Introdução
1. Dado que a Escritura nos aconselha: “Interroga teu pai e ele te contará; os teus avós, e eles te dirão“. (Dt 32,7); “Ouve as palavras dos sábios” (Pr22,17); e também: “Meu filho, não te esqueças da minha lei, e guarda no teu coração os meus preceitos” (Pr 3,1), a mim, Peregrino, último entre todos os servos de Deus, me parece que é coisa de não pouca utilidade escrever os ensinamentos que recebi fielmente dos Santos Padres. Para mim isto é absolutamente imprescindível, a causa de minha debilidade, para ter assim ao alcance das mãos um auxílio que, com uma leitura assídua, supra as deficiências de minha memória. Induzem-me a empreender este trabalho, ademais, não só a utilidade desta obra, mas também a consideração do tempo e a oportunidade do lugar. Em relação ao tempo, já que ele nos tira tudo o que há de humano, também nós devemos, em compensação, roubar-lhe algo que nos seja gozoso para a vida eterna, tanto mais quanto que ver aproximar-se o terrível juízo divino nos convida a pôr maior empenho no estudo de nossa Fé; por outro lado, a astúcia dos novos hereges reclama de nós uma vigilância e uma atenção cada vez maiores. Em relação ao lugar, porque afastados da multidão e da agitação da cidade, habitamos num lugar bem separado no qual, na cela tranquila de um mosteiro, se pode pôr em prática, sem medo de distrair-se, o que canta o salmista: “Desisti – disse ele – e reconhecei que sou Deus“(Sl 45,11). Aqui tudo se harmoniza para que eu alcance minhas aspirações. Durante muito tempo fui perturbado pelas diferentes e tristes peripécias da vida secular. Graças à inspiração de Jesus Cristo, consegui por fim refugiar-me no porto da Religião, sempre muito seguro para todos. Deixados para trás os ventos da vaidade e do orgulho, agora me esforço em aplacar a Deus mediante o sacrifício da humildade cristã, para poder assim evitar não só os naufrágios da vida presente, mas também as chamas da vida futura. Posta minha confiança no Senhor, desejo, pois, iniciar a obra que me insta, cuja finalidade é colocar por escrito tudo que nos têm sido transmitido por nossos pais e que temos recebido em depósito. Meu intento é expor cada coisa com a fidelidade de um relator, e não com a presunção de querer fazer uma obra original. Não obstante, me aterei a esta lei ao escrever: não dizer tudo, mas resumir o essencial com estilo fácil e acessível, prescindindo da elegância e do maneirsimo, de maneira que a maior parte das ideias pareçam melhor enunciadas que explicadas. Que escrevam brilhantemente e com finura aqueles que se sentem levados a isto pela profissão ou pela confiança em seu próprio talento. No que a mim se refere, já tenho muito em preparar estas anotações para ajudar a minha memória, ou melhor, a minha falta de memória. Não obstante, não deixarei de me empenhar, com a ajuda de Deus, em corrigi-las e completá-las cada dia, meditando no que tenho aprendido. Assim, pois, caso estas notas se percam ou acabem caindo em mãos de pessoas santas, rogo a estas que não se apressem em jogar-me na cara que algo do que nestas notas haja espera todavia ser retificado e corrigido, segundo minha promessa.
Regra para distinguir a Verdade Católica do erro
2. Havendo interrogado com frequência e com maior cuidado e atenção a inúmeras pessoas, sobressalentes em santidade e doutrina, sobre como distinguir por meio de uma regra segura, geral e normativa, a verdade da Fé Católica da falsidade perversa da heresia, quase todas me têm dado a mesma resposta:
“Todo cristão que queira desmascarar as intrigas dos hereges que brotam ao nosso redor, evitar suas armadilhas e se manter íntegro e incólume numa fé incontaminada, deve, com a ajuda de Deus, apetrechar sua fé de duas maneiras: com a autoridade da lei divina ante tudo, e com a tradição da Igreja Católica”.
