PRÓLOGO
Informações desta edição
Minha prima. — Gostou da minha história, e pede-me um romance; acha que posso fazer alguma coisa neste ramo de literatura.
Engana-se; quando se conta aquilo que nos impressionou profundamente, o coração é que fala; quando se exprime aquilo que outros sentiram ou podem sentir, fala a memória ou a imaginação.
Esta pode errar, pode exagerar-se; o coração é sempre verdadeiro, não diz senão o que sentiu; e o sentimento, qualquer que ele seja, tem a sua beleza.
Assim, não me julgo habilitado a escrever um romance, apesar de já ter feito um com a minha vida.
Entretanto, para satisfazê-la, quero aproveitar as minhas horas de trabalho em copiar e remoçar um velho manuscrito que encontrei em um armário desta casa, quando a comprei.
Estava abandonado e quase todo estragado pela umidade e pelo cupim, esse roedor eterno, que antes do dilúvio já se havia agarrado à arca de Noé, e pôde assim escapar ao cataclisma.
Previno-lhe que encontrará cenas que não são comuns atualmente, não as condene à primeira leitura, antes de ver as outras que as explicam.
Envio-lhe a primeira parte do meu manuscrito, que eu e Carlota temos decifrado nos longos serões das nossas noites de inverno, em que escurece aqui às cinco horas.
Adeus.
Minas, 12 de dezembro.
AO LEITOR
Publicado este livro em 1857, se disse ser aquela primeira edição uma prova tipográfica, que algum dia talvez o autor se dispusesse a rever.
Esta nova edição devia dar satisfação do empenho, que a extrema benevolência do público ledor, tão minguado ainda, mudou em bem para dívida de reconhecimento.
Mais do que podia fiou de si o autor. Relendo a obra depois de anos, achou ele tão mau e incorreto quanto escrevera, que para bem corrigir, fora mister escrever de novo. Para tanto lhe carece o tempo e sobra o tédio de um labor ingrato.
Cingiu-se pois às pequenas emendas que toleravam o plano da obra e o desalinho de um estilo não castigado.
PRIMEIRA PARTE: OS AVENTUREIROS
I - SCENARIO
De um dos cabeços da Serra dos Órgãos deslisa um fio d'água que se dirige para o norte, e engrossado com os mananciaes que recebe no seu curso de dez leguas, torna-se um rio caudal.
É o Paquequer que, saltando de cascata em cascata, enroscando-se como uma serpente, vai depois espreguiçar-se indolente na varzea e embeber-se no Parahyba, que corre magestosamente no seu vasto leito.
Dir-se-hia que, vassallo e tributario desse rei das águas, o pequeno rio, altivo e sobranceiro contra os rochedos, curva-se humildemente aos pés do seu suzerano.
Perde então a belleza selvagem; suas ondas são calmas e serenas como as de um lago, e não se revoltão contra os barcos e as canoas que resvalão sobre elas: escravo submisso, sofre o latego do senhor.
Não é neste lugar que se deve vel-o ; é sim três ou quatro léguas acima de sua foz, onde é livre ainda, como o filho indomito desta pátria da liberdade.
Ahi, o Paquequer lança-se rápido sobre o seu leito, e atravessa as florestas como o tapir, espumando, deixando o pêlo esparso pelas pontas do rochedo, e enchendo a solidão com o estampido de sua carreira. De repente, falta-lhe o espaço, foge-lhe a terra; o soberbo rio recua um momento para concentrar as suas forças, e precipita-se de um só arremesso, como o tigre sobre a presa.
Depois, fatigado do esforço supremo, se estende sobre a terra, e adormece numa linda bacia que a natureza formou, e onde o recebe como em um leito de noiva, sob as cortinas de trepadeiras e flores agrestes.
A vegetação nessas paragens ostentava outrora todo o seu luxo e vigor; florestas virgens se estendiam ao longo das margens do rio, que corria no meio das arcarias de verdura e dos capitéis formados pelos leques das palmeiras.
