Tuesday, 21 May 2019

Tuesday's Serial: "História do Futuro" by Fr. António Vieira (in Portuguese) V


Volume II
Livro I
Capítulo I           
Entrando a tratar do Quinto Império do Mundo (grande assunto deste nosso pequeno trabalho) para que procedamos com a distinção e clareza tão necessária em toda a história e muito mais neste gênero, a primeira cousa que se oferece para averiguar e saber é que impérios tenham sido ou hajam de ser os outros quatro, em respeito ou suposição dos quais este novo de que falamos se chama Quinto. Porque sem recorrer à memória dos tempos passados, e pondo somente os olhos no mundo presente, conhecemos hoje nele muito maior número de impérios. Na Ásia, o vastíssimo Império da China, o dos Tártaros, o do Persa, o do Mogor; na África, o da Etiópia; na Europa, o de Alemanha, em que sem a grandeza se continua o nome, e o de Espanha, em que sem o nome, posto que arruinada e combatida, se sustenta a grandeza; e em todas estas três partes do Mundo o violento Império dos Turcos, tão estendido, tão unido, tão poderoso e formidável. Havendo, pois ainda nesta nossa idade tantos impérios, e sendo tantos mais os de nações bárbaras e políticas que em diversos tempos do Mundo se têm levantado e caído, com razão se deve duvidar e desejar saber a causa pôr que este nosso Império que prometemos recebe o numero de Quinto, e quais sejam em ordem os outros quatro que lhe deram este lugar ou este nome. Ao que respondemos breve e facilmente que este modo de contar não é nosso nem de algum outro historiador ou autor humano, senão fundado e tirado das Escrituras divinas, cuja história profética, sem fazer caso de muitos e grandes impérios que floresceram e haviam de florescer em vários tempos e lugares do Mundo, só trata do primeiro que se começou e levantou nele, e dos que em continuada sucessão se lhe foram seguindo até o tempo presente, os quais em espaço quase de quatro mil anos têm sido com este quatro. Esta sucessão e seu princípio foi desta maneira.
Correndo os anos de 1860 da criação do Mundo, 3800 antes do presente de 1664 em que isto escrevemos, depois que a confusão das línguas na torre de Babel dividiu seus fabricantes em diversas partes da terra, castigo tão merecido a sua soberba como necessário à propagação do gênero humano e à o mesma grandeza que aspiravam, Belo, filho do gigante Nembrot (posto que não faltam graves autores que fazem destes dois nomes o mesmo homem), reduzindo a sujeição e obediência política a liberdade natural com que todos até aquele tempo nasciam, foi o primeiro que ensinou ao Mundo e introduziu nele a tirania, a que depois com nome menos odioso chamaram Império. Tantos anos tardou a ambição em romper o respeito àquela lei com que nos fez iguais a todas a natureza.
                Foi este império de Belo o dos Assírios ou Babilônios; durou, segundo Justiço, perto de mil e trezentos anos; teve, entrando neste número Semearmos, 37 imperadores, de que foi o último Sardanapalo.
                Ao império dos Assírios sucedeu o dos Persas pelos anos da criação 3444. Começou em Ciro, acabou em Dario; contou por todos catorze imperadores. Não durou, conforme Eusébio, mais que duzentos e trinta anos.
                O terceiro Império, que foi o dos Gregos, ainda durou menos, se o considerarmos como monarquia. Alexandre o começou e acabou em Alexandre, para que vejam e conheçam as coroas quanto é grande a sua mortalidade, pois pode ser mais breve a vida de um império que a de ,um, homem. Começou este Império dos Gregos depois pelos anos do Mundo 3672, conservou-se unido somente oito, e, antes deles acabados, se dividiu em três reinos: o da Ásia, o da Macedônia, o do Egito; e este (que foi o que mais permaneceu) continuou com desigual fortuna trezentos anos, até que, governado e não defendido pela celebrada Cleópatra, o ajuntou Marco Antônio à grandeza romana.
                Havia já neste tempo setecentos anos que Rômulo levantara junto ao rio Tibre aquelas primeiras choupanas que depois se chamaram Roma, cujo Império começou com este nome em Júlio César, trinta anos antes do nascimento de Cristo. Durou, pois, o Império Romano com toda a inteireza de sua monarquia 400 anos, com sucessão de 35 imperadores até o grande Constantino, o qual, fundando nova corte em Constantinopla, dividiu o Império, para melhor governo, em Império Oriental e Ocidental, e desde este tempo começaram as águias romanas a aparecer coroadas com duas cabeças. Sustentou-se o Império Oriental por espaço de quatro mil anos, em que contou oitenta e quatro imperadores, de que foi o último outro Constantino de muito diferente fortuna, porque, sendo sitiado e vencido por Maomete II, dentro em Constantinopla ,perdeu a vida e a cidade e sepultou consigo todo o Império. O do Ocidente, depois daquela divisão, experimentou nela grandes variedades, porque, sendo governado alguns anos por imperador com igual jurdição e majestade, se passou o governo a exarcas, que eram ministros e como lugar-tenentes dos imperadores orientais, até que, em tempo o Papa Lúcio TII, eleito Carlos Magno em imperador do Ocidente, ficando Roma como cabeça da Igreja, ao Pontífice passou o assento do Império - a Alemanha.
                Sucedeu esta mudança pelos anos de Cristo de 810, nos quais o Império, diminuindo sempre em grandeza e majestade, tem contado noventa imperadores até Fernando III, que hoje reina, e com grande valor e zelo da Cristandade está resistindo-se (queira o Céu que seja com melhor ventura!) a outro Maomete.