Sem embargo, alguém poderia objetar: Posto que o Cânon das Escrituras é em si mais que suficientemente perfeito para tudo, que necessidade há de se acrescentar a autoridade da interpretação da Igreja? Precisamente porque a Escritura, por causa de sua mesma sublimidade, não é entendida por todos de modo idêntico e universal. De fato, as mesmas palavras são interpretadas de maneira diferente por uns e por outros. Se pode dizer que tantas são as interpretações quantos são os leitores. Vemos, por exemplo, que Novaciano explica a Escritura de um modo, Sabélio de outro, Donato, Eunomio, Macedônio, de outro; e de maneira diversa a interpretam Fotino, Apolinar, Prisciliano, Joviano, Pelágio, Celestino, e em nossos dias, Nestório. É pois, sumamente necessário, ante as múltiplas e arrevesadas tortuosidades do erro, que a interpretação dos Profetas e dos Apóstolos se faça seguindo a pauta do sentir católico. Na Igreja Católica deve-se ter maior cuidado para manter aquilo em que se crê em todas as partes, sempre e por todos. Isto é a verdadeira e propriamente católico, segundo a ideia de universalidade que se encerra na mesma etimologia da palavra. Mas isto se conseguirá se nós seguimos a universalidade, a antiguidade e o consenso geral. Seguiremos a universalidade se confessamos como verdadeira e única fé a que a Igreja inteira professa em todo o mundo; a antiguidade, se não nos separamos de nenhuma forma dos sentimentos que notoriamente proclamaram nossos santos predecessores e pais; o consenso geral, por último, se, nesta mesma antiguidade, abraçamos as definições e as doutrinas de todos, ou de quase todos, os Bispos e Mestres.
Exemplo de como aplicar a regra
3. Qual deverá ser a conduta de um cristão católico, se alguma pequena parte da Igreja se separa da comunhão na Fé universal?
– Não cabe dúvida de que deverá antepor a saúde do corpo inteiro a um membro podre e contagioso.
Mas, e se for uma novidade herética que não está limitada a um pequeno grupo, mas que ameaça contagiar à Igreja toda?
– Em tal caso, o cristão deverá fazer todo o possível para agarrar-se à antiguidade, a qual não pode evidentemente ser alterada por nenhuma nova mentira.
E se na antiguidade se descobre que um erro tem sido compartilhado por muitas pessoas, ou inclusive toda uma cidade, ou por uma região inteira?
– Neste caso porá o máximo cuidado em preferir os decretos – se os tiver – de um antigo Concílio Universal, à temeridade e à ignorância de todos aqueles.
E se surge uma nova opinião acerca da qual nada tenha sido ainda definido?
– Então indagará e confrontará as opiniões de nossos maiores, mas somente daqueles que sempre permaneceram na comunhão e na fé da única Igreja Católica e vieram a ser mestres provados da mesma. Tudo o que ache que, não por um ou dois somente, mas por todos juntos de pleno acordo, tenha sido mantido, escrito e ensinado abertamente, frequente e constantemente, sabe que ele também pode crer sem vacilação alguma.
Exemplos históricos de recurso à Universalidade e Antiguidade contra o erro
4. Para realçar melhor aquilo que digo, documentarei com exemplos minhas asserções, me detendo um pouco mais, para que não aconteça que o desejo de ser breve a todo custo me faça deixar passar coisas importantes. No tempo de Donato, de quem tomaram o nome os donatistas, uma parte considerável da África seguiu as delirantes aberrações deste homem. Esquecendo-se de seu nome, sua religião e sua profissão de fé, antepuseram à Igreja a sacrílega temeridade de um só indivíduo. Os que se opuseram então ao ímpio cisma permaneceram unidos às Igrejas do mundo inteiro e só eles entre todos os africanos puderam permanecer a salvo no santuário da Fé católica. Agindo assim, deixaram àqueles que viriam o exemplo egrégio de como se deve preferir sempre o equilíbrio de todos os demais à loucura de uns poucos. Um caso semelhante aconteceu quando o veneno da heresia ariana contaminou não apenas uma pequena região, mas o mundo inteiro, até o ponto de que quase todos os bispos latinos cederam ante a heresia, alguns obrigados com violência, outros sacerdotes diminuídos e enganados. Uma espécie de névoa ofuscou então suas mentes, e já não podiam distinguir, no meio de tanta confusão de ideias, qual era o caminho seguro que deviam seguir. Somente o verdadeiro e fiel discípulo de Cristo que preferiu a antiga Fé à nova perfídia não foi contaminado por aquela peste contagiosa. O que se sucedeu então mostra suficientemente os graves males a que podem dar lugar um dogma inventado. Tudo se revolucionou: não só relações, parentescos, amizades, famílias, mas