Tudo era grande e pomposo no cenário que a natureza, sublime artista, tinha decorado para os dramas majestosos dos elementos, em que o homem e apenas um simples comparsa.
No ano da graça de 1604, o lagar que acabamos de descrever estava deserto e inculto; a cidade do Rio de Janeiro tinha-se fundado havia menos de meio século, e a civilização não tivera tempo de penetrar o interior.
Entretanto, via-se à margem direita do rio uma casa larga e espaçosa, construída sobre uma eminência, e protegida de todos os lados por uma muralha de rocha cortada a pique.
A esplanada, sobre que estava assentado o edifício, formava um semi-círculo irregular que teria quando muito cinqüenta braças quadradas; do lado do norte havia uma espécie de escada de lajedo feita metade pela natureza e metade pela arte.
Descendo dois ou três dos largos degraus de pedra da escada, encontrava-se uma ponte de madeira solidamente construída sobre uma fenda larga e profunda que se abria na rocha. Continuando a descer, chegava-se à beira do rio, que se curvava em seio gracioso, sombreado pelas grandes gameleiras e angelins que cresciam ao longo das margens.
Aí, ainda a indústria do homem tinha aproveitado habilmente a natureza para criar meios de segurança e defesa.
De um e outro lado da escada seguiam dois renques de árvores, que, alargando gradualmente, iam fechar como dois braços o seio do rio; entre o tronco dessas árvores, uma alta cerca de espinheiros tornava aquele pequeno vale impenetrável.
A casa era edificada com a arquitetura simples e grosseira, que ainda apresentam as nossas primitivas habitações; tinha cinco janelas de frente, baixas, largas, quase quadradas.
Do lado direito estava a porta principal do edifício, que dava sobre um pátio cercado por uma estacada, coberta de melões agrestes. Do lado esquerdo estendia-se até à borda da esplanada uma asa do edifício, que abria duas janelas sobre o desfiladeiro da rocha.
No ângulo que esta asa fazia com o resto da casa, havia uma coisa que chamaremos jardim, e de fato era uma imitação graciosa de toda a natureza rica, vigorosa e esplêndida, que a vista abraçava do alto do rochedo.
Flores agrestes das nossas matas, pequenas árvores copadas, um estendal de relvas, um fio de água, fingindo um rio e formando uma pequena cascata, tudo isto a mão do homem tinha criado no pequeno espaço com uma arte e graça admirável.
À primeira vista, olhando esse rochedo da altura de duas braças, donde se precipitava um arroio da largura de um copo de água, e o monte de grama, que tinha quando muito o tamanho de um divã, parecia que a natureza se havia feito menina e se esmerara criar por capricho uma miniatura.
O fundo da casa, inteiramente separado do resto da habitação por uma cerca, era tomado por dois grandes armazéns ou senzalas, que serviam de morada a aventureiros e acostados.
Finalmente, na extrema do pequeno jardim, à beira do precipício, via-se uma cabana de sapé, cujos esteios eram duas palmeiras que haviam nascido entre as fendas das pedras. As abas do teto desciam até o chão; um ligeiro sulco privava as águas da chuva de entrar nesta habitação selvagem.
Agora que temos descrito o aspecto da localidade, onde se deve passar a maior parte dos acontecimentos desta história, podemos abrir a pesada porta de jacarandá, que serve de entrada, e penetrar no interior do edifício.
A sala principal, o que chamamos ordinariamente sala da frente, respirava um certo luxo que parecia impossível existir nessa época em um deserto, como era então aquele sitio.
As paredes e o teto eram calados, mas cingidos por um largo florão de pintura a fresco; nos espaços das janelas pendiam dois retratos que representavam um fidalgo velho e uma dama também idosa.
Sobre a porta do centro desenhava-se um brasão de armas em campo de cinco vieiras de ouro, riscadas em cruz entre quatro rosas de prata sobre palas e faixas. No escudo, formado por uma brica de prata orlada de vermelho, via-se um elmo também de prata, paquife de ouro e de azul, e por timbre um meio leão de azul com uma vieira de ouro sobre a cabeça.
