Exemplos de Nestório, Fotino e Apolinário
11. Chegando a este ponto, alguém poderá me pedir que contraste as palavras de Moisés com exemplos tomados da História da Igreja. O pedido é justo e respondo a seguir. Partindo, em primeiro lugar, de fatos recentes e bem conhecidos, poderia alguém de nós imaginar a prova pela qual atravessou a Igreja, quando o infeliz Nestório se converteu repentinamente de ovelha em lobo, começou a desgarrar o rebanho de Cristo, ao mesmo tempo que aqueles a quem ele mordia, o tendo por ovelha, estavam assim mais expostos a seus mordiscos? Na verdade dificilmente podia passar pela cabeça de alguém que pudesse estar em erro quem tinha sido eleito pela alta judicatura da corte imperial e tinha grande estima pelos outros bispos. Rodeado de profunda afeição das pessoas piedosas e de uma grande popularidade, todos os dias explicava publicamente a Sagrada Escritura, e refutava os erros perniciosos dos judeus e pagãos. Quem não estava convencido que de que um homem desta classe não ensinava a fé ortodoxa, que pregava e professava a mais pura e sã doutrina? Mas sem dúvida para abrir caminho a uma só heresia, a sua, tinha que perseguir todas as demais mentiras e heresias. A isto precisamente se referia Moisés, quando dizia:
“…porque o Senhor, vosso Deus, vos põe à prova para ver se o amais de todo o vosso coração.”
Deixemos então de lado Nestório, nele que sempre teve mais brilho de palavras que verdadeira substância, mais resplendor que efetiva valentia, e ao qual o favor dos homens, e não a graça de Deus, o fazia aparecer grande diante da estima do povo. Recordemos melhor a quem, dotados de habilidade e do atrativo dos grandes êxitos, se converteram para os católicos em ocasião de tentações não sem tanta importância. Assim, por exemplo, sucedeu-se em Panônia nos tempos de nossos Padres, quando Fotino tentou enganar a Igreja de Sirmio. Havia sido eleito bispo com grande estima por parte de todos, e durante certo tempo cumpriu com seu ofício como um verdadeiro católico. Mas chegou um momento em que, como profeta ou visionário malvado sobre quem falava Moisés, começou a persuadir ao povo de Deus que lhe havia sido confiado de que devia seguir a outros deuses, ou seja, a novidades errôneas nunca antes conhecidas. Até aqui nada de extraordinário. Mas o que era particularmente perigoso era o fato de que, para esta empresa tão malvada, se servia de meios nada comuns. Com efeito, possuía um agudo ingênio, riqueza de doutrina e ótima eloquência; disputava e escrevia abundantemente e com profundidade tanto em grego quanto em latim, como mostram as obras que compôs em uma e outra língua. Por sorte, as ovelhas de Cristo que lhe foram confiadas eram muito prudentes e estavam vigilantes no que se refere à Fé Católica; imediatamente se recordaram das advertências de Moisés, e ainda que admirassem a eloquência de seu profeta e pastor, não se deixaram seduzir pela tentação. Desde esse momento começaram a fugir, como se fosse um lobo, daquele a quem até pouco tempo seguiram como guia do rebanho.
Além de Fotino, temos o exemplo de Apolinário, que nos põe em guarda contra o perigo de uma tentação que pode surgir no seio mesmo da Igreja, e que nos adverte de que temos de vigiar muito diligentemente sobre a integridade de nossa fé. Apolinário introduziu em seus ouvintes a mais dolorosa incerteza e angústia, pois por uma parte se sentiam atraídos pela autoridade da Igreja, e por outra eram retidos pelo mestre ao qual estavam habituados. Vacilando assim entre um e outro, não sabiam o lhes era conveniente fazer. Era, então, aquele um homem de pouco o nenhum destaque? Pelo contrário, reunia tais qualidades que se sentiam levados a crer nele, inclusive muito rapidamente em um grande número de coisas. Quem poderia fazer frente a sua agudeza de ingênio, a sua capacidade de reflexão e a sua doutrina teológica? Para se ter uma ideia do grande número de heresias esmagadas, dos erros nocivos à fé desbaratados por ele, basta recordar a obra insigne e importantíssima, de não menos de trinta livros, com a que refutou, com grande número de provas, as loucas calúnias de Porfírio. Nos