também cidades, povos, regiões. Até mesmo o Império Romano foi sacudido até seus fundamentos e transtornado, de cima a baixo, quando a sacrílega inovação ariana, como nova Bellona ou Fúria, seduziu inclusive o Imperador, o primeiro de todos os homens. Depois de ter submetido as suas novas leis inclusive aos mais insignes dignatários da corte, a heresia começou a perturbar, transtornar, ultrajar todas as coisas, privada e pública, profana e religiosa. Sem fazer distinção entre o bom e o mau, entre o verdadeiro e o falso, atacava a mão livre todos que estivessem à sua frente. As esposas foram desonradas, as viúvas ultrajadas, as virgens profanadas. Se demoliram mosteiros, se dispersaram os clérigos; os diáconos foram açoitados com varas e os sacerdotes foram mandados ao exílio. Cárceres e minas se encheram de santos. Muitos, expulsos das cidades, andavam errantes sem pousada até que nos desertos, nas covas, entre as rochas abruptas pereceram miseravelmente, vítimas das feras selvagens e da desnudez, fome e sede. E qual foi a causa de tudo isto? Uma só: a introdução de crenças humanas em lugar do dogma vindo do céu. Isto ocorre quando, pela introdução de uma inovação vazia, a antiguidade fundamentada nos mais seguros embasamentos é demolida, velhas doutrinas são pisoteadas, os decretos dos Padres são desgarrados, as definições de nossos maiores são anuladas; e isto, sem que a desenfreada concupiscência de novidades profanas consiga manter-se nos nítidos limites de uma tradição sagrada e incontaminada.
Testemunho de São Ambrósio - 5. É possível que alguém pense que eu invento ou exagero por amor à Antiguidade e ódio às novidades? Quem quer que assim pense, preste pelo menos atenção a São Ambrósio, que, em seu segundo livro dedicado ao Imperador Graciano, deplorando a perversidade dos tempos, exclamava:
“Deus todo poderoso, nossos sofrimentos e nosso sangue já têm resgatado suficientemente as matanças dos confessores, o exílio de bispos e tantas outras coisas ímpias e nefandas. Está mais que claro que quem tem violado a fé não podem estar seguros”.
E no terceiro livro da mesma obra diz:
“Observamos fielmente os preceitos de nossos Pais, e não rompemos com insolente temeridade o selo da herança. Porque nem os senhores, nem as Potestades, nem os Anjos, nem os Arcanjos ousaram abrir aquele profético livro selado: somente a Cristo compete o direito de rompê-lo”.
“Quem de nós se atreveria a romper o selo do livro sacerdotal, selado pelos confessores e consagrado por tantos mártires? Inclusive aqueles mesmos que, constrangidos pela violência o violaram, imediatamente rechaçaram o engano em que haviam caído e retornaram à Fé antiga. Aqueles que não ousaram violar-lo, setor naram confessores e mártires. Como poderíamos renegar sua fé, se celebramos precisamente sua vitória?”
A todos eles vai, ó venerável Ambrósio, nosso louvor, nosso elogio, nossa admiração! Quem seria tão estulto que, não podendo igualá-los, não deseje ao menos imitar estes homens, a quem nenhuma violência conseguiu desviá-los da fé dos Padres? Ameaças, lisonjas, esperança de vida, temor à morte, guardas, corte, imperador, autoridades, não serviram de nada: homens e demônios foram impotentes ante eles. Seu tenaz apegamento à Fé antiga os fez dignos, aos olhos do Senhor, de uma grande recompensa. Por meio deles, Ele quis levantar as Igrejas prostradas, voltar a infundir nova vida às comunidades cristãs esgotadas, restituir aos sacerdotes as coroas caídas. Com as lágrimas dos bispos que permaneceram fiéis, Deus tem limpado, como com uma fonte celestial, não as fórmulas materiais, mas a mancha moral da impiedade nova. Por meio deles, enfim, tem reconduzido ao mundo inteiro– todavia sacudido pela violenta e repentina tempestade da heresia – da nova perfídia à Fé antiga, da recente insana à primitiva saúde, da cegueira nova à luz de antes. Mas o que devemos destacar principalmente neste valor quase divino dos confessores é que defenderam a fé antiga da Igreja e não a crença de parte alguma dela. Nunca teria sido possível que tão grandes homens se desdobrassem em um esforço sobre-humano para sustentar as conjecturas errôneas e contraditórias de um ou dois indivíduos, ou que se dedicassem a fundo em favor da irreflexiva opinião de uma pequena província. Nos decretos e nas definições de todos os bispos da Santa Igreja, herdeiros da Verdade, é no que têm crido, preferindo se expor à morte a trair a antiga fé universal. Assim mereceram alcançar uma glória tão grande, que foram considerados não só confessores, mas, com todo direito, príncipes dos confessores.