Um largo reposteiro de damasco vermelho, onde se reproduzia o mesmo brasão, ocultava esta porta, que raras vezes se abria, e dava para um oratório. Defronte, entre as duas janelas do meio, havia um pequeno dossel fechado por cortinas brancas com apanhados azuis.
Cadeiras de couro de alto espaldar, uma mesa de jacarandá de pés torneados, uma lâmpada de prata suspensa ao teto, constituíam a mobília da sala, que respirava um ar severo e triste.
Os aposentos interiores eram do mesmo gosto, menos as decorações heráldicas; na asa do edifício, porém, esse aspecto mudava de repente, e era substituído por um quer que seja de caprichoso e delicado que revelava a presença de uma mulher.
Com efeito, nada mais loução do que essa alcova, em que os brocatéis de seda se confundiam com as lindas penas de nossas aves, enlaçadas em grinaldas e festões pela orla do teto e pela cúpula do cortinado de um leito colocado sobre um tapete de peles de animais selvagens.
A um canto, pendia da parede um crucifixo em alabastro, aos pés do qual havia um escabelo de madeira dourada.
Pouco distante, sobre uma cômoda, via-se uma dessas guitarras espanholas que os ciganos introduziram no Brasil quando expulsos de Portugal, e uma coleção de curiosidades minerais de cores mimosas e formas esquisitas.
Junto à janela, havia um traste que à primeira vista não se podia definir; era uma espécie de leito ou sofá de palha matizada de várias cores e entremeada de penas negras e escarlates.
Uma garça-real empalhada, prestes a desatar o vôo, segurava com o bico a cortina de tafetá azul que ela abria com a ponta de suas asas brancas e caindo sobre a porta, vendava esse ninho da inocência aos olhos profanos.
Tudo isto respirava um suave aroma de benjoim, que se tinha impregnado nos objetos com o seu perfume natural, ou como a atmosfera do paraíso que uma fada habitava.
II: LEALDADE
A habitação que descrevemos, pertencia a D. Antônio de Mariz, fidalgo português de cota d'armas e um dos fundadores da cidade do Rio de Janeiro.
Era dos cavalheiros que mais se haviam distinguido nas guerras da conquista, contra a invasão dos franceses e os ataques dos selvagens.
Em 1567 acompanhou Mem de Sá ao Rio de Janeiro, e depois da vitória alcançada pelos portugueses, auxiliou o governador nos trabalhos da fundação da cidade e consolidação do domínio de Portugal nessa capitania.
Fez parte em 1578 da célebre expedição do Dr. Antônio de Salema contra os franceses, que haviam estabelecido uma feitoria em Cabo Frio para fazerem o contrabando de pau-brasil.
Serviu por este mesmo tempo de provedor da real fazenda, e depois da alfândega do Rio de Janeiro; mostrou sempre nesses empregos o seu zelo pela república e a sua dedicação ao rei.
Homem de valor, experimentado na guerra, ativo, afeito a combater os índios, prestou grandes serviços nas descobertas e explorações do interior de Minas e Espírito Santo. Em recompensa do seu merecimento, o governador Mem de Sá lhe havia dado uma sesmaria de uma légua com fundo sobre o sertão, a qual depois de haver explorado, deixou por muito tempo devoluta.
A derrota de Alcácer-Quibir, e o domínio espanhol que se lhe seguiu, vieram modificar a vida de D. Antônio de Mariz.
Português de antiga têmpera, fidalgo leal, entendia que estava preso ao rei de Portugal pelo juramento da nobreza, e que só a ele devia preito e menagem. Quando pois, em 1582, foi aclamado no Brasil D. Felipe II como o sucessor da monarquia portuguesa, o velho fidalgo embainhou a espada e retirou-se do serviço.
Por algum tempo esperou a projetada expedição de D. Pedro da Cunha, que pretendeu transportar ao Brasil a coroa portuguesa, colocada então sobre a cabeça do seu legitimo herdeiro, D. Antônio, prior do Crato.