                Estes são em breve suma os quatro Impérios que desde o primeiro que houve no Mundo se foram continuando e sucedendo até o presente, cuja notícia, quando não fora tão necessária para o ponto em que estamos, sempre era muito conveniente dar-se logo neste princípio, para melhor entendimento de tudo o que se há-de dizer adiante.
                Em respeito pois e suposição destes quatro impérios, chamamos Império Quinto ao novo e futuro que mostrará o discurso desta nossa História; o qual se há-de seguir ao Império Romano na mesma forma de sucessão em que o Romano se seguiu ao Grego, o Grego ao Persa e o Persa ao Assírio. E assim como o Império dos Persas se chama o segundo Império, porque sucedeu ao dos Assírios, que foi o primeiro do Mundo, e o das Gregos se chama o terceiro, porque sucedeu ao dos Assírios e dos Persas, e o dos Romanos se chama o quarto, porque sucedeu ao dos Assírios, ao dos Persas e ao dos Gregos, assim este nosso Império, porque há-de suceder ao dos Assírios, Persas, Gregos e Romanos (como logo veremos) se deve chamar com a mesma razão e propriedade o Quinto Império do Mundo; e porque todos os outros Impérios, passados e presentes, por grandes e poderosos que fossem, ficaram fora da ordem desta sucessão, que começou no primeiro e há-de acabar no Quinto (que será também o último), por isso as Escrituras Sagradas não fazem menção nem memória alguma deles, como também nós a não fazemos. Nem eles, por muitos que hajam sido, ficando fora da mesma ordem, podem acrescentar número ou lagar ao novo Império com que mude ou exceda o que lhe damos de Quinto.
                Tudo o que até aqui fica dito são suposições certas e sem dúvida, tiradas de diferentes lugares do Texto Sagrado, que vão citadas ,à margem, e o não pusemos no corpo da história por não embaraçar o desenho dela. Autores que dizem o mesmo, posto que em matéria tão averiguada e sem controvérsia não são necessários autores, alegaremos nos capítulos seguintes; o que resta e importa mostrar é que haja de haver sem dúvida este novo e prometido Império a que chamamos Quinto. E assim o faremos agora, com toda a demonstração e certeza, porque esta é a base e fundamento de toda a nossa História e assunto particular deste I Livro.

Mostra-se a Quinta Monarquia com a profecia de Daniel            
Já dissemos que os futuros livros ou contingentes (qual é o Império que prometemos) só são manifestos a Deus e a quem os quer revelar. E assim, para fundarmos bem a esperança deste grande futuro, devemos recorrer principalmente aos que a Fé nos ensina que foram verdadeiros profetas, entre os quais, como também deixamos dito, tem o primeiro lugar Daniel, não ,pelo espírito de profecia que foi tão superiormente ilustrado, mas porque o fez Deus particular profeta dos reinos e das monarquias. Será pois a primeira pedra deste edifício uma grande profecia de Daniel.
                No ano antes de Redenção do Mundo 450, Nabucodonosor, um dos últimos reis imperadores de Babilônia, que era, como fica dito, o Império dos Assírios, desvelado uma noite com os pensamentos da sua monarquia, em prêmio ou conseqüência deste cuidado mereceu que Deus lhe revelasse, sendo gentio, o sucesso de muitas cousas futuras, assim como outros príncipes que têm fé e desmerecem por sua negligência e descuido até o conhecimento natural dos presentes. Viu pois Nabuco em sonhos uma visão admirável e portentosa, com cuja apreensão e assombro acordou de tal maneira perturbado e confuso, que somente se lembrava que acabava de sonha- cousas prodigiosas, grandes e prenhes de mistérios, mas totalmente se esquecia quais foram. Assim, estimulado igualmente do desejo e do temor que a mesma lembrança lhe causava, mandou logo chamar os maiores sábios dos seus reinos, os magos, os aríolos; os caldeus, que eram os que pela observação das estrelas e outras professavam a ciência das cousas futuras, e depois de trazidos à sua presença, lhes declarou por si mesmo tudo o que lhe tinha sucedido, e mandou-lhes seriamente que não só lhe haviam de dizer logo a significação do sonho, senão também o que tinha sonhado. Responderam os sábios que, se o rei lhes manifestasse o que sonhara, eles se obrigavam a declarar a significação de tudo, porque isso era a sua profissão e o mais a que se estendia a ciência humana; mas que adivinhar qual houvesse sido o sonho era segredo impossível de alcançar aos homens e reservado somente à sabedoria dos deuses. Falaram assim, porque todos eram gentios.
                Não se aquietou Nabuco com esta resposta dos sábios, antes os argüiu com ela de falsos, enganadores e indignos de crédito; porque, se não podiam saber o sonho, que era cousa passada, como haviam de conhecer a significação dos futuros, e somente lhes haviam de dar crédito no segundo e mais dificultoso, se no primeiro e mais fácil eles mesmos confessavam sua ignorância? Que se resolvessem a dizer logo uma e outra cousa, senão que ele e sus famílias morreriam todas. E como os tristes sábios respondessem outra vez que não sabiam nem podiam satisfazer ao rei no que deles queria, irado grandemente Nabuco, mandou que os levassem de sua presença e que neles e em todos os professores das mesmas artes se executasse logo a sentença de morte. Tão violentos são os apetites do poder supremo, e tão arriscado não satisfazer aos reis até no impossível!
