLUSÃO

Procurei sempre os caminhos mais curtos. Nas estradas que se abriram só há curvas onde as retas foram inteiramente impossíveis.

Evitei emaranhar-me em teias de aranha.

Certos indivíduos, não sei por que, imaginam que devem ser consultados; outros se julgam autoridade bastante para dizer aos contribuintes que não paguem impostos.

Não me entendi com esses.

Há quem ache tudo ruim, e ria constrangidamente, e escreva cartas anônimas, e adoeça, e se morda por não ver a infalível maroteirazinha, a abençoada canalhice, preciosa para quem a pratica, mais preciosa ainda para os que dela se servem como assunto invariável; há quem não compreenda que um ato administrativo seja isento de lucro pessoal; há até quem pretenda embaraçar-me em coisa tão simples como mandar quebrar as pedras dos caminhos.

Fechei os ouvidos, deixei gritarem, arrecadei 1:325$500 de multas.

Não favoreci ninguém. Devo ter cometido numerosos disparates. Todos os meus erros, porém, foram da inteligência, que é fraca.

Perdi vários amigos, ou indivíduos que possam ter semelhante nome.

Não me fizeram falta.

Há descontentamento. Se a minha estada na Prefeitura por estes dois anos dependesse de um plebiscito, talvez eu não obtivesse dez votos. Paz e prosperidade. Palmeira dos Índios, 10 de janeiro de 1929.

Friday 8 March 2024

Friday's Sung Word: "Entre Lágrimas" by Cândido das Neves (in Portuguese)

 Entre Lágrimas
Vicente Celestino

Quando no calvário conduzia a cruz
Jesus em Madalena os olhos Seus pousou
Cansado de Carpir Jesus tentou sorrir
mas uma lágrima na face Lhe rolou
Vendo a redenção naquele pranto
Madalena enxugou-Lhe o rosto santo
Quadro de exemplo e de esplendor
Jesus! A cruz! E o amor!

Eu sou mais infeliz
Mais doloroso é meu carpir
Meu calvário é mais alto
Eu estou exausto de subir
O pranto rola a flux
por sobre o meu tristor
Pesada é minha cruz!
A cruz do meu amor
Sim, eu prosseguirei
E sem esperança de encontrar
aguém que os prantos meus
venha enxugar.

Aos céus chorando minha alma voa
Triste, serena
Tem pena, perdoa
Dá-me um olhar de esperança
Alento para o coração
que de te amar não cansa
Ah! Perdoa tudo enfim
Até o mal de amar-te tanto assim

Versos que ao relento muita vêz compus
Poemas dolorosos que ao luar sonhei
Eu tudo lhe ofertei e a seus pés depus
entre lágrimas ardentes que chorei
Vejo entre a minha ansiedade
ressurgir minha tristíssima saudade
qual nova Fênix no atroz calor
das próprias cinzas do amor.

 You can listen "Entre Lágrimas" sung by Vicente Celestino here.

Thursday 7 March 2024

Thursday's Serial: "Aurora" by José Thiesen (in Portuguese) - the end.

 

18º dia do mês da Vitória

 

Pio XIII

            Mathias foi ordenado padre ao meio-dia e bispo ao meio da tarde.

A transição de militar para sacerdote e bispo não foi fácil para ele.

            Pio XIII guiou-o por toda a sua primeira missa ad Orientem, mas havia exigido dele um sermão completo e Mathias sofreu até o íntimo dos ossos falando de improviso mas o resultado foi satisfatório, segundo seu pequeno rebanho.

Ouvir confissões foi outra experiência difícil. Jochum apresentou de si aspectos que Mathias jamais poderia supor, do pecado ao arrependimento. Mas o mais difícil foi o que Mathias experimentava em sua alma: a opressão física de demônios dirigindo a ele um ódio mortal por seu ministério. Jamais sentira tanto medo em sua vida.

Mathias suava ao ler a fórmula de absolvição escrita num pedacinho de papel e sua mão tremia ao dar a benção a Jochum.

Sorte sua que Pio XIII dava-lhe sempre assistência.

- Não tente ser mais forte do que és, Eminência. Nós estamos em guerra; o príncipe deste mundo está quase a derrotar seu Rei, neste mundo. Se pudesse, Satã em pessoa nos estraçalharia. Sorte nossa que Deus o não permite.

- Eu nunca senti um medo tão palpável, Santidade!