alargaríamos demasiado se recordássemos aqui todas as suas obras; à mercê delas poderia ser igual aos mais grandes artífices da Igreja, se não houvesse sido empurrado pela insana paixão da curiosidade a inventar não sei que nova doutrina, a qual como uma lepra, contagiou e manchou todos seus trabalhos, até o ponto de que sua doutrina se converteu em ocasião de tentação para a Igreja, mais que de edificação. Doutrina destes hereges À primeira vista parece que distingue despretensiosamente duas substâncias em Cristo, mas de repente introduz duas pessoas, cometendo um crime inaudito, afirma que há dois filhos de Deus, dois Cristos, um é Deus e o outro e homem, um é engendrado pelo Pai, o outro é nascido da mãe. Por isso conclui que Maria Santíssima não pode ser chamada Theotókos, Mãe de Deus, mas somente Christotokos, Mãe de Cristo, pois quem dela nasceu não foi o Cristo que é Deus, mas o Cristo que é homem. Somente alguém que não raciocina pode crer que Nestório, em seus escritos, admite um só Cristo e prega uma só pessoa de Cristo. Na realidade, se expressou de maneira enganosa, para poder mais facilmente insinuar o mal através do bem, segundo nos diz o Apóstolo:
“acarretou para mim a morte por meio do que é bom”. (Rm 7,13)
Se em alguma parte de seus escritos proclama que crê em um só Cristo e em uma só pessoa de Cristo, o diz somente para enganar. Na realidade afirma que depois de haver nascido da Virgem, as duas pessoas se reuniram em um só Cristo, mantendo assim que no tempo da concepção ou do parto virginal – e inclusive durante um certo tempo após – haviam dois Cristos. Segundo isto, Cristo havia nascido primeiro como um simples homem comum, sem estar contudo associado na unidade de pessoa ao Verbo de Deus; só depois desceria n’Ela a pessoa do Verbo que o assumiria. E se agora Cristo segue assumido na glória de Deus, houve, não obstante, um tempo no qual não havia diferença alguma entre Ele e os demais homens.
A verdadeira Fé Trinitária e Cristológica
12. Antes de seguir adiante, talvez se espere que me detenha a expor as doutrinas heréticas daqueles a quem acabei de mencionar: Nestório, Apolinário e Fotino. Na verdade isto sairia de meu intento, porque não propus a refutar os erros um a um. Se fiz uso de alguns exemplos, o fiz para demonstrar com clareza e evidência que o que disse Moisés é verdade, ou seja, para demonstrar que, se um doutor da Igreja – um profeta, poderíamos dizer – que interpreta os mistérios proféticos, procura introduzir alguma novidade na Igreja de Deus, é a Providência Divina quem o permite para nos provar. Não obstante, não será inútil expor, de passagem, as doutrinas dos hereges acima citados.
Quanto a Fotino, diz que existe um Deus único e somente, que deve ser entendido segundo a mentalidade judaica. Nega, portanto, a plenitude da Trindade e mantém que nem o Verbo de Deus nem o Espírito Santo são pessoas reais. Afirma, ademais, que Cristo foi somente um homem que teve sua origem em Maria. Reafirma, de todas as maneiras possíveis, que devemos honrar somente a pessoa de Deus Pai, e a Cristo como puramente homem.
Apolinário declara que está de acordo conosco sobre a unidade da Trindade, ainda que logo, sobre este mesmo ponto, sua fé não é de todo íntegra. Acerca da Encarnação do Senhor blasfema abertamente. Diz que na carne de Nosso Senhor não havia realmente uma alma humana, ou se havia, não tinha inteligência nem razão humana. A carne do Senhor não foi tomada da carne da Santíssima Virgem Maria – afirma – mas que desceu do céu ao seio da Virgem. Sempre inconcreto e vacilante, às vezes afirmava que esta carne é coeterna ao Verbo de Deus, outras vezes que é criada pela divindade do Verbo. Não admitia que em Cristo haja duas substâncias, uma divina e uma humana, uma proveniente do Pai e outra da Mãe. Pensava realmente que a mesma natureza do Verbo estava dividida, como se uma parte d’Ele permanecesse eternamente em Deus, enquanto que outra parte tivesse se encarnado. Assim, enquanto a verdade afirma que há um só Cristo, formado por duas substâncias, ele sustentava, pelo contrário, que duas substâncias se formaram de uma só divindade de Cristo.