                Achava-se neste tempo em Babilônia Daniel, onde fora levado com El-Rei Joaquim no primeiro cativeiro ou transmigração dos Hebreus. Oro a Deus, ele e seus três companheiros, ,que também entravam no número dos condenados, porque tinham estudado, por mandado do mesmo rei, as ciências de Caldeia; folhe revelado pelo Céu o sonho e a interpretação dele, e quando já a multidão dos sábios, rodeados de rústicos e tumulto popular, começavam a caminhar para o lugar do suplício, faz parar a execução Daniel. Oferece-se a declarar o sonho; pede que o levem a Nabucodonosor, e posto em sua presença e na dos maiores príncipes de Babilônia que o acompanhavam, depois de confessar a insuficiência sua e de todo o saber humano, e mostrar como só o Deus verdadeiro, a quem ele servia e que fora o autor daquele sonho, o podia revelar e a significação dele, primeiramente com assombro e pasmo do rei lhe contou muito miudamente por sua ordem a história do que tinha sonhado, e depois com igual admiração e espanto de todos lhe foi explicando parte por parte os mistérios e segredos futuros que tão prodigiosa visão em si encerrava.
                Este é o prólogo da primeira profecia de Daniel, e todo este aparato de circunstâncias com o Texto Sagrado descreve o sucesso dela, as quais porventura puderam parecer menos necessárias ao nosso argumento, mas nós as quisemos resumir brevemente aqui, para crédito natural da mesma profecia; pois não só nos obrigam a que a creiamos por fé os que somos cristãos, mas se podem convencer com elas por discurso até os mesmos Gentios.
                A história do sonho, pelas palavras com que Daniel a referiu, é a seguinte: Tu, Rex, cogitare coepisti in strato tuo quid esset futurum post hoec; et qui revelat misteria, ostendit tibi que ventura sunt. Tu, Rex, videbas et ecce quasi statua una grandis: statua illa magna et statura sublimis stabat contra te et intuitus ejus erat terribilis, etc. , usque ad implevit universam terram. Hoc est somnium. «Começaste a cuidar, ó Rei, deitado no teu leito, diz Daniel, o que havia de suceder depois do tempo presente, e o Deus que só pode revelar os mistérios e segredos ocultos, te mostrou naquela visão tudo o que está para vir nos tempos futuros, e o que eu agora te direi, não por arte ou ciência minha, se não por revelação sua. Parecia-te que vias defronte de ti uma estátua grande, de estatura alta e sublime e de aspecto terrível e temeroso. A cabeça desta está tua era de ouro, o peito e os braços de prata, o ventre até os joelhos de bronze, dos joelhos de ferro, os pés de ferro e de barro. Estando assim suspenso no que vias, viste mais que se arrancava uma pedra de um monte, cortada dele sem mãos, e q, dando nos pés da estátua, a derrubava. Então se desfizeram juntamente o barro, o ferro, o bronze, a prata, o ouro, e se converteram em pó e cinza, que foi levada dos ventos, e nem aqueles metais apareceram mais, nem o lugar onde tivessem estado; porém a pedra que tinha derrubado a estátua cresceu, e fazendo-se um grande monte, ocupou e encheu toda a terra».
                Até aqui a relação do sonho, a qual Nabuco de novo ia ouvindo e reconhecendo, lembrando-se outra vez de tudo pela mesma ordem com aquela espécie de memória a que os filósofos chamam reminiscência.
                Seguiu-se à história do sonho a interpretação dele, de que nós diremos agora somente o que pertencer ao ponto em que estamos, reservando o de mais (que é muito) para seus lugares. Disse pois Daniel que aquela grande estátua significava a sucessão do Império do Mundo, e os diferentes metais de que era composta as mudanças que o mesmo Império havia de ter em diferentes tempos e para diferentes nações. A cabeça de ouro significava o Império dos Assírios, em que Nabucodonosor naquele tempo reinava; e porque este Império, como deixamos notado, foi o primeiro e o princípio de todos os Impérios, por isso estava representado na cabeça, que é o princípio do corpo, e no ouro, que é o primeiro entre todos os metais.
                A prata, que é o segundo metal, significava o Império dos Persas, que foi o segundo depois dos Assírios, e que se seguiu a eles, assim como o peito e braços se seguem à cabeça.
                O bronze, que é o terceiro metal, significava o Império dos Gregos, que foi o terceiro depois dos Persas e se seguiu depois deles, assim como o ventre se segue depois do peito.
                O ferro finalmente, que é o quarto metal, significava o Império dos Romanos, que foi e é o quarto Império, que sucedeu aos três primeiros; e assim como as pernas e pés são a última parte do corpo humano, assim este é e há-de ser o último Império dos que naquela estátua se representavam.