- Sim, mas lembre-se: um demônio não pode mais que o teu Anjo da Guarda e teu anjo é ainda mais poderoso que qualquer demônio porque vê a Deus face à face. Também Satã já foi vencido pela Ressurreição de Jesus, de maneira que este seu poder, esta sua aparente vitória sobre nós, no final, é nada.

E foi no final da manhã seguinte que Jochum retornou espavorido e correu para Mathias.

- Oberst... quer dizer, Eminência!

- Fale, Jochum! (Mathias estava quase feliz por voltar a um território mais conhecido: Oberst).

- Eu estava a fazer patrulha quando percebi abutres no céu e resolvi investigar para onde iam. Achei o corpo de padre Luigi. Estava morto!

- Sim, e que mais?

- Ele foi morto, Eminência! Havia lacerações de pedras e outros cortes que pareciam ser de... flexas ou lanças! Achei isso perto do corpo! E apresentou-lhe um triângulo mal feito, entalhado em pedra.

Mathias compreendeu logo que não podiam estar muito longe de algum acampamento de sobreviventes da Grande Tragédia de doze anos atrás.

Mathias levou Jochum a Pio XIII e apresentou-lhe os fatos.

O Papa refletiu por alguns instantes e falou:

- Vós dois, enterrai Luigi e depois retornai. Entretanto, estarei levando o povo para aquele monte que está na direção do sol nascente.

            Mas Mathias e Jochum não retornaram: o grupo de sobreviventes, que culpavam a Igreja pela destruição da Itália, cercou-os e os mataram a frexadas e lançaços.

            Depois sairam à procura de mais padres e foram encontrá-los já noite no alto duma colina.

            Pio XIII esperou por eles à frente de seu grupo e tentou dialogar com seus perseguidores, mas foi inutil, pois estavam cegados por desespero e ódio.

            Pio XIII foi seguro por dois de seus perseguidores e viu um a um dos seus seguidores serem mortos. No fim, um de seus perseguidores correu para ele de lança em riste, feliz de estar matando a causa de sua tragédia e varou-lhe o coração.

             ...e então toda a glória deste mundo passou.

 

* * * *

 

VI – Flamínea

            A sala do Conselho era como um túmulo silencioso. Pilates conhecia cada uma daquelas faces, algumas desde a infância e quase todos eram parentes seus, por causa dos casamentos contínuos entre os membros das Famílias.

            Doze eram os membros do Conselho, cada um representando uma das doze famílias originais.

            - No informatório aprendi que Ex-Paris em seus dias foi uma estupenda aliada de nossos pais. Assim, esperava encontrar informações daquele tempo que nos conduzissem ao nosso presente. Quem sabe, um dado que nos faltasse.

            - E nosso querido irmão Pilates encontrou o linque perdido?

            Pilates suava, sem saber se era por causa das fortes luzes sobre si, o se era por causa da ansiedade que estava a sentir, mas sem a mostrar.

            - De certa forma, Senhor Conselheiro, e foi em antigas igrejas dedicadas aos deuses daqueles tempos. Em várias havia uma escultura de um homem crucificado de cabeça para baixo. Às vezes, essa estátua pendia sobre o altar, às vezes era um dos deuses a pisar ou quebrar o homem crucificado. Os robots guias explicaram-me que aquele era o Pérfido Profeta, finalmente sobrepujado pelos deuses da Terra, que tomavam seu lugar de direito.

            - Os idiotumanos tinham crenças estranhas, não lhe parece? Por isso merecem tal nome.

            - Estranhas, sem dúvida, Senhor Conselheiro, mas sempre testemunhas da vitória de nossos pais. Entretanto, senhores, o que vou dizer pode soar como um escândalo, mas é verdadeiro. Tendo visto imagens do Pérfido Profeta, movido por um impulso, quiz conhecer a Pérfida Doutrina!

            Vozes elevaram-se no ar.

            - A Pérfida Congregação foi nosso maior adversário!

            - Passar a sua sede a ferro e fogo foi a maior glória de nossos pais!

            - Por sorte ela está quase extinta! O último grupo remanescente foi detectado onde ficava Ex-Florença pelos robots vigilantes que estão indo para lá agora, para exterminarem a todos!

            - Irmãos! Irmãos! – era o pai de Flamínea. Nosso irmão mais novo tem dúvidas e no fundo, como vimos, suas motivações consideram somente o nosso bem. Ouçamo-lo com amor e atenção!