Depois, vendo que esta expedição não se realizava, e que seu braço e sua coragem de nada valiam ao rei de Portugal, jurou que ao menos lhe guardaria fidelidade até a morte. Tomou os seus penates, o seu brasão, as suas armas, a sua família, e foi estabelecer-se naquela sesmaria que lhe concedera Mem de Sá. Aí, de pé sobre a eminência em que ia assentar o seu novo solar, D. Antônio de Mariz, erguendo o vulto direito, e lançando um olhar sobranceiro pelos vastos horizontes que abriam em torno, exclamou:
—Aqui sou português! Aqui pode respirar à vontade um coração leal, que nunca desmentiu a fé do juramento. Nesta terra que me foi dada pelo meu rei, e conquistada pelo meu braço, nesta terra livre, tu reinarás, Portugal, como viverás n'alma de teus filhos. Eu o juro!
Descobrindo-se, curvou o joelho em terra, e estendeu a mão direita sobre o abismo, cujos ecos adormecidos repetiram ao longe a última frase do juramento prestado sobre o altar da natureza, em face do sol que transmontava.
Isto se passara em abril de 1593; no dia seguinte, começaram os trabalhos da edificação de uma pequena habitação que serviu de residência provisória, até que os artesãos vindos do reino construíram e decoraram a casa que já conhecemos.
D. Antônio tinha ajuntado fortuna durante os primeiros anos de sua vida aventureira; e não só por capricho de fidalguia, mas em atenção à sua família, procurava dar a essa habitação construída no meio de um sertão, todo o luxo e comodidade possíveis.
Além das expedições que fazia periodicamente à cidade do Rio de Janeiro, para comprar fazendas e gêneros de Portugal, que trocava pelos produtos da terra, mandara vir do reino alguns oficiais mecânicos e hortelãos, que aproveitavam os recursos dessa natureza tão rica, para proverem os seus habitantes de todo o necessário.
Assim, a casa era um verdadeiro solar de fidalgo português, menos as ameias e a barbacã, as quais haviam sido substituídas por essa muralha de rochedos inacessíveis, que ofereciam uma defesa natural e uma resistência inexpugnável.
Na posição em que se achava, isto era necessário por causa das tribos selvagens, que, embora se retirassem sempre das vizinhanças dos lugares habitados pelos colonos, e se entranhassem pelas florestas, costumavam contudo fazer correrias e atacar os brancos à traição.
Em um círculo de uma légua da casa, não havia senão algumas cabanas em que moravam aventureiros pobres, desejosos de fazer fortuna rápida, e que tinham-se animado a se estabelecer neste lugar, em parcerias de dez e vinte, para mais facilmente praticarem o contrabando do ouro e pedras preciosas, que iam vender na costa.
Estes, apesar das precauções que tomavam contra os ataques dos índios, fazendo paliçadas e reunindo-se uns aos outros para defesa comum, em ocasião de perigo vinham sempre abrigar-se na casa de D. Antônio de Mariz, a qual fazia as vezes de um castelo feudal na idade Média.
O fidalgo os recebia como um rico-homem que devia proteção e asilo aos seus vassalos; socorria-os em todas as suas necessidades, e era estimado e respeitado por todos que vinham, confiados na sua vizinhança, estabelecer-se por esses lugares.
Deste modo, em caso de ataque dos índios, os moradores da casa do Paquequer não podiam contar senão com os seus próprios recursos; e por isso D. Antônio, como homem prático e avisado que era, havia-se premunido para qualquer ocorrência.
Ele mantinha, como todos os capitães de descobertas daqueles tempos coloniais, uma banda de aventureiros que lhe serviam as suas explorações e correrias pelo interior; eram homens ousados, destemidos, reunindo ao mesmo tempo aos recursos do homem civilizado a astúcia e agilidade do índio de quem haviam aprendido; eram uma espécie de guerrilheiros, soldados e selvagens ao mesmo tempo.