Nestório está infectado por um humor totalmente oposto ao de Apolinário
13. Estas são as coisas que Nestório, Apolinário e Fotino, como cães raivosos, ladram contra a Igreja Católica: Fotino não admite a Trindade, Apolinário afirma a convertibilidade da natureza humana do Verbo e nega a existência de duas substâncias em Cristo, ao mesmo tempo que não admite em Cristo uma alma inteira, ou pelo menos não admite nela a inteligência e a razão, pretendendo que o lugar da inteligência foi ocupado pelo Verbo de Deus; por último, Nestório diz que houve sempre, ou ao menos durante um certo tempo, dois Cristos. Em troca, a Igreja Católica, que pensa retamente acerca de Deus e acerca de nosso Salvador, não profere blasfêmias nem contra o mistério da Trindade nem contra a Encarnação de Cristo. A Igreja adora uma só divindade na plenitude da Trindade e a igualdade da Trindade em uma única e mesma majestade; professa um só Cristo Jesus, não dois; o qual é igualmente Deus e homem. Crê que n’Ele há uma só pessoa, mas duas substâncias; duas substâncias, mas uma só pessoa, porque, admitindo dois Filhos, poderia parecer que a Igreja adora uma quaternidade e não uma Trindade. Mas talvez seja necessário tratar com mais tempo e precisão este ponto. Em Deus há uma só substância e três pessoas; em Cristo, duas substâncias, mas uma só pessoa. Na Trindade há diversas pessoas, mas a substância é uma; no Salvador há mais substâncias, mas a pessoa é única. De que maneira há na Trindade diferentes pessoas e não há diferentes substâncias? Porque uma é a pessoa do Pai, outra a do Filho, outra a do Espírito Santo; e, sem embargo, o Pai, o Filho e o Espírito Santo não têm diferentes naturezas, mas uma única e a mesma natureza.
E como é que no Salvador há duas substâncias, mas não duas pessoas? Porque, evidentemente, uma coisa é a substância divina e outra a substância humana; sem embargo, a divindade e a humanidade não são dois Cristos, mas um único e o mesmo Filho de Deus, uma só e mesma pessoa, a de um único e mesmo Cristo e Filho de Deus. Da mesma forma que no homem uma coisa é a carne e outra é a alma, e alma e corpo não formam senão um único e mesmo homem. Em Pedro e Paulo uma coisa é a alma e outra é o corpo; mas o corpo e a alma de Pedro não formam dois Pedros, nem existe um Paulo-alma e um Paulo-carne, subsistentes cada um por uma dupla e diferente natureza, a da alma e a do corpo. Assim, em um único e mesmo Cristo há duas substâncias, mas uma é divina e a outra humana, uma procede de Deus Pai, a outra da Virgem Mãe; a primeira é coeterna e igual ao Pai, a segunda é temporal e inferior ao Pai; uma é consubstancial ao Pai, a outra consubstancial à Mãe, sem embargo, é um único e mesmo Cristo em ambas as substâncias. Não temos, pois, um Cristo-Deus e um Cristo-homem; o primeiro incriado e o segundo criado; um impassível e outro capaz de sofrer; um igual ao Pai e outro inferior a Ele; um engendrado pelo Pai e o outro pela Mãe. Existe um único e mesmo Cristo que é Deus e homem, incriado e criado, imutável, impassível, mas que ao mesmo tempo está sujeito a mudanças e sofrimentos; um único e mesmo Cristo, o qual é juntamente igual e inferior ao Pai, gerado pelo Pai antes de todos os séculos e nascido da Mãe no tempo, perfeito Deus e perfeito homem. Enquanto Deus, possui a plenitude da divindade; enquanto homem, uma humanidade perfeita. Perfeita, repito, que compreende alma e carne: uma carne verdadeira como a nossa, tomada da Mãe; uma alma inteligente, dotada de pensamento e de razão. Em Cristo está, pois, o Verbo, a alma e o corpo, mas tudo isso é um só Cristo, um único Filho de Deus, um único Salvador e Redentor nosso. Um só Cristo, não por uma mistura corruptível da divindade com a humanidade – por demais incompreensível – mas por uma total e singular unidade de pessoa. Esta união não modificou nem transformou nem uma substância nem a outra (que é o erro próprio dos arianos), senão juntou em uma só coisa as duas naturezas, de modo que em Cristo permanecem eternamente tanto a unicidade de uma só e mesma pessoa como também as propriedades específicas de cada natureza. Daqui se segue que Deus não começou nunca a ser corpo, nem o corpo cessará em nenhum momento de ser tal. O exemplo da natureza humana pode nos dar alguma luz a respeito. Cada homem é composto de alma e corpo, e assim será sempre, e nunca acontecerá que o corpo se transforme em alma ou alma em corpo. Posto que cada homem viverá para sempre daqui por diante, em cada um permanecerá necessariamente sempre a diferença entre as duas substâncias. Assim também em Cristo, a propriedade característica de cada substância persistirá por toda a eternidade, ficando sempre a salvo a unidade de pessoa.