            Pilates sabia que estava em águas perigosas. Havia algo escondido na melifluosidade da voz de seu sogro que o inquietou, mas era necessário seguir adiante.

            - Senhores do Conselho, sim, eu procurei conhecer a Pérfida Doutrina. Não foi fácil encontrar qualquer informação. Tudo o que encontrei estava em antiquíssimos objetos-livro e a custo encontrei um robot com acesso à língua que se falava na Ex-Paris de seus dias.

            - E o irmão Pilates terá encontrado algo de útil para nós?

            - Acho que sim, Senhor Conselheiro!

            Novo alarido.

            - Irmãos do Conselho, por favor! (novamente o pai de Flamínea). Ouçamo-lo!

            - Senhores do Conselho, eu devo confessar pesquisei em inúmeros livros publicados por membros ilustres da Pérfida Congregação e devo dizer que, lamentavelmente, não entendi todos os seus pontos. Inúmeros pontos carecem de qualquer lógica ou mencionam coisas que não tenho idéia do que sejam.

            - Então o querido irmão convoca o conselho para dizer que foi à Ex-Paris vasculhar no lixo da Pérfida Congregação para não entender do que eles falavam?

            - Eu não disse que não entendi nada!

            - Mas não entendeu tudo! Vem então com meias-verdades?

            - Eu acho que tenho uma pista para nos salvar...

            - Salvar-nos do que, exatamente, irmão? disse alguém com uma voz que arranhava.

            - Precisamos ser salvos da tua loucura! gritou outro.

            Pilates buscou o pai de Flamínea com os olhos e viu um homem que parecia deliciado com a situação, mas isso foi um instante: o homem ergueu-se e impôs-se ao grupo.

            - Irmãos do Conselho! Nossos pais lutaram até a morte para criarem Edem para nós! Não perturbemos sua glória com ódios e discussões inúteis. Irmão Pilates tem um ponto forte a seu favor. Ele alega que estamos em decadência e apresenta fatos para sustentar sua posição. Ora, somos fortes e sábios o suficiente para aceitar que contra factum argumentum non est. Sejamos dignos de nossos pais! Em sua busca por iluminação ele foi ao passado - o que é sábio – e procurou pistas na Pérfida Doutrina. Chocante? Sim, mas quem diz que não se aprende com o inimigo? O mínimo que se aprende com o adversário é o que não queremos ser e quem de nós pode afirmar que não existem verdades naquilo que o oponente diz? Heia! Sejamos grandes, irmãos! Vamos, Pilates, conta-nos o que encontraste que nos pode ajudar?

            E Pilates falou. Longa, pensada, meticulosamente, a fim de que nenhuma palavra se perdesse por falta de compreenção, sobre os valores esquecidos de ha muito, sobre um Pai comum e todos servirem-se mutuamente como irmãos, o oposto do que se conhecia em Edem, e o mais importante: como tal doutrina salvou Ex-Europa quando o Império Romano Ocidental esfacelara-se sob as invasões bárbaras.

Mas seus ouvintes jamais ouviram falar de romanos ou bárbaros e respondiam às suas palavras com sorrisos de condescendência ou desprezo.

Pilates compreendeu que estava acabado.

            A reunião acabou no final da tarde e Flamínea estava tomada de fúria!

            Não por causa da insólita pesquisa de Pilates, mas por ele se ter ousado opor ao Reino. Ele estava a banhar-se, como se nada houvesse acontecido, mas ela sabia, todos sabiam que Pilates estava acabado e que sua ação lhe traria consequências, consequências graves. O Reino precisa ser uno e não dividido em partidos e diferentes posições.

            Ela precisava falar com seu pai. Conseguir dele, talvez, fazer de Pilates uma estátua viva para engalanar seu quarto e assim mante-lo por perto.

Por um momento deliciou-se a imaginar...

                     ...deixa-lo pendurado naquela parede...

                                    ...ou suspenso num tripé naquele canto?

O pequeno comunicante de Flamínia soou, fazendo-a estremecer e voltar de seus sonhos.

Correu para ele, tocou-o e viu no pequeno ecrã a face de seu pai a sorrir-lhe.

- Meu pai sorri?

- Sempre que vejo minha filha!

- Pois estou furiosa! Não entendo Pilates! O que foram aquelas tolices que disse?