Testemunho do Papa Estevão - 6. O exemplo verdadeiramente grande e divino destes Bem-aventurados deveria ser objeto constante de meditação para todo o verdadeiro católico. Eles, irradiando como a um candelabro de sete braços a luz septiforme do Espírito Santo, tem mostrado, de maneira claríssima aos que vieram depois, como que prevendo o futuro, diante de qualquer verborreia jactanciosa do erro, que se pode aniquilar a audácia de inovações ímpias com a autoridade da antiguidade consagrada. Quanto aos demais, esta maneira de atuar não é novidade na Igreja; efetivamente, nela sempre se observou que quanto mais se cresce o fervor da piedade, com maior presteza se põe barreira às novas invenções. Tem-se uma grande quantidade de exemplos, mas para não alongar-me muito, citarei apenas um, adequadíssimo para nossa finalidade, tomando-o da história da Sé Apostólica. Todos poderão ver, com mais claridade que a própria luz, com quanta fortaleza, diligência e zelo os veneráveis sucessores dos santos Apóstolos têm defendido sempre a integridade da doutrina recebida uma vez para sempre. Sucedeu que o bispo de Cartago, Agripino, de piedosa memória, teve a ideia de fazer que os hereges fossem rebatizados; e isto contra a Escritura, a norma da Igreja universal, a opinião de seus colegas, os costumes e os usos dos Padres. Isto deu origem a grandes males, porque não só oferecia a todos os hereges um exemplo de sacrilégio, mas também foi ocasião de erro para não poucos católicos. Dado que em todas as partes se protestava contra esta novidade, e em cada sítio os bispos tomavam diferentes posturas com respeito a ela, segundo lhes ditava seu próprio zelo, o Papa Estevão, de santa memória, bispo da Sé Apostólica, se somou com maior força que nada à oposição de seus colegas, pois entendia –acertadamente, a meu ver – que devia superar a todos na devoção à fé tanto quantos superava pela autoridade de sua Sé. Escreveu então uma carta à África e decretou nestes termos: “Nenhuma novidade, mas só o que tem sido transmitido”. Sabia aquele homem santo e prudente que a mesma natureza da religião exige que tudo seja transmitido aos filhos com a mesma fidelidade com a qual tenha sido recebido dos pais, e que, ademais, não nos é lícito levar e trazer a religião por onde nos pareça, mas que melhor somos nós os que temos que segui-la por onde quer que ela nos conduza. E é próprio da humanidade e da responsabilidade cristã não transmitira quem nos sucedam nossas próprias opiniões, mas conservar o que foi recebido de nossos superiores. Como acabou, pois, a situação? Como haveria de acabar senão da maneira comum e normal? Se agarraram à antiguidade e rechaçou-se a novidade. Então não houve defensores da inovação? Ao contrário, houve um tal desdobramento de ingênuos, uma tal profusão de eloquência, um número tão grande de partidários, tanta verossimiltude nas teses, tal acúmulo de citações da Sagrada Escritura, ainda que interpretada em um sentido totalmente novo e errado, que de nenhuma maneira, creio eu, se poderia superar toda aquela concentração de forças, se a inovação tão fortemente abraçada, defendida, louvada, não tivesse vindo abaixo por si mesma, precisamente por causa de sua novidade. O que ocorreu com os decretos daquele concílio africano e quais foram suas consequências? Graças a Deus não serviram para nada. Tudo se dissipou como um sonho e uma fábula e foi abolido como coisa inútil, desprezado, não levado em conta. Mas foi aqui que se produziu uma situação paradóxica. Os autores daquela opinião são considerados católicos, e em troca seus seguidores são hereges; os mestres foram perdoados e os discípulos condenados .Quem escreveu os livros errôneos serão chamados filhos do reino, enquanto que o inferno acolherá a quem se fazem seus defensores. Quem pode ser tão louco até o ponto de pôr em dúvida que o beato Cipriano, luz esplendorosa entre todos os santos bispos e mártires, reina junto com seus colegas eternamente com Cristo? E, ao contrário, quem poderia ser tão sacrílego que negasse que os donatistas e as outras pestes, que presunçosamente querem rebatizar apoiando-se na autoridade daquele concílio, arderão eternamente com o diabo?