                Tudo o que até aqui fica dito é de fé, ou se segue imediatamente dela, porque, ainda que Daniel na sua explicação do sonho não nomeou as três nações de Persas, Gregos e Romanos, disse porém expressamente que os três metais significavam três reinos, que sucessivamente se haviam de continuar uns aos outros, sinalando-os nomeadamente por primeiro, segundo e terceiro reino: Et post te consurget regnum aliud minus te argenteum, et regnum tertium aliud oereum [...] et regnum erit velut ferrum; e consta pela experiência e pelo testemunho ,de todas as histórias, não só humanas, senão também das sagradas e divinas, que os três reinos e impérios que sucessivamente se seguiram ao dos Assírios foram o dos Persas, o dos Gregos e o dos Romanos: ou, por o dizer com mais propriedade e certeza, consta que o mesmo Império que primeiro foi dos Assírios, vencidos estes por Ciro, passou aos Persas, e o mesmo Império dos Persas, vencidos estes por Alexandre, passou aos Gregos, e o mesmo Império dos Gregos, vencidos estes por vários capitães de Roma, passou e se incorporou no Império Romano. E este é o verdadeiro, certo e indubitável sentido de interpretação de Daniel, recebido, aprovado e seguido por todos os Padres e expositores deste lugar, em que não há discrepância nem dúvida alguma.
                A razão ou mistério por que o Império Romano se representou no ferro, diz particularmente Daniel que foi porque, assim como o ferro lima, bate, corta e doma os metais, sem haver algum que lhe possa resistir, assim o Império Romano e o poder invencível de suas armas havia de abater, desfazer, sujeitar e dominar todos os outros impérios. Et regnum quartum erit velut ferrum; quomodo ferrum comminuit et domat omnia, sic comminuet et conteret omnia hoec. E quadra maravilhosamente no Império Romano a figura das duas pernas e pés da estátua em que foi representado; não só porque, assim como os pés da estátua sustentavam e tinham sobre si o peso e grandeza de toda ela, assim o Império Romano teve sobre si e em si o peso e grandeza de todos os outros impérios que nele se uniram e ajuntaram, mas porque o mesmo peso e grandeza, como acima vimos, foi causa de que o Império Romano se dividisse em dois impérios ou duas partes iguais do mesmo, com a qual divisão, pondo um pé no Oriente outro no Ocidente, um em Roma outro em Constantinopla, ficaram verdadeiramente sendo estas duas partes do Império Romano como duas colunas naturais de ferro, sobre as quais toda a máquina daquele portentoso colosso se sustentava. Mas não parava aqui a propriedade da semelhança. Assim como, na divisão de uma e outra perna da estátua se representava a divisão do Império Romano nos dois impérios, assim os dez dedos, uns maiores outros menores, em que se dividiam, significavam dez reinos, em que a grandeza do mesmo Império Romano, na sua última declinação, se havia de dividir. Para cuja inteligência se deve notar que tudo o que hoje possuem os príncipes cristãos na Europa, e tudo o que na Europa, na África e na Ásia possui o Turco, são umas divisões ou ,retalhos do Império Romano, e as partes ou membros de que aquele vastíssimo corpo na sua maior grandeza e potência se compunha, as quais lhe foram tirando as mesmas nações que ele tinha sujeitado, restituindo-se outra vez a sua primeira liberdade e soberania, como hoje estão, sem reconhecerem sujeição nem obediência alguma ao Império Romano. Ad extremum (diz Perério) ex uno duplex factum est Imperium Romanum: alterum Latinorum seu Occidentis, allerum vero constantinopolitanum, Græcorum seu Orientis. Adjice, quod omnia regna quæ nunc sunt apud Christianos, et sub Imperio Turcorum, partes sunt Imperii Romani tanquam rami ex una illa Imperii arbore decisi. E é tão verdadeira e tão antiga esta interpretação dos dez dedos da estátua, que já antes dos tempos de S. Hierônimo em que o Império Romano estava íntegro e potentíssimo, sem ter perdido cousa alguma sua grandeza, era opinião comum (como diz o mesmo santo) de todos os escritores eclesiásticos que o Império se havia de dividir em dez reinos.
                Assim se dizia e escrevia então, e assim o estamos vendo hoje, comprovando-se a verdade desta interpretação com a experiência e confirmando-se ser este o verdadeiro sentido da profecia com o cumprimento dela; porque, se bem contarmos os reinos em que hoje está dividido ou despedaçado o que antigamente foi e se chamava Império Romano, acharemos pontualmente que são dez reinos: Portugal, Castela França, Inglaterra, Suécia, Dinamarca, Moscóvia, Polônia e Estado ou Império Turco, e o mesmo Império Romano, que compreende Alemanha e Itália. E se uns reinos destes são maiores, outros menores, uns mais fortes outros menos, essa mesma é a propriedade dos dedos, como nota neste lugar o mesmo autor alegado, e depois dele outros muitos: por decem digitos partim ferreos et partim terreos significatur Romanum Imperium novissime iri in multa regna multosque reges, quorum alii maiores et potentiores, alii minores et imbecilliores futuri sint.
                Ao diante dividiremos estes mesmos dedos da estátua em outras partes que temos por mais proporcionadas; por agora baste esta divisão que nós pusemos em primeiro lugar por ser mas fácil, e porque, com a notícia vu1gar que se tem do Mundo, pode ser entendida e percebida de todos. E posto que Daniel nesta profecia não declara com tanta miudeza que a divisão do Império Romano há-de ser ,pontualmente em dez partes ou dez reinos, em outra profecia, como depois veremos, especifica este número, e nesta diz clara e expressamente que os dedos dos pés da estátua significam a divisão do Império: Porro quia vidisti pedum et digitorurn partem testæ figuli et partem ferream: regnum divisum erit.