D. Antônio de Mariz, que os conhecia, havia estabelecido entre eles uma disciplina militar rigorosa, mas justa; a sua lei era a vontade do chefe; o seu dever a obediência passiva, o seu direito uma parte igual na metade dos lucros. Nos casos extremos, a decisão era proferida por um conselho de quatro, presidido pelo chefe; e cumpria-se sem apelo, como sem demora e hesitação.
Pela força da necessidade, pois, o fidalgo se havia constituído senhor de baraço e cutelo, de alta e baixa justiça dentro de seus domínios; devemos porém declarar que rara vez se tornara precisa a aplicação dessa lei rigorosa; a severidade tinha apenas o efeito salutar de conservar a ordem, a disciplina e a harmonia.
Quando chegava a época da venda dos produtos, que era sempre anterior à saída da armada de Lisboa, metade da banda dos aventureiros ia à cidade do Rio de Janeiro, apurava o ganho, fazia a troca dos objetos necessários, e na volta prestava suas contas. Uma parte dos lucros pertencia ao fidalgo, como chefe; a outra era distribuída igualmente pelos quarenta aventureiros, que a recebiam em dinheiro ou em objetos de consumo.
Assim vivia, quase no meio do sertão, desconhecida e ignorada essa pequena comunhão de homens, governando-se com as suas leis, os seus usos e costumes; unidos entre si pela ambição da riqueza, e ligados ao seu chefe pelo respeito, pelo hábito da obediência e por essa superioridade moral que a inteligência e a coragem exercem sobre as massas.
Para D. Antônio e para seus companheiros a quem ele havia imposto sua fidelidade, esse torrão brasileiro, esse pedaço de sertão, não era senão um fragmento de Portugal livre, de sua pátria primitiva; aí só se reconhecia como rei ao duque de Bragança, legítimo herdeiro da coroa; e quando se corriam as cortinas do dossel da sala, as armas que se viam, eram as cinco quinas portuguesas, diante das quais todas as frontes inclinavam.
D. Antônio tinha cumprido o seu juramento de vassalo leal; e, com a consciência tranquila por ter feito o seu dever, com a satisfação que dá ao homem o mando absoluto, ainda mesmo em um deserto, rodeado de seus companheiros que ele considerava amigos, vivia feliz no seio de sua pequena família.
Esta se compunha de quatro pessoas:
Sua mulher, D. Lauriana, dama paulista, imbuída de todos os prejuízos de fidalguia e de todas as abusões religiosas daquele tempo; no mais, um bom coração, um pouco egoísta, mas não tanto que não fosse capaz de um ato de dedicação.
Seu filho, D. Diogo de Mariz, que devia mais tarde prosseguir na carreira de seu pai, e lhe sucedeu em todas as honras e forais; ainda moço, na flor da idade, gastava o tempo em correrias e caçadas.
Sua filha, D. Cecília, que tinha dezoito anos, e que era a deusa desse pequeno mundo que ela iluminava com o seu sorriso, e alegrava com o seu gênio travesso e a sua mimosa feceirice.
D. Isabel, sua sobrinha, que os companheiros de D. Antônio, embora nada dissessem, suspeitavam ser o fruto dos amores do velho fidalgo por uma índia que havia cativado em uma das suas explorações.
Demorei-me em descrever a cena e falar de algumas das principais personagens deste drama porque assim era preciso para que bem se compreendam os acontecimentos que depois se passaram.
Deixarei porém que os outros perfis se desenhem por si mesmos.
III: A BANDEIRA
Era meio-dia.
Um troço de cavaleiros, que constaria quando muito de quinze pessoas, costeava a margem direita do Paraíba.
Estavam todos armados da cabeça até aos pés além da grande espada de guerra que batia as ancas do animal, cada um deles trazia à cinta dois pistoletes, um punhal na ilharga do calção, e o arcabuz passado a tiracolo pelo ombro esquerdo.
Pouco adiante, dois homens a pé tocavam alguns animais carregados de caixas e outros volumes cobertos com uma sarapilheira alcatroada, que os abrigava da chuva.