Astúcia tática dos hereges
7. A meu modo de ver, um juízo tão severo foi pronunciado pelo Céu, por causa da malícia destes mistificadores, que não duvidavam em encobrir com outro nome as heresias que fabricavam. Com frequência se apropriavam de passagens complicadas e pouco claras de algum autor antigo, os quais, por sua mesma falta de caridade parecia que concordavam com suas teorias; assim simulavam que não eram os primeiros nem os únicos que pensavam dessa maneira. Esta falta de honradez eu a qualifico de duplamente odiosa, porque não têm escrúpulo algum em fazer que outros bebam o veneno da heresia, e porque mancham a memória de pessoas santas, como se espalhassem ao vento, com mão sacrílega, suas cinzas dormidas. Fazendo reviver determinadas opiniões, que melhore era deixar enterradas no silêncio, levam a cabo uma difamação. Nisto seguem a perfeição os passos de seu primeiro modelo Cam, que não só não se preocupou de cobrir a nudez de Noé, mas que a fez notar aos demais para zombar dele. Por causa de uma ofensa tão grave à piedade filial, até seus descendentes estiveram incluídos na maldição que mereceu seu pecado. Seu comportamento foi totalmente contrário ao de seus irmãos, os quais se negaram a profanar com seu olhar a venerável nudez de seu pai e a expô-la aos olhares de outros, mas que, como está escrito, o cobriu acercando-se de braços. Não aprovaram nem censuraram o erro daquele homem santo, e por isso mereceram uma esplêndida bênção, que se estendeu a seus filhos de geração em geração. Mas voltemos a nosso tema. Devemos ter horror, como se tratasse de um delito, de alterar a fé e corromper o dogma; não só a disciplina da constituição da Igreja nos impede fazer uma coisa assim, mas também a censura da autoridade apostólica. Todos conhecemos com quanta firmeza, severidade e veemência São Paulo se lança contra alguns que, com incrível frivolidade, se afastaram em pouquíssimo tempo daquele que que os havia chamado à graça de Cristo, para passar-se a outro Evangelho, ainda que a verdade é que não existe outro Evangelho; ademais, se haviam rodeado de uma turba de mestres que secundavam seus próprios caprichos, e apartavam os ouvidos da verdade para os dar às fábulas, incorrendo assim na condenação de ter violado a fé primeira. Se deixaram enganar por aqueles de quem escreve o mesmo Apóstolo em sua carta aos irmãos de Roma:
“Rogo-vos, irmãos, que desconfieis daqueles que causam divisões e escândalos, apartando-se da doutrina que recebestes. Evitai-os! Esses tais não servem a Cristo nosso Senhor, mas ao próprio ventre. E com palavras adocicadas e linguagem lisonjeira enganam os corações simples”. (Rm16,17-18)
Se introduzem nas casas e fazem escravas às mulheres carregadas de pecados e movidas por toda classe de desejos, as quais, ainda que sempre dispostas a instruir-se, não conseguem chegar nunca ao conhecimento da verdade. Charlatães e sedutores, revolucionam famílias inteiras, ensinando o que não convêm, com o fim de adquirir uma vil ganância. Homens de mente corrompida e desqualificados em matéria de fé, presunçosos e ignorantes, que se envolvem em discussões e em debates estéreis; privados da verdade, pensam que a piedade é algo lucrativo. Como não tem nada em que se ocupar, se dedicam ao perambulismo, e não só estão ociosos, mas que são falastrões e indiscretos, falando do que não devem. Têm depreciado uma boa consciência e naufragam na fé. Seus palavreados fúteis e profanos fazem que cada vez vão mais adiante na impiedade, e essas palavras sujas corroem como gangrena. Com razão se escreveu deles:
“Mas não irão longe, porque será manifesta a todos a sua insensatez, como o foi a daqueles dois (Jannes e Mambres)”. (2Tm 3,9)
Advertência de São Paulo aos Gálatas - 8. Indivíduos desta ralé, que percorriam as províncias e as cidades mercadejando com seus erros, chegaram até os Gálatas. Estes, ao escutá-los, experimentaram como uma certa repugnância pela verdade, rechaçaram o maná celestial da doutrina católica e apostólica e se deleitaram com a sórdida novidade da heresia.A autoridade do Apóstolo se manifestou então com maior severidade:
“Mas, ainda que alguém – nós ou um anjo baixado do céu – vos anunciasse um evangelho diferente do que vos temos anunciado, que ele seja anátema”. (Gl 1,8)