Realidade da natureza humana de Cristo
14. Posto que estamos usando com muita frequência o termo “pessoa”, e dizemos que Deus se fez homem in persona, é preciso prestar atenção para que não pareça estarmos afirmando que o Verbo de Deus assumira só externamente o que é próprio da natureza humana, limitando-se a imitar nossas ações; e que não tenha tomado parte na atividade humana como verdadeiro homem, mas só aparentemente, como se faz no teatro, onde um só ator pode interpretar vários personagens sem sêlos realmente. Cada vez que os atores imitam a conduta de outros, ainda que reproduzam à perfeição seu modo de atuar e comportar-se, eles não são os personagens representados. Na verdade, servindo-me de termos profanos, quando um ator faz o papel de um sacerdote ou de um rei, ele não é nem sacerdote e tampouco rei; encerrada a peça, deixa de existir também o personagem representado. Longe de nós este ímpio e ignominoso insulto a Cristo, próprio da demência maniqueísta. Estes pregadores de bobagens fantásticas afirmam que o Filho de Deus, Deus mesmo, não assumiu realmente a natureza humana, mas apenas uma aparência de homem em seus atos e em todo seu comportamento. A fé católica, ao contrário, afirma que o Verbo de Deus se fez homem até o ponto de assumir tudo que pertence à nossa natureza, e não por via de ficção ou de aparência, mas de uma maneira real e substancial. Os atos humanos que levava a cabo eram atos próprios seus, e não imitação de atos de outrem; seu atuar era expressão de seu ser. Como quando falamos, conhecemos, vivemos, existimos, não imitamos aos homens, mas somos realmente nós mesmos. Pedro e João, por exemplo, eram homens porque tal era seu ser, não por imitação; Paulo não fingia ser Apóstolo ou Paulo; ele era Apóstolo, ele era Paulo. Assim, o Verbo de Deus, assumindo e possuindo a carne, pregando, atuando, sofrendo na carne – sem nenhum menosprezo da própria natureza divina – se dignou mostrar que Ele não imitava ou fingia ser um homem perfeito, mas que realmente era o que parecia: homem perfeito e não aparência humana. Assim como a alma, unindo-se à carne, sem transformar-se em carne, não imita o homem, mas o constitui realmente, assim também o Verbo de Deus, unindo-se à natureza humana, sem modificar-se ou confundir-se com ela, se fez realmente homem, não uma imitação ou uma aparência de homem. É preciso, pois, evitar absolutamente dar ao termo “pessoa” um significado que suponha uma imitação, uma diferença entre o que finge e o personagem objeto da ficção, na qual quem atua não é nunca aquele a quem representa. Por isso, não ocorra nunca que creiamos que o Verbo de Deus assumiu de maneira fictícia a natureza humana. Pelo contrário, devemos crer que, permanecendo imutável sua substância divina, assumiu uma natureza humana completa em si, que fez ser carne, homem, realidade humana não simulada, mas verdadeira; não imaginária, mas entitiva; não destinada a cessar de existir como ao término de uma apresentação teatral, mas a persistir para sempre de maneira substancial.
Maria, “Mãe de Deus”
15. Esta unicidade de pessoa em Cristo se atuou e foi perfeita não depois do parto virginal , mas no próprio seio da Virgem. Portanto, devemos atender com todo cuidado a professar não somente que Cristo é um, mas que sempre foi um. Seria uma blasfêmia intolerável sustentar que agora Cristo é um, mas que durante um determinado período de tempo existiram dois: um Cristo depois do batismo; dois, entretanto, no momento do nascimento. Podemos evitar assim tão grande sacrilégio apenas se cremos que o homem se uniu a Cristo na unidade de pessoa já e desde o seio materno, no mesmo instante da concepção virginal, e não no momento da ascensão ou da ressurreição, ou no momento do batismo. Em virtude desta unidade de pessoa se atribui indiferentemente e de maneira indistinta ao homem o que é próprio de Deus, e a Deus o que é próprio da carne. Por inspiração divina foi escrito que o Filho do homem baixou do céu e que o Senhor da majestade foi crucificado na terra. Assim nós dizemos que o Verbo de Deus foi feito, que a Sabedoria mesma de Deus foi aperfeiçoada, que sua ciência foi criada, quando é a carne do Senhor que foi feita, criada, como foi predito que suas mãos e seus pés seriam traspassados. Por causa desta unidade de pessoa e em razão deste mesmo mistério, é perfeitamente católico crer que quando nasceu a carne do Verbo de uma Mãe incontaminada, foi o mesmo Deus Verbo quem nasceu de uma Virgem. Negá-lo seria uma grande impiedade. Ninguém, pois, pretenda jamais privar Maria Santíssima do privilégio desta graça divina e de uma glória tão especial. Pelo querer determinado do Senhor, Deus nosso e Filho seu, devemos proclamá-la com toda verdade e acerto Theotokos, Mãe de Deus. Não, certamente, o entendendo no sentido de uma heresia ímpia, a qual sustenta que Maria pode ser dita Mãe de Deus só de nome, enquanto que engendrou um homem que depois se converteu em Deus; ao modo como usamos comumente a expressão: mãe de um sacerdote ou mãe de um bispo, não porque estas mulheres tenham engendrado a um presbítero ou bispo, mas porque puseram no mundo homens que depois se fizeram sacerdotes ou bispos. Não neste sentido, repito, Maria Santíssima é Mãe de Deus, mas, como se disse antes, porque em seu sagrado seio se realizou o mistério sacrossanto pelo qual, em razão de uma particular e única unidade de pessoa, o Verbo é carne na carne, e o homem é Deus em Deus.