Quando os cavaleiros, que seguiam a trote largo, venciam a pequena distância que os separava da tropa, os dois caminheiros, para não atrasarem a marcha, montavam na garupa dos animais e ganhavam de novo a dianteira.
Naquele tempo dava-se o nome de bandeiras a essas caravanas de aventureiros que se entranhavam pelos sertões do Brasil, à busca de ouro, os brilhantes e esmeraldas, ou à descoberta de rios e terras ainda desconhecidos. A que nesse momento costeava a margem do Paraíba, era da mesma natureza; voltava do Rio de Janeiro, onde fora vender os produtos de sua expedição pelos terrenos auríferos.
Uma das ocasiões, em que os cavaleiros se aproximaram da tropa que seguia a alguns passos, um moço de vinte e oito anos, bem parecido, e que marchava à frente do troço, governando o seu cavalo com muito garbo e gentileza, quebrou o silêncio geral.
—Vamos, rapazes! disse ele alegremente aos caminheiros; um pouco de diligência, e chegaremos com cedo. Restam-nos apenas umas quatro léguas!
Um dos bandeiristas, ao ouvir estas palavras, chegou as esporas à cavalgadura, e avançando algumas braças, colocou-se ao lado do moço.
—Ao que parece, tendes pressa de chegar, Sr. Álvaro de Sá? disse ele com um ligeiro acento italiano, e um meio sorriso cuja expressão de ironia era disfarçada por uma benevolência suspeita.
—Decerto, Sr. Loredano; nada é mais natural a quem viaja, do que o desejo de chegar.
—Não digo o contrário; mas confessareis que nada também é mais natural a quem viaja, do que poupar os seus animais.
—Que quereis dizer com isto, Sr. Loredano? perguntou Álvaro com um movimento de enfado.
—Quero dizer, sr. cavalheiro, respondeu o italiano em tom de mofa e medindo com os olhos a altura do sol, que chegaremos hoje pouco antes das seis horas.
Álvaro corou.
—Não vejo em que isto vos causa reparo; a alguma hora havíamos chegar; e melhor é que seja de dia, do que de noite.
—Assim como melhor é que seja em um sábado do que em outro qualquer dia! replicou o italiano no mesmo tom.
Um novo rubor assomou às faces de Álvaro, que não pôde disfarçar o seu enleio; mas, recobrando o desembaraço, soltou uma risada, e respondeu:
—Ora, Deus, Sr. Loredano; estais aí a falar-me na ponta dos beiços e com meias palavras; à fé de cavalheiro que não vos entendo.
—Assim deve ser. Diz a Escritura que não há pior surdo do que aquele que não quer ouvir.
—Oh! temos anexim! Aposto que aprendeste isto agora em São Sebastião: foi alguma velha beata, ou algum licenciado em cânones que vo-lo ensinou? disse o cavalheiro gracejando.
—Nem um nem outro, sr. cavalheiro; foi um fanqueiro da Rua dos Mercadores, que por sinal também me mostrou custosos brocados e lindas arrecadas de pérolas, bem próprias para o mimo de um gentil cavalheiro à sua dama.
Álvaro enrubesceu pela terceira vez.
Decididamente o sarcástico italiano, com o seu espírito mordaz, achava meio de ligar a todas as perguntas do moço uma alusão que o incomodava; e isto no tom o mais natural do mundo.
Álvaro quis cortar a conversação neste ponto; mas o seu companheiro prosseguiu com extrema amabilidade:
—Não entrastes por acaso na loja desse fanqueiro de que vos falei, sr. cavalheiro?
—Não me lembro; é de crer que não, pois apenas tive tempo de arranjar os nossos negócios, e nem um me restou para ver essas galantarias de damas e fidalgas, disse o moço com frieza.
—É verdade! acudiu Loredano com uma ingenuidade simulada; isto me faz lembrar que só nos demoramos no Rio de Janeiro cinco dias, quando das outras vezes eram nunca menos de dez e quinze.