- Tu o dizes: tolices.

- Mas ele...!

- Sempre imagei que estarias perturbada, pois conheces as regras de nossa sociedade. Por isso resolvi falar-te. Daqui a pouco chamarei Pilates para uma conversa e estou certo de que todos os problemas serão resolvidos.

- Vais matá-lo?

- Somente em último caso; mas, se necessário, farei de modos a dar-te o seu corpo para que aproveites dele no que te aprouver.

- Vais mesmo tentar salva-lo?

- Farei tudo para te ver feliz! Estou em minha sala de controle vendo-o no banho.

- Ele parece bem?

- Sim. Pensativo, dentro da banheira. Sem dúvida, considerando sua posição.

- Papai, o que aconteceu com ele? O que está por detrás de suas experiências?

- Eu sei, talvez melhor do que o próprio Pilates, mas não vou te dizer. É uma informação que cabe somente aos membros do Conselho. Nada que uma boa, honesta conversa não resolva. Afasta de ti todo o temor e desfrutes bem o teu noivo! Tenho certeza de que, amanhã de manhã, já tudo estará esquecido e superado! Agora um beijo e boa noite! disse ele num sorriso confiante e sereno.

Ela tentou retribuir-lhe o mesmo sorriso, mas falhou completamente.

Com a ligação encerrada, os demais membros do Conselho, escondidos atrás da câmera comunicadora, sairam das sombras.

- É impressionante o amor que tens por sua filha, Deimos!

Ele sorriu e disse: quem de nós não ama seus filhos? Nossos sangue e carne! Ossos de nossos ossos! Por isso, preocupa-me tanto o que se passa com o Conselheiro Ário. Seu coração deve estar cheio de tristeza.

- Tristeza, Deimos? Frustração, mas não tristeza. Todos os senhores sabem que dei a Pilates a melhor educação e tudo fiz para mante-lo longe de... de sua...

- É uma palavra que nos machuca a boca, não é mesmo? disse Deimos, cheio de compaixão. Entretanto, sabemos que não podemos permitir que Pilates amadureça as suas idéias. Eden não pode ser dividido! Mas, antes que te adiantes, Ário, fiz uma promessa a minha filha e serei eu a cuidar de Pilates.

            - Amén, disse Ário.

            Ao receber pelo comunicante o convite de Deimos para o ver em seu escritório, Pilates estava inseguro. Sabia que suas idéias e descobertas o haviam desgraçado. Ainda assim, estava convicto de ter descoberto algo, de saber que sua sociedade estava viciada numa auto-indulgência que a reduzia a nada do que deveria ser. Seus sentimentos o faziam ver, ainda que indistintamente, um Pilates que devia ser, mas que Edem sufocava.

                        ...e assim, Edem voltava e a lembrança de sua desgraça. Conhecia as leis de Edem e sabia que Edem era indivisível e ele tornou-se a divisão, um pária.

            Era noite quando Pilates entrou no escritório luxuoso e monumental de Deimos. Um terror intenso e sem foco o invadiu secando-lhe a boca.

            O Chefe do Conselho o recebeu com um largo sorriso e braços abertos.

            - Pilates! O maior assunto de Eden!

            - Lamento terrivelmente que minhas idéias tenham causado essa terrível impressão. Meu desejo era elevar-nos.

            - Ninguém em Edem deseja ser elevado, Pilates, disse Deimos dirigindo-se para o bar. Queres beber algo? Vinho, gim?

            - Não, senhor.

            Enquanto abria uma garrafa de uísque e servia dois copos, Deimos perguntou: por acaso mudaste de idéia?

            - Para ser honesto, creio que não, senhor.

            - Ah! disse Deimos pasando-lhe um dos copos.

            O medo que Pilates sentia era u’a mão fria segurando seu coração, impedindo-o de bater.

            - Senhor Chefe do Conselho, eu não sei bem o que se passa comigo; o que em mim vibrou e me fez buscar o que não conhecia, que me faz querer ser... mais, ser melhor... Não sei como definir isso. Mas também sei que não lhe posso voltar as costas.

            - Ah, o pássaro doirado da juventude! Lembro quando teu pai mandou-te a mim para que eu começasse tua educação. Um menininho de sete anos! Gritaste tanto, por tantas noites! Ah, e isso te faz enrubescer? Que delicioso! Não! Podes fechar tua roupa, não quero desfrutar-te. Mas sabes que tua pronta resposta também deixa-me feliz? Ela mostra que teus pais e todos os demais membros do conselho fizeram em ti um bom trabalho. Mas o momento agora, pede verdade. Gosto de tua franqueza e honradez.