E por que disse São Paulo ainda que alguém – nós e não ainda que eu mesmo? Porque quis dizer que se inclusive Pedro, André, João, ou o colégio inteiro dos apóstolos anunciasse um evangelho diferente do que vos temos anunciado, que ele seja anátema. Tremendo rigor, com ele que, para afirmar a fidelidade à fé primitiva, não se exclui nem a si mesmo nem aos outros apóstolos. Mas isto não é tudo: ainda que um anjo baixado do céu vos anunciasse um Evangelho diferente do que vos temos anunciado, que ele seja anátema. Para salvaguardar a fé entregue uma vez para sempre, não lhe bastou recordar a natureza humana, mas que quis também incluir a excelência angélica: ainda que nós – diz – ou um anjo do céu. Não é que os santos ou os anjos do céu possam pecar, mas que é para dizer: inclusive se acontecesse isso que não pode acontecer, qualquer que fosse o que tentasse modificar a fé recebida, este tal seja anátema. Mas talvez o Apóstolo escreveu estas palavras às pressas, movido mais por um ímpeto passional humano que por inspiração divina! Continua, sem embargo, e repete com insistência e com força a mesma ideia, para fazer que seja assimilada:
“Repito aqui o que acabamos de dizer: se alguém pregar doutrina diferente da que recebestes, seja ele excomungado!” (Gl 1,9)
Não disse: se um lhe anuncie um Evangelho diferente do nosso, seja bendito, louvado, acolhido; mas disse: seja excomungado, ou seja, separado, cortado, excluído, com o fim de que o contágio funesto de uma ovelha infectada não se estenda, com sua presença mortífera, a todo o rebanho inocente de Cristo.
Valor universal da advertência Paulina - 9. Poderia se pensar que estas coisas foram ditas apenas para os Gálatas. Neste caso, também as demais recomendações que se fazem no resto da carta seriam válidas somente para os Gálatas. Por exemplo:
“Se vivemos pelo Espírito, andemos também de acordo com o Espírito. Não sejamos ávidos da vanglória. Nada de provocações, nada de invejas entre nós”. (Gl 5,25-26)
Pois se isto nos parece absurdo, ele quer dizer que essas recomendações se dirigem a todos os homens e não apenas aos Gálatas; tanto os preceitos que se referem ao dogma, como as obrigações morais, valem para todos indistintamente. Assim, pois, como a ninguém é lícito provocar ou invejar o outro, tampouco a ninguém é lícito aceitar um Evangelho diferente do que a Igreja Católica ensina em todas as partes. Então o anátema de Paulo contra quem anuncia um Evangelho diferente do que havia sido anunciado valia apenas para aqueles tempos e não para hoje? Neste caso, também o que se prescreve no resto da carta: “Digo, pois: deixai-vos conduzir pelo Espírito, e não satisfareis os apetites da carne” (Gl 5,16), já não nos obrigaria hoje. Se pensar uma coisa assim é ímpio e pernicioso, necessariamente há de se concluir que, posto que os preceitos de ordem moral têm de ser observados em todos os tempos, também os que têm por objeto a imutabilidade da fé obrigam igualmente em todo tempo. Por conseguinte, anunciar aos cristãos alguma coisa diferente da doutrina tradicional não era, não é e não será lícito; e sempre foi obrigatório e necessário, como é todavia agora e será sempre e no futuro, reprovar a quem faz bandeira de uma doutrina diferente da recebida. Diante disso, haverá alguém tão ousado que anuncie uma doutrina diferente da que é anunciada pela Igreja, ou será tão frívolo que abrace outra fé diferente da que recebeu da Igreja? Para todos, sempre, e em todas as partes, por meio de suas cartas, se levanta com força e com insistência o grito daquele instrumento eleito, daquele Doutor das Gentes, daquele sino apostólico, daquele estandarte do universo, daquele expert dos céus: “se alguém anuncia um novo dogma, seja excomungado”. Mas vemos como se eleva o coachar de algumas rãs, o zumbido desses mosquitos e essas moscas morimbundas que são os pelagianos. Estes dizem aos católicos:
“Toma-nos por mestres vossos, por vossos chefes, por vossos exegetas; condenai o que até agora tendes crido e credes no que até agora tendes condenado. Rechaçai a antiga fé, os decretos dos Padres, o depósito de vossos superiores, e recebei…”
Recebei, o que? Me causa horror dizê-lo, pois suas palavras estão tão cheias de soberba que me parece cometer um crime não só ele dizê-las, mas também refutá-las.