—Tive ordem para haver-me com toda a rapidez; e creio, continuou fitando no italiano um olhar severo, que não devo contas de minhas ações senão àqueles a quem dei o direito de pedi-las.
— Per Bacco, cavalheiro! Tomais as coisas ao revés. Ninguém vos pergunta por que motivo fazeis aquilo que vos praz; mas também achareis justo que cada um pense à sua maneira.
—Pensai o que quiserdes! disse Álvaro levantando os ombros e avançando o passo da sua cavalgadura.
A conversa interrompeu-se.
Os dois cavaleiros, um pouco adiantados ao resto do troço, caminhavam silenciosos um a par do outro.
Álvaro às vezes enfiava um olhar pelo caminho como para medir a distância que ainda tinham de percorrer, e outras vezes parecia pensativo e preocupado.
Nestas ocasiões, o italiano lançava sobre ele um olhar a furto, cheio de malícia e ironia; depois continuava a assobiar entredentes uma cançoneta de condottiere, de quem ele apresentava o verdadeiro tipo.
Um rosto moreno, coberto por uma longa barba negra, entre a qual o sorriso desdenhoso fazia brilhar a alvura de seus dentes; olhos vivos, a fronte larga, descoberta pelo chapéu desabado que caía sobre o ombro; alta estatura, e uma constituição forte, ágil e musculosa, eram os principais traços deste aventureiro.
A pequena cavalgata tinha deixado a margem do rio, que não oferecia mais caminho, e tomara por uma estreita picada aberta na mata.
Apesar de ser pouco mais de duas horas, o crepúsculo reinava nas profundas e sombrias abóbadas de verdura: a luz, coando entre a espessa folhagem, se decompunha inteiramente; nem uma réstia de sol penetrava nesse templo da criação, ao qual serviam de colunas os troncos seculares dos acaris e araribás.
O silêncio da noite, com os seus rumores vagos e indecisos e os seus ecos amortecidos, dormia no fundo dessa solidão, e era apenas interrompido um momento pelo passo dos animais, que faziam estalar as folhas secas.
Parecia que deviam ser seis horas da tarde, e que o dia caindo envolvia a terra nas sombras pardacentas do ocaso.
Álvaro de Sá, embora habituado a esta ilusão, não pôde deixar de sobressaltar-se um instante, em que, saindo da sua meditação, viu-se de repente no meio do claro-escuro da floresta.
Involuntariamente ergueu a cabeça para ver se através da cúpula de verdura descobria o sol, ou pelo menos alguma centelha de luz que lhe indicasse a hora.
Loredano não pôde reprimir a risada sardônica que lhe veio aos lábios.
—Não vos dê cuidado, sr. cavalheiro, antes de seis horas li estaremos; sou eu que vo-lo digo.
O moço voltou-se para o italiano, rugando o sobrolho.
—Sr. Loredano, é a segunda vez que dizeis esta palavra em um tom que me desagrada; pareceis querer dar a entender alguma coisa, mas falta-vos o animo de a proferir. Uma vez por todas, falai abertamente, e Deus vos guarde de tocar em objetos que são sagrados.
Os olhos do italiano lançaram uma faísca; mas o seu rosto conservou-se calmo e sereno.
—Bem sabeis que vos devo obediência, sr. cavalheiro, e não faltarei dela. Desejais que fale claramente, e a mim me parece que nada do que tenho dito pode ser mais claro do que é.
—Para vós, não duvido; mas isto não é razão de que o seja para outros.
—Ora dizei-me, sr. cavalheiro; não vos parece claro, à vista do que me ouvistes, que adivinhei o vosso desejo de chegar o mais depressa possível?
—Quanto a isto, já vos confessei eu; não há pois grande mérito em adivinhar.
—Não vos parece claro também que observei haverdes feito esta expedição com a maior rapidez, de modo que em menos de vinte dias eis-nos ao cabo dela?
—Já vos disse que tive ordem, e creio que nada tendes a opor.