Pilates notou um ligeriríssimo sinal de desprezo quando Deimos disse as últimas palavras.

-Sabes, meu jovem, que nossos pais buscaram, sim, construir um mundo melhor.Foram séculos a tentar, até que nosso senhor mostrou-lhes quão simples era tornar o sonho realidade! Os menosumanos eram idiotas que, perdendo a pérfida doutrina, ganharam o medo de morrer. Então fizemos doenças e fizemos a cura dessas doenças. Mas eram eles a doença, não eram?, superpopulando o planeta, consumindo os seus recursos. No tratamento e profilaxia das doenças que criamos estavam a alteração genética que fez os menosumanos machos ficarem estéreis e efeminados. Mas como eles já não se importavam mais em criar famílias, mas em desfrute mútuo e carreira profissional, isso passou despercebido.

“Criamos instituições mundiais para cuidarem dos que ficavam, dando-lhes os cuidados básicos, sabendo que, cedo ou tarde, eles seriam mandados à morte digna. Fomos reduzindo a idade mínima para a morte digna através de leis, até chegarmos ao que temos hoje.

“Diga-me lá, Pilates, para que um menosumano precisa viver mais que trinta anos?

“Desenvolvemos o processo de clonagem. E em cem anos não mais haviam mais japoneses, espanhóis, italianos e outros povos.

            “Botamos robots a preservarem as ex-cidades que nossos pais acharam interessantes manter como resorts e museus, construímos Edem e cá estamos a viver felizes e em paz, desfrute mútuo, sem outra lei que nossos desejos.

            “Os menosumanos vivem em prisões que lhes descrevemos como cidades, comem do nosso lixo e também vivem, numa escala menor, entregues a seus desejos.

            “O planeta vive em paz, harmonia, sem poluição! Criamos o paraíso!

            Deimos estava triunfante, quase sem fôlego. Havia um profundo deleite malévolo em sua expressão e sua voz subitamente soou como que arranhada.

            -Beba teu uísque, Pilates!

O comando era irrecusável e Pilates bebeu quase o copo todo num grande gole.

-Mas, sim, algo se foi perdendo em nós. Teus estudos fizeram-te conhecer a pérfida doutrina? Lestes seus textos, não foi?

- Precisei da ajuda de robots, senhor, e mesmo eles tinham dificuldade com certas palavras que não podiam pronunciar.

-Sim. Nós programamos os robots para reconhecerem certas palavras mas não as pronunciarem. A pérfida doutrina precisa ficar enterrada, entendes? Precisa! Se ela voltar, o mundo sairá de controle, novamente!

Pilates sentia frio no corpo. Bebeu o resto do uísque e viu quando Deimos poz seu copo sobre a grande mesa de mogno – o copo estava ainda cheio.

Também notou que o arranhado na voz de Deimos estava intenso e permanente, parecendo que eram mais de uma voz a sairem de sua boca.

- Eu consegui, Pilates! Mostrei ao Carpinteiro que a sua criação o rejeita! Venci o meu inimigo!

- Quem venceste, Deimos? Que inimigo?

Pilates teve por resposta uma larga, desbragada gargalhada que fez seu sangue gelar nas veias.

            ...o ar na sala subitamente estava gelado!

- Não sou Deimos, Pilates! Sou teu deus, senhor e mestre! Aquele a quem tu serves! Eu possuo Deimos, como possuo a todos em Edem!

Pilates tinha os olhos turvos ou via mesmo as sombras do escritório moverem-se e tomarem formas obscenas, como era obscena o voz que lhe falava?

- Um dia, fui príncipe deste mundo, mas hoje, reino absoluto! Os últimos seguidores do Carpinteiro estão sendo mortos neste momento e tu também, estás morrendo. Corpo gelado, visão turva e agora... a dor!

Pilates rolou da poltrona para o chão sentindo excruciante dor no estômago.

- eucus... poem...ti...!

- O que, verme?

-...teu inimig... o... é meu amigo! EU CUSPO EM TI! gritou Pilates com o último fôlego de vida que tinha e morreu.

             ...e então toda a glória deste mundo passou.