Condenações e Bênçãos
16. Já é tempo de fazer uma breve síntese, para recordá-lo com maior facilidade, de tudo o que temos dito acerca das heresias e da fé católica. Quando se repetem as coisas, se compreendem melhor e se afixam mais profundamente na memória. Condenação, pois, de Fotino, que rechaça a plenitude da Trindade e ensina que Cristo foi pura e simplesmente um homem. Condenação de Apolinário, que sustenta que a divindade de Cristo se transformou e se corrompeu, negando assim a propriedade de uma humanidade perfeita. Condenação de Nestório, que afirma que Deus não nasceu de uma Virgem, admite dois Cristos e, rechaçando a fé na Trindade, nos propõe uma quaternidade. Bendita, entretanto, a Igreja Católica, que adora a um só Deus na plenitude da Trindade e a igualdade das Três Pessoas Divinas em uma única Divindade, de maneira que nem a unidade de substância dilui a propriedade das Pessoas, nem sua distinção rompe a unidade da Divindade. Bendita a Igreja, que crê que em Cristo há duas substâncias reais e perfeitas, mas que é única a pessoa de Cristo; a distinção entre as duas naturezas não divide a unicidade da pessoa, nem a unicidade de pessoa confunde as duas diferentes naturezas. Bendita a Igreja, que para proclamar que Cristo é e tem sido sempre um, professa que o homem se uniu a Deus no seio materno da Mãe, e não depois do parto. Bendita seja esta Igreja, que compreende que Deus se fez homem, não por uma modificação de sua natureza, mas em virtude da pessoa, não de uma pessoa fictícia ou provisória, mas real e permanente. Bendita a Igreja, que ensina que esta unicidade de pessoa é tão profunda que atribui ao homem, por um mistério admirável e inefável, o que é de Deus e a Deus o que é do homem. Em virtude desta unicidade, a Igreja não teme afirmar que o homem, enquanto Deus, desceu do céu, e crer que Deus, enquanto homem, nasceu na terra, padeceu e foi crucificado. Consequência desta unicidade, a Igreja confessa que o homem é Filho de Deus e que Deus é Filho de uma Virgem. Bendita, pois, e veneranda, bendita e sacrossanta é esta profissão de fé, totalmente comparável ao louvor angélico que dá glória ao único Senhor Deus com uma trina exaltação de sua divindade. A Igreja prega a unicidade de Cristo principalmente por isto: para respeitar o mistério da Trindade. Tudo o que disse nessa digressão, se a Deus apraz, tratarei de maneira mais ampla e completa em outra ocasião. Agora voltemos a nosso tema.
A queda de Orígenes
17. Dizíamos que na Igreja de Deus o erro de um mestre é uma tentação para os fiéis; tentação tanto maior quanto mais douto é o que erra. Tenho provado isto desde já com a autoridade da Escritura, depois com exemplos da história eclesiástica, recordando aqueles homens que foram tidos durante certo tempo por plenamente ortodoxos e que acabaram em uma seita acatólica ou inclusive fundaram uma heresia. Este é um aspecto muito importante, que pelo mesmo é necessário conhecer e ter sempre presente, inclusive ilustrado com grande número de exemplos para que penetrem bem na mente, com o fim de que os verdadeiros católicos saibam que devem receber aos Doutores com a Igreja, e não abandonar a Igreja pelos Doutores. Poderia citar numerosos exemplos de tal classe de tentação, mas penso que nenhum é comparável ao caso de Orígenes. Possuía qualidades tão excepcionais e maravilhosas que qualquer um prestaria fé, desde o primeiro momento, a todas as suas afirmações. Pois se a vida edifica a autoridade da pessoa, ele foi um homem de grande laborosidade, castidade, paciência e constância incomuns. E se consideramos seu berço e sua ciência, quem foi mais nobre que ele? Nasceu de uma família ilustrada pelo martírio, e depois de ter sido privado de pai e de morada, por causa de Cristo, saiu adiante em meio das estreitezas de uma santa pobreza, sofrendo com frequência, segundo nos contam sempre, por confessar o nome do Senhor. Possuía muitos outros dotes, que depois se mudaram em motivo de tentação. Sua inteligência era tão vasta, penetrante, aguda, nobre, que não tinha rival. Ademais, tinha tal conhecimento da doutrina cristã e uma erudição tão grande que poucas coisas da filosofia divina lhe escapavam, e quase nenhuma da humana havia que ele não conhecesse profundamente. Sua ciência não se limitou às obras gregas, mas também se estendeu às hebraicas. Devo recordar sua eloquência? Era tão agradável, pura, suave, que se podia dizer que era mel, não palavras, o que destilavam seus lábios. Não havia questão difícil de expor que ele não tornasse límpida com a força de seu raciocínio, nem coisas que pareciam áridas que ele não as tornassem facílimas.