                Passa finalmente o mesmo Profeta a declarar o mistério ou significação do barro de que os dedos eram compostos em uma parte juntamente com outra de ferro, e diz assim: ... quod vidisti ferrum mistum testæ ex luto. Et digitos pedum ex parte ferreos, et parte fictiles: ex parte regnum erit solidum, et ex parte contritum. Quod autem vidisti ferrum mistum testæ ex luto, commiscebuntur quidem humano semine, sed non adhærebunt sibi, sicuti ferrum misceri non potest testæ. Nas quais ,palavras diz Daniel que o barro dos pés dá estátua significava a debilidade e fraqueza a que o Império Romano, depois de tanta potência, havia de descair, principalmente na sua última idade e declinação, que é o estado em que o vemos. Adverte, porém, o Profeta que não eram os dedos totalmente de barro, senão compostos parte de barro e parte de ferro, porque nesse mesmo estado de sua declinação, debilidade e fraqueza conservaria o Império algumas partes sólidas em que permanecesse a dureza e fortaleza do antigo ferro de que todo antes era formado, que é, ao pé da letra, o que se tem visto e experimentado no Império Romano, desde o tempo de sua maior declinação a esta parte, em tantas ocasiões de guerras e batalhas contra Turcos, contra hereges e contra alguns príncipes cristãos, nas quais em defesa da própria e da Igreja têm pelejado os exércitos imperiais com grande valor, disciplina e constância, e alcançado de seus inimigos gloriosas vitórias. E a mesma oposição tão bizarra com que as armas do Império nas fronteiras de Alemanha e Hungria, e o mesmo Imperador em pessoa estão hoje resistindo às invasões do Turco e poder otomano, que outra cousa são ainda, senão partes e partes muito sólidas daquele mesmo ferro?
                Mas vindo às partes de barro: estas são (diz Daniel) aquelas províncias e nações que, sendo partes do antigo Império Romano, se desuniram e tiraram de sua sujeição, e formaram novos reinos, os quais, ainda que em si mesmos sejam muito poderosos e fortes, e verdadeiramente se possam chamar partes de ferro, em respeito porém do Império de que se apartaram e que tanto desuniram e enfraqueceram com sua separação, não são nem se podem chamar senão partes de barro. E tal é hoje o Reino de França, o de Inglaterra e da Suécia, e o mesmo de Castela ou Espanha, em respeito do Império Romano. E porque não cuidasse alguém que a união que se perdeu pela separação das coroas se recuperou e supriu pela conjuração do sangue, casando os imperadores nas casas reais dos outros príncipes e os reis na dos imperadores, e sendo estes muitas vezes eleitos das mesmas famílias que do Império se apartaram, acode Daniel a esta objeção, dizendo: Commiscebuntur quidem humano semine «misturar-se-ão e ligar-se-ão no sangue», sed non adhærebunt sibi «mas nem por isso se unirão nem ligarão entre si», sicuti ferrum misceri non potest testæ, «bem como o ferro se não pode unir nem ligar com o barro.» A tanta miudeza como isto desceu o Profeta, acrescentando em todas estas circunstâncias novas e admiráveis confirmações à verdade da sua Profecia.
                Quantas vezes se intentou na Europa que entre os imperadores e reis da Cristandade se estabelecesse uma liga firme, interpondo-se para isso a autoridade dos Sumos Pontífices, e quantas vezes se liaram os mesmos príncipes entre si por meio de recíprocos casamentos, sem jamais se conseguir a união desejada! Que imperador ou que rei houve na Cristandade há muitos anos que, se gota por gota lhe distinguirem o sangue, não tenha cada um dos outros príncipes quase iguais partes nele? E que guerras vimos ou sabemos entre estas coroas, em que o sangue que de uma e outra parte se defende, e ainda o que se derrama, não seja o mesmo? Tão misturado anda o sangue nestas últimas relíquias do Império Romano, mas tão resumido sempre, e por isso o mesmo império tão enfraquecido!
                Nasceu juntamente com Roma esta fatal desunião contra o respeito do sangue em Rômulo e Remo; viu-se no casamento de Pompeu com Júlia, filha de Júlio César, e no de Marco Antônio com Octávia, filha de Octávio, quão facilmente se desatam, antes, se amarram contra si, as ,mesmas mãos que- pelo matrimônio se uniram. Mas não são estes exemplos tão antigos os de que fala a profecia de Daniel, porque não são os dos pés da estátua ou os dos dedos dos pés. Significam os dedos dos pés da estátua as últimas extremidades do Império Romano e a sua duração, e, se eu me não engano, no mesmo dia em que isto estou escrevendo se está cumprindo esta profecia. Que casa real há no Mundo mais ligada com a do Império, que ramo há que seja mais próprio daquele tronco, e que sangue mais repetidamente unido por multiplicados casamentos que o de Áustria e Castela? E que pessoa real há também em que mais apertadamente estejam atados estes vínculos e mais dobrados todos estes respeitos que na de El-Rei Filipe IV, primo do Imperador, cunhado do Imperador, genro do Imperador? Considere agora o Mundo o estado em que o mesmo Imperador se achou no ano passado e em que se acha no presente, com os poderosos exércitos do Turco metidos dentro na Áustria, e quase, batendo às portas de Praga, corte do Império, os campos talados, as cidades destruídas, os homens barbaramente mortos a sangue-frio, as mulheres e meninos cativos e transmigrados para a Turquia, os templos e pessoas dedicadas ao templo em abomináveis sacrilégios profanados, e, depois de profanados, abrasados e feitos em cinzas; e neste mesmo tempo em que o ferro de Espanha se havia de unir todo ao ferro do Império, vemo-lo todo infelizmente convertido contra Portugal, mas por isso mesmo infelizmente! Se este ferro se unira ao Império contra o Turco, fora ferro, mas, porque se desune dele em tal ocasião e se converte contra Portugal, é barro.