Por que Deus permite que existam heresias na Igreja
10. Mas alguém poderá dizer: Por que Deus permite que com tanta frequência pessoas insignes da Igreja se ponham a defender doutrinas novas entre os católicos? A pergunta é legítima e merece uma resposta ampla e detalhada. Mas responderei fundamentando-me não em minha capacidade pessoal, mas na autoridade da Lei divina e no ensinamento do Magistério eclesiástico. Ouçamos, pois, a Moisés: que ele nos diga o porquê de vez em quando Deus permite que homens doutos, inclusive chamados profetas pelo Apóstolo por causa de sua ciência, se ponham a ensinar novos dogmas que o Antigo Testamento chama, em seu estilo alegórico, de divindades estrangeiras. (Realmente os hereges veneram suas próprias opiniões tanto como os pagãos veneram seus deuses). Moisés escreve:
“Se se levantar no meio de ti um profeta ou um visionário – ou seja, um mestre confirmado na Igreja, cujo ensinamento seus discípulos e ouvintes creem ser proveniente de alguma revelação – anunciando-te um sinal ou prodígio, e suceder o sinal ou o prodígio que anunciou…” (Dt 13,1-2a)
Certamente, com estas palavras se quer assinalar um grande mestre, de tanta ciência que pode fazer crer a seus seguidores, que não somente conhece as coisas humanas, mas que também tem a presença das coisas que superam ao homem. Era mais ou menos isto que os discípulos de Valentim, Donato, Fotino, Apolinário e outros da mesma laia acreditavam. E como continua Moisés?
“…e te disser: vamos, sigamos outros deuses que te são desconhecidos e prestemos-lhes culto,” (Dt 13,2)
Quem são estes outros deuses senão as doutrinas erradas e estranhas? Que te são desconhecidos, ou seja, novas e inauditas. E prestemos-lhes culto, ou seja, acreditemos nela e as sigamos. Pois bem, o que diz Moisés neste caso?
“…tu não ouvirás as palavras desse profeta ou desse visionário;” (Dt 13, 3a)
Mas eu lhes ponho esta questão: Por que Deus não impede que se ensine o que Ele proíbe que se escute? Então Moisés responde:
“…porque o Senhor, vosso Deus, vos põe à prova para ver se o amais de todo o vosso coração e de toda a vossa alma”. (Dt 13,3b)
Assim, pois, está mais claro que a luz do sol o motivo por que de vez em quando a Providência de Deus permite mestres na Igreja que preguem novos dogmas: porque o Senhor, vosso Deus, vos põe à prova. E certamente que é uma grande prova ver um homem tido por profeta, por discípulo dos profetas, por doutor e testemunha da verdade, um homem sumamente amado e respeitado, que de repente se põe a introduzir ocultamente erros perniciosos. Tanto mais quanto que não existe possibilidade de descobrir imediatamente esse erro, posto que lhe apanha de surpresa, já que se tem de tal homem um juízo favorável por causa de seu ensinamento anterior, e se resiste ao condenar o antigo mestre ao qual nos sentimos ligados pela afeição.