– Mas não terá, talvez, construído suas obras e fundamentado suas asserções somente sobre argumentos racionais?
– Pelo contrário, nunca houve um mestre que tenha utilizado mais que ele a Sagrada Escritura.
– É possível que tenha escrito pouco.
– Em absoluto! Nenhum mortal escreveu mais que ele, tanto que não é possível, penso, não só ler todas suas obras, como nem sequer encontrá-las todas. E para que não lhe faltasse nenhum meio para formar-se e aperfeiçoar-se na ciência, teve o dom da plenitude dos anos.
– Talvez tenha tido pouca sorte com seus discípulos…
– Existiu alguém mais afortunado que ele? Inumeráveis são os doutores, os bispos, confessores, os mártires saídos de sua escola. É verdadeiramente impossível medir a admiração, a glória, o favor de que gozou por parte de todos. Quem, por pouco religioso que fosse, não acudia a ele desde os mais remotos rincões da terra? Sabemos pela história que era reverenciado não só pelas pessoas privadas, mas também pelo próprio imperador. Se conta que a mãe do imperador Alexandre o fez chamar a seu lado por causa da sabedoria divina que superabundava nele, e que ela desejava ardentemente conhecê-lo. Encontramos outro testemunho nas cartas que escreveu, com autoridade de mestre, ao imperador Felipe, primeiro príncipe de Roma; que se fez cristão. E se não se quer dar crédito a nosso testemunho cristão sobre sua incrível ciência, escutemos ao menos o que dela dizem os filósofos pagãos. O ímpio Porfírio narra que, sendo ele ainda um menino, foi até Alexandria atraído pela fama de Orígenes, e ali o viu, já muito avançado em idade, mas com tal classe e com tanta grandeza, que parecia que ele havia construído a cidadela de toda a sabedoria. Mas se passaria uma noite inteira antes de que pudesse expor, nem sequer sucintamente, uma pequena parte das virtudes insignes que se encontravam neste homem. Sem embargo, todas estas qualidades não serviram somente para a glória da religião, mas também para fazer a tentação mais perigosa. Ninguém se encontrava disposto a abandonar a um homem de tão grande engenho, de doutrina e dotes tão exímios; qualquer um repetiria a sentença:
“É preferível estar equivocado com Orígenes que ter razão com os demais”.
Se poderia acrescentar algo mais? A tentação que esta grande personalidade, este doutor e profeta insigne provocou não foi de pouca monta, mas foi de tal envergadura, como demonstra o resultado final, que desviou a muitos da integridade da fé. Por ter abusado com temeridade da graça de Deus, por ter feito concessões demais à sua inteligência e posto uma confiança desmedida em si mesmo, por ter desconsiderado a antiga simplicidade da religião cristã, presumindo, todavia, saber mais que os outros; por ter depreciado as tradições da Igreja e o magistério dos antigos, interpretando de maneira totalmente nova algumas passagens da Sagrada Escritura; por tudo isso Orígenes – mesmo sendo tão eminente e extraordinário como era – mereceu que também a propósito dele se lhe dissesse à Igreja de Deus:
“Se no meio de ti se levanta um profeta…, não escutes as palavras desse profeta…, porque está te provando Javé, teu Deus, para ver se lhe amas ou não.”
E, por certo, não foi esta uma prova indiferente para a Igreja que, confiando nele e arrebatada pela admiração de seu engenho, de sua ciência, de sua eloquência, de seu modo de viver, de sua autoridade, sem suspeitar nada nem temer nada, se veria arrancada da antiga fé e escorregar-se até novidades profanas. Alguém dirá: as obras de Orígenes foram interpoladas e arranjadas. Concedo, e também desejaria que tivessem sido. Há muitos que falam e escrevem sobre estas interpolações, e não só católicos, mas também hereges. O que quero sublinhar e o fato de que, ainda que os livros não tenham sido escritos por Orígenes, mas empregando seu nome, foram igualmente ocasião de grande tentação. Formigam de afirmações ímpias, mas são lidos e apreciados como se fossem de Orígenes e não de outrem. Assim, ainda que não fora sua intenção emitir erros, sem embargo, estes foram difundidos sob a autoridade de seu nome.