                Barro e barro quebradiço, foi o ano passado e, por mais que se mostre ou ameace ferro, barro há-de ser também no presente. Quanto melhor e mais católica ação fora, e quanto de maior exemplo para todos os príncipes católicos e de menor escândalo para os hereges e para os mesmos Turcos se o sangue espanhol, e tão valoroso, que de uma é outra parte se desperdiça, com lástima e lágrimas da Igreja, no campo de Portugal e Castela, se empregara com glória imortal de ambas as coroas em defesa da Fé, da Cristandade, da Religião, e da mesma cabeça dela, a quem tão de perto ameaça este golpe! Mas quando todo o poder de Espanha se havia de achar unido contra o Turco em socorro de Alemanha e Itália, despovoam-se os presídios de Itália, levantam-se os de Alemanha e chamam-se todos a Castela contra Portugal, para que triunfem nas bandeiras otomanas as luas de Mafoma, e se conquistem e sejam vencidas nas portuguesas - as chagas de Cristo!
                Este é o barro dos pés da estátua, esta é a fraqueza das extremidades do Império Romano, esta é a queixa que ,Daniel explica e pondera na mesma fraqueza, mostrando que a principal causa de toda ela é a desunião daquelas partes que por serem mais conjuntas em sangue e parentesco, tinham obrigação de ser mais unidas »— commiscebuntur quidem humano semine »— isto é, casará o Imperador Fernando com Maria, irmã de el-Rei Filipe IV; casará Filipe IV com Leonor, filha de Fernando; mas nas últimas extremidades do Império Romano e nos seus maiores apertos e trabalhos não se acharam parentes nem aderentes »— sed non adhærebunt sibi.
                Temos visto até aqui, desde a cabeça até os pés da estátua, o primeiro, segundo, terceiro e quarto império; segue-se agora ver o quinto na mesma história do sonho de Nabuco e na mesma interpretação de Daniel, o qual, depois das palavras ultimamente referidas, continuou e concluiu desta maneira: In diebus autem regnorum illorum etc.... quæ ventura sunt postea. Quer dizer: aquela pedra, ó Rei, que viste arrancar e descer do monte, que derrubou a estátua e desfez em pó e cinza todo o preço e dureza de seus metais, significa um novo e quinto Império que o Deus do Céu há-de levantar no Mundo nos últimos dias dos outros quatro. Este Império os há-de desfazer e aniquilar a todos, e ele só há-de permanecer para sempre, sem haver de vir jamais por acontecimento algum a domínio ou poder estranho, nem haver de ser conquistado, dissipado ou destruído, como sucedeu ou há-de suceder aos demais. Estas são as cousas futuras que Deus te quis mostrar, ó Rei, e este é o sonho que tiveste e esta a verdade de sua interpretação -- et verum est somnium et fidelis interpretatio ejus.
                Depois de contar Daniel toda esta prodigiosa história, acrescenta imediatamente o que Nabucodonosor lhe fez e o que lhe disse. O que lhe disse foi: Vere Deus vester Deus deorum est, et Dominus regnum, et revelans mysteria, quoniam tu potuisti aperire hoc sacramentum. «Verdadeiramente o Deus que adoras, ó Daniel, é o Deus dos deuses e a Senhor dos reis, e o que só conhece e revela as mistérios escondidos aos homens, pois tu, alumiado por ele, pudeste declarar este grande segredo e sacramento. O que fez Nabuco no mesmo tempo, e ainda antes de dizer estas palavras, refere o mesmo texto em as seguintes: Tunc rex Nabuchodonosor cecidit in faciem suam, et Danielem adoravit, et hostias et incensum præcepit ut sacrificarent ei. «Tanto que o rei acabou de ouvir a Daniel, prostrou-se diante dele e adorou-o com o rosto em terra, e mando que lhe oferecessem incenso e sacrifício.» Se isto fez Nabucodonosor a Daniel, quando lhe disse que seu império se havia de acabar e passar outros quatro, que faria se lhe dissesse ser e1e o senhor do quinto? Naquele tempo pagava-se a interpretação de uma profecia infeliz com adorações e sacrifícios hoje pagam-se as interpretações felicíssimas com opróbrios e calúnias.
                Mas este ponto ficará para seu tempo e para seu lugar. O que deste somente quero recolher e deixa assentado é que, depois dos três impérios dos Assírios, Persas e Gregos, que já passaram, e depois do quarto, que ainda hoje dura, que é o romano, há-de haver um novo e melhor império que há-de ser o quinto e último. Esta suposição é de fé, porque assim o lemos nas Escrituras, é de experiência, porque assim o mostrou o sucesso dos tempos, e é de razão, porque assim se infere por bom discurso.

Capítulo II: Segunda profecia de Daniel               
Não é cousa nova em Deus quando revela cousas grandes, significar por repetidas visões o mesmo mistério e por diferentes figuras a mesma revelação. Assim mostrou antigamente a José suas felicidades, primeiro no sonho das paveias dos onze irmãos que adoravam a sua, e depois no do Sol e nas estrelas que lhe faziam a mesma adoração. Assim mostrou a El-Rei Faraó os sete anos da fartura e os outros sete da fome, primeiro no sonho das sete vacas robustas e sete fracas, e depois no das sete espigas gradas e sete falidas. E assim nos tempos em que agora imos, depois de revelar Deus a Daniel o secreto do Quinto Império, no sonho de Nabucodonosor e na visão daquela estátua, em outro sonho e em outras figuras lhe fez segunda vez a mesma representação, nada menos misteriosa e cheia de circunstâncias, que a primeira, antes mais portentosa em tudo e mais notável.