—Não decerto; uma ordem é um dever, e um dever cumpre-se com satisfação, quando o coração nele se interessa.
—Sr. Loredano! disse o moço levando a mão ao punho da espada e colhendo as rédeas.
O italiano fez que não tinha visto o gesto de ameaça; continuou:
—Assim tudo se explica. Recebestes uma ordem; foi de D. Antônio de Mariz, sem dúvida?
—Não sei que nenhum outro tenha direito de dar-me, replicou o moço com arrogância.
—Naturalmente por virtude desta ordem, continuou o italiano cortesmente, partistes do Paquequer em uma segunda-feira, quando o dia designado era um domingo.
—Ah! também reparastes nisto? perguntou o moço mordendo os beiços de despeito.
—Reparo em tudo, sr. cavalheiro; assim, não deixei de observar ainda, que sempre em virtude da ordem, fizestes tudo para chegar justamente antes do domingo.
—E não observastes mais nada? perguntou Álvaro com a voz trêmula e fazendo um esforço para conter-se.
—Não me escapou também uma pequena circunstância de que já vos falei.
—E qual é ela, se vos praz?
—Oh! não vale a pena repetir: é coisa de somenos.
—Dizei sempre, Sr. Loredano; nada é perdido entre dois homens que se entendem, replicou Álvaro com um olhar de ameaça.
—Já que o quereis, força é satisfazer-vos. Noto que a ordem de D. Antônio, e o italiano carregou nessa palavra, manda-vos estar no Paquequer um pouco antes de seis horas, a tempo de ouvir a prece.
—Tendes um dom admirável, Sr. Loredano: o que é de lamentar, é que o empregueis em futilidades.
—Em que quereis que um homem gaste seu tempo neste sertão, senão a olhar para seus semelhantes, e ver o que eles fazem?
—Com efeito é uma boa distração.
—Excelente. Vede vós, tenho visto coisas que se passam diante dos outros, e que ninguém percebe, porque não se quer dar ao trabalho de olhar como eu, disse o italiano com o seu ar de simplicidade fingida.
—Contai-nos isto, há de ser curioso.
—Ao contrário, é o mais natural possível; um moço que apanha uma flor ou um homem que passeia de noite à luz das estrelas... Pode haver coisa mais simples?
Álvaro empalideceu desta vez.
—Sabeis uma coisa, Sr. Loredano?
—Saberei, cavalheiro, se me fizerdes a honra de dizer.
—Está me parecendo que a vossa habilidade de observador levou-vos muito longe, e que fazeis nem mais nem menos do que o oficio de espião.
O aventureiro ergueu a cabeça com um gesto altivo, levando a mão ao cabo de uma larga adaga que trazia à ilharga: no mesmo instante porém dominou este movimento, e voltou à bonomia habitual.
—Quereis gracejar, sr. cavalheiro?...
—Enganais-vos, disse o moço picando o seu cavalo e encostando-se ao italiano, falo-vos seriamente; sois um infame espião! Mas juro, por Deus, que à primeira palavra que proferirdes, esmago-vos a cabeça como a uma cobra venenosa.
A fisionomia de Loredano não se alterou; conservou a mesma impassibilidade; apenas o seu ar de indiferença e sarcasmo desapareceu sob a expressão de energia e maldade que lhe acentuou os traços vigorosos.
Fitando um olhar duro no cavalheiro, respondeu:
—Visto que tomais a coisa neste tom, Sr. Álvaro de Sá, cumpre que vos diga que não é a vós que cabe ameaçar; entre nós dois, deveis saber qual é o que tem a temer!...
—Esqueceis a quem falais? disse o moço com altivez.
—Não, senhor, lembro tudo; lembro que sois meu superior, e também, acrescentou com voz surda, que tenho o vosso segredo.
E parando o animal, o aventureiro deixou Álvaro seguir só na frente, e misturou-se com os seus companheiros.
A pequena cavalgata continuou a marcha através da picada, e aproximou-se de uma dessas clareiras das