O escândalo de Tertuliano
18. O mesmo ocorreu com Tertuliano, que foi o maior entre os nossos latinos, como Orígenes o foi entre os gregos. Quem foi mais douto que ele, quem mais esperto tanto nas coisas divinas quanto nas humanas? Com a maravilhosa capacidade de sua mente se passeava pelo conhecimento de toda a filosofia, das escolas filosóficas, de seus fundadores e seguidores, de todas as suas disciplinas, da história e dos mais variados ramos do saber. Dotado de um engenho forte e profundo, não tinha dificuldade que se propusesse resolver que não a superasse e a conquistasse com sua inteligência aguda e poderosa. Quem seria capaz de louvar como se deve a estrutura e o estilo de suas composições? Tudo está nelas concatenado com tal necessidade lógica, que obriga a assentir com ele a aqueles a quem não consegue convencer. Se pode dizer que nele cada palavra é uma sentença, cada afirmação uma vitória. Sabem muito bem isto os discípulos de Marcion, de Apeles., de Praxeas, de Hermógenes, os judeus, os pagãos, os gnósticos e todos os demais, cujas blasfêmias fulminou, demoliu e destruiu com seus muitos e poderosos livros. Sem embargo, também ele, esse Tertuliano que havia levado a cabo todas estas coisas por ter sido pouco tenaz em apegar-se ao dogma católico, ou seja, a fé antiga e universal, e mais eloquente que profundo, ao final trocou suas ideias –como diz dele o bem-aventurado confessor Hilário – “com esse erro final privou de toda autoridade seus louváveis escritos”. Assim, pois, também ele foi para a Igreja ocasião de grande tentação. Não quero acrescentar mais, apenas recordar que por ter afirmado, sem ter em conta o preceito de Moisés, que as novas fúrias de Montano surgidas na Igreja e as loucas fantasmagóricas de mulheres delirantes de novos dogmas eram verdadeiras profecias, mereceu que dele e de seus escritos se dissesse:
“Se no meio de ti se levanta um profeta…, não escutes as palavras desse profeta…”
Por quê?
“Porque está te provando Javé, teu Deus, para ver se lhe amas ou não.”
Função providencial destes exemplos
19. O número e a importância destes exemplos eclesiásticos, e de muitos outros do mesmo gênero, não pode deixar de nos fazer prudentes, e nos mostram como uma luz mais clara que a do sol que, segundo o que nos diz o Deuteronômio, se um doutor se desvia da fé, é a Providência de Deus que o permite, para ver se amamos a Deus com todo o coração e com toda nossa alma.
O verdadeiro católico e o herege
20. De tudo que temos dito, aparece evidente que o verdadeiro e autêntico católico é o que ama a verdade de Deus e a Igreja, corpo de Cristo; aquele que não antepõe nada à religião divina e à fé católica: nem a autoridade de um homem, nem o amor, nem o gênio, nem a eloquência, nem a filosofia; mas que depreciando todas estas coisas e permanecendo solidamente firme na fé, está disposto a admitir e a crer somente o que a Igreja sempre e universalmente tem crido. Sabe que toda doutrina nova e nunca antes ouvida, insinuada por uma só pessoa, fora ou contra a doutrina comum dos fiéis, não tem nada a ver com a religião, mas que melhor constitui uma tentação, doutrinado nisto especialmente pelas palavras do Apóstolo Paulo:
“É necessário que entre vós haja partidos para que possam manifestar-se os que são realmente virtuosos” (1Cor 11,19)
Como se dissesse: Deus não elimina imediatamente aos autores de heresias, para que se manifestem os que são de uma virtude provada, ou seja, para que apareça em que medida cada um é tenaz, fiel, constante e nele mora a fé católica. E verdadeiramente, apenas um vento de novidades começa a soprar, imediatamente se vê como os grãos coalhados de trigo se separam e se distinguem da casca sem peso, e sem grande esforço é arrancado fora de lá o que não é sustentado por peso algum. Alguns voltam imediatamente; outros, no entanto, transtornados e desalentados, temem perecer, mas se envergonham de regressar, espancados como estão e mais mortos que vivos; parece exatamente como tivessem bebido uma dose de veneno que já não podem eliminar e que, ainda que não lhes mate logo, não lhes permite seguir realmente vivendo. Situação desgraçada! Quantas violentas aflições, quantas perturbações lhes assaltam! Já se deixam levar pelo erro como um vento impetuoso; já se recolhem em si mesmos, como ondas na tempestade, e são lançados na praia; outras vezes, com audácia temerária, dão sua conformidade ao que é errado; em outros momentos, sob o impulso de um medo irracional, se espantam até do que é verdade. Não sabem mais aonde ir, aonde voltar, não sabem o que querem, não sabem do que devem fugir, não sabem o que deve ser mantido e o que, ao contrário, deve ser rechaçado. E se ao menos soubessem que estas dúvidas e esta angústia de um coração vacilante são o remédio que a misericórdia divina lhes preparou! Por isto precisamente, afastados do porto seguro da fé católica, sãos acudidos, golpeados, como imersos na tempestade, para que, recolhidas e amainadas as velas da mente, que estavam estendidas ao largo e desdobradas aos ventos infiéis das novidades, voltem a buscar morada no refúgio confiado de sua Mãe boa e tranquila e, rechaçadas as ondas amargas e alvoroçadas do erro, possam alcançar a fonte de águas vivas e saltitantes e beber dela. Que “desaprendam” bem o que não fizeram bem em aprender; e que compreendam, de todos os dogmas da Igreja, o que a inteligência pode compreender; o que não podem compreender, que creiam.
“Oh, Timóteo! Guarda o depósito!”
21. Pensando e repensando dentro de mim estas coisas, não deixo de admirar-me ante a imensa loucura de alguns homens, ante a impiedade de sua mente cegada e ante a paixão desenfreada do erro, que não lhes deixa satisfeitos com uma norma de fé tradicional e recebida da antiguidade, mas que cada dia andam buscando coisas novas e ardem continuamente em desejos de trocar, de acrescentar, de tirar algo da religião. Como se esta não fosse um dogma celestial, que já é suficiente que tenha sido revelado uma vez para sempre; como se fosse uma instituição humana, que não pode chegar a ser perfeita a não ser mediante assíduas emendas e correções. E, sem embargo, temos a Palavra Divina que proclama:
“Não passes além dos marcos antigos que puseram teus pais” (Pr 22,28);
“Não julgues (o procedimento) de um juiz” (Eclo 8,17);
E também:
“Quem cava uma fossa, pode nela cair, e que derruba um muro pode ser picado por uma serpente” (Ecl 10,8)
Ademais está o mandato do Apóstolo, com o qual, como se fosse uma espada espiritual, têm sido decapitadas e o serão sempre todas as malvadas novidades heréticas:
“Ó Timóteo, guarda o bem que te foi confiado! Evita as conversas frívolas e mundanas, assim como as contradições de pretensa ciência. Alguns, por segui-las, se transviaram da fé” (1Tm 6,20-21)
Depois destas advertências, haverá no entanto homens tão ousados e teimosos, de uma cabeça mais dura que o aço, que não se dobrem sob o peso de tal eloquência celestial, que não se sintam esmagados por semelhante autoridade, feitos pedaços por marteladas como essas, reduzidos a cinzas por raios desta classe? “Evita – diz o Apóstolo – as conversas frívolas e mundanas”. Não diz a antiguidade, a vetustez. Mostra claramente o contrário, se temos em conta as consequências do que se tem dito: se deve-se evitar a novidade, tem que ater-se à antiguidade; se a novidade é ímpia, a antiguidade é sagrada.“(E) as contradições de pretensa ciência”. Verdadeiramente que somente como falsa ciência pode ser qualificada a doutrina dos hereges, os quais mascaram sua própria ignorância chamando-a de ciência, do tempo revolto dizem que está calmo, às trevas chamam-na luz. “Alguns, por segui-las, se transviaram da fé”. O que lhe anunciaram que lhes fizeram prevaricar, senão uma doutrina nova e ignorada? Podes escutar como dizem alguns: vinde, pobres ignorantes, os que sois comumente chamados católicos, e aprendei a fé verdadeira, que, fora de nós, ninguém entende. Permaneceu oculta durante muitos séculos, mas agora tem sido revelada e manifestada. Mas a aprende em segredo. Lhes dará alegria. Uma vez que tenhais aprendido, ensina a outros, mas ocultamente, para que não lhes odeie o mundo nem o saiba a Igreja, porque somente a uns poucos lhes é dado conhecer o segredo de tão grande mistério. Mas, por acaso não são estas as palavras que lemos nos Provérbios de Salomão, dirigidas pela prostituta aos que passam e vão ao seu caminho?: “Quem for simples venha para cá!” Já aos pobres de mente, lhes exorta dizendo: “As águas furtivas são mais doces e o pão tomado às escondidas é mais delicioso”. Mas, o que também encontramos escrito?
“Ignora ele que ali há sombras e que os convidados[da senhora Loucura] jazem nas profundezas da região dos mortos”. (Pr 9,16-18)
Quem são estes? Que diga o Apóstolo: “os que vierem a perder a fé”.