                Passados 47 anos depois daquela visão (que foi o ano 54 do último cativeiro de Babilônia), reinando já nela Baltasar, que sucedeu a Nabuco no Império dos Assírios ou Caldeus, viu o Profeta Danie1 em uma visão de noite, (ou fosse dormindo e em sonhos, como tem a opinião mais comum dos Doutores, ou fosse, como outros suspeitam, acordado, velando) viu, digo, que os quatro ventos principais se davam batalha no meio do mar e levantavam uma horrível e furiosa tempestade; mas o mar assim perturbado e temeroso não era mais que o teatro em que haviam de sair a representar quatro figuras horrendas, a que o, profeta chama bestas grantes: ...et ecce quatuor venti coeli pugnabant in mari magno, et quator bestiæ grandes ascendebant de mari diversæ inter se.
                «Saiu a primeira besta semelhante a uma leoa com asas de águia; pôs o Profeta nela os olhos, e não levou assim muito tempo, até que lhe foram tiradas ou arrancadas as asas. E logo levantou as mãos da terra e se pôs em pé e ficou em figura de homem.», Vejam lá os leões se lhes tira Deus as asas para [que] sejam homens! Prima [bestia] quasi leæna et alas habebat aquilæ; aspiciebam donec evulsæ sunt ale ejus, et sublata est de terra, et super pedes quasi homo stetit, et cor hominis datum est ei.
                «Saiu a segunda besta semelhante a um urso, firmou-se sobre os pés e parou; tinha três ordens de dentes, entre os quais trazia três bocados, e diziam-lhe que comesse e se fartasse de carne» Et ecce bestia alia similis urso in parte stetit; et tres ordines erant in ore ejus, et in dentibus ejus, et sic dicebant ei: Surge, comede carnes plurimas.
                «Depois desta saiu a terceira besta semelhante a leopardo, e tinha quatro asas como ave e quatro cabeças; e foi-lhe dado grande poder.» Post hæc aspiciebam, et ecc alia quasi pardus, et alas habebat quasi avis, quatuor super se et quator capita erant in bestia et potestas data est ei.
                Durava ainda a noite, diz o Profeta e por fim de todas entrou «a quarta besta, horrível, espantosa e muito forte. Tinha os dentes de ferro grandes com que comia e despedaçava tudo o que lhe caía da boca ou não queria comer pisava com os pés. Era mui diferente de todas as outras bestas, e tinha na testa dez pontas». Post hæc aspiciebam in visione noctis, et ecce bestia Quarta terribilis atque mirabilis, et fortis nimis, dentes ferreos habebat magnos, comedens atque comminuens, et reliqua pedibus suis conculcans: dissimilis autem erat ceteris bestiis, quas videram ante eam, et cornua decem.
                Enquanto tudo isto notava, Daniel via que de entre as dez pontas da quarta besta saía uma ponta menor que as outras, a qual obrou grandes estragos e outras cousas prodigiosas, cuja narração e mistérios pertencem ao Livro V desta nossa História, para onde o reservamos, como também outras circunstâncias desta mesma visão que expenderemos em seus lugares.
                E continuando o que pertence a este, «levantou Daniel os olhos ao céu e viu que se armava um tribunal de juízo, cheio com grande aparato de horror, grandeza e majestade. Trouxeram-se cadeiras e assentou-se em um alto trono um velho de venerável ancianidade, a quem o Profeta chama Antigo dos dias, cujo cabelo era todo branco, e brancas as roupas de que estava vestido, aquele como arminhos, estas como neve; a matéria do trono era fogo, umas rodas sobre que o trono estava levantado também fogo, e de fogo também um rio arrebentado que da boca lhe saía. Os ministros que lhe assistiam de uma e outra parte eram milhares de milhares; assentaram-se os conselheiros ou juizes assessores; vieram os livros e abriram-se». Este é o aparato daquele tribunal e juízo, descrito ou construído ao pé da letra, como fazemos, para maior crédito da verdade em tudo o mais que imos referindo, e por isso repetimos as palavras do texto: Aspiciebam donec throni positi sunt, et Antiquus dierum sedit: vestimentum ejus candidum quasi nix, et capili capitis ejus quasi lana munda. Thronus ejus flammæ ignis: rotæ ejus ignis accensus. Fluvius igneus, rapidusque egrediebatur a facie ejus. Millia millium ministrabant ei, et decies millies centena millia assistebant ei: judicium sedit, et libri aperti sunt.
                A primeira sentença ou execução que saiu deste juízo foi que à primeira, segunda e terceira besta se tirasse todo o poder, limitando-se a cada uma o tempo determinado de sua duração, o qual acabado, acabaram. Acabou também a quarta besta. porque «viu o Profeta que fora morta violentamente, e que todo aquele grande corpo perecera, e que fora entregue ao fogo para ser queimado», não ficando de tanta grandeza e bravosidade mais cinzas.
                Et vidi quoniam interfecta esset bestia, et perisset cortus ejus, et traditum esse ad comburendum igni; aliarum quoque bestiarum ablata esset potestas, et tempora vitæ constituta essent eis usque ad tempus et tempus.
                Torna a dizer o Profeta que «ainda durava a noite e viu vir rodeado de nuvens do céu um como filho do homem, o qual chegou ao trono do Antigo de Dias e o ofereceram em sua presença. E ele lhe deu o poder, a honra e reino de todo o Mundo, para que todos os povos e todos os tribos, e todas as línguas o obedeçam e sirvam. Este seu poder será eterno, eterno também o reino, porque nunca jamais lhe será tirado» Aspiciebam ergo in visione noctis, et ecce cum nubibus coeli quasi filius hominis veniebat, et usque ad Antiquum dierum pervenit; et in conspectu ejus obtulerunt eum. Et dedit ei potestatem et honorem et regnum; et omnes populi, tribus et linguæ itsi servient: potestas ejus, potestas æterna quæ non auferetur; et regnum ejus, quod non cortumpetur.
                Esta é pontualmente a relação de todo o sonho ou história enigmática, representada nele. «Com a qual (diz Daniel) ficou o meu espírito assombrado e cheio de horror. E volvendo eu no pensamento que significariam aquelas cousas, cheguei-me a um dos ministros que ali assistiam, pedindo-lhe me quisesse declarar o verdadeiro sentido delas. E ele o fez assim e me ensinou a interpretação e mistérios de tudo o que tinha visto».
                Até aqui o mesmo Profeta, o qual, porém, referindo a dita interpretação, passa em silêncio algumas circunstâncias dela, sem dúvida para não exceder a brevidade que no princípio deste capítulo tinha prometido. Daniel somnium vidit, et somninm scribens brevi sermone comprehendit; summatimque perstringens ait. E a razão de passar por aquelas circunstâncias tão brevemente ou foi porque as supôs bastantemente declaradas na visão do segundo capítulo ou sonho de Nabucodonosor que acabamos de explicar, ou certamente porque as julgou de menos importância ao seu interesse principal, que e a demonstração do Quinto Império, exprimindo com grande particularidade e miudeza tudo o que pertence a ele, como agora veremos.
                Primeiramente diz Daniel (ou disse a Daniel o seu intérprete) que «aquelas quatro bestas grandes significavam quatro reinos ou quatro impérios, que sucessivamente se haviam de levantar no Mundo depois dos quais se havia de seguir outro quinto reino ou império, que o mesmo intérprete chama Reino dos Santos do Altíssimo, o qual não há de ter mudança nem variedade, nem outro reino algum ou império que lhe suceda, porque há-de durar para sempre. Hæ quatuor bestiæ magnæ quator sunt regna, quæ consurgent de terra. Suscipient autem regnum sancti Dei altissimi, et obtinebunt regnum usque in sæculum et sæculum sæculorum.
                Esta é a interpretação em comum que deu o intérprete do Céu a toda a visão, sobre a qual nos explicaremos mais particularmente, declarando todas as figuras dela pela mesma ordem com que foram saindo, advertindo o que o Profeta e seu intérprete exprimiram, e suprindo com a exposição dos Doutores o que eles calaram, coligido porém tudo imediatamente do mesmo que dizem. Não declara Daniel que ventos fossem aqueles, nem que tempestades se levantaram no mar antes de sair nele as quatro bestas, mas todos os expositores concordam em que o mar significava o Mundo, e os ventos e tempestades que o alteram as alterações, movimentos, guerras e perturbações que se costumam experimentar no mesmo Mundo, quando nele se levantam novos impérios.
                Mas, antes que passemos adiante, satisfaremos um argumento que nos fica no texto de Daniel, porque não deixemos o inimigo nas costas. Diz o texto que levantará Deus esta nova monarquia in diebus regnorum illorum, nos dias daqueles impérios. Logo, esta monarquia não é futura se não passada, porque dos quatro impérios já passaram totalmente os três, que são o dos Assírios, o dos Persas e o dos Gregos, e o quarto, que é o Romano, também está na última declinação. Respondo que o Profeta na sua interpretação se acomodou com grande propriedade à figura do enigma que declarava. Porque Deus, no sonho de Nabucodonosor, representou todos os quatro impérios, não como quatro corpos ou quatro indivíduos, senão como um só corpo ou um só indivíduo. Por isso viu o Rei não quatro estátuas senão uma só estátua; e assim como da quatro corpos dos quatro impérios se formou um corpo, assim das quatro durações dos quatro impérios se há-de compor uma só duração, donde segue que com toda a verdade se pode afirmar que sucederá nos dias daqueles Reinos o que sucede nos dias de qualquer deles. Exemplo: a vida de um homem compõe-se de muitas idades, e o que acontece em qualquer destas idades se diz com toda; propriedade e verdade que acontece nos dias daquele homem. Da mesma maneira a duração da estátua dos impérios era composta de diferentes idades. A sua primeira idade, que é o tempo dos Assírios foi idade de ouro, a segunda, que é o tempo dos Persas, foi idade de prata, a terceira, que é o tempo dos Gregos, foi idade de bronze, a quarta, que é o primeiro Império dos Romanos, foi idade de ferro, a quinta, que é este último tempo dos mesmos Romanos, é idade de ferro e barro. E basta que nesta última idade, como decrépita, daquela estátua ou daqueles reinos se haja de levantar o Quinto Império, para que com toda a verdade e com toda a propriedade se verifique havê-lo Deus de levantar nos dias daqueles reinos; in diebus regnorum illorum. Assim que o Império que promete Daniel não é império já passado, senão que ainda está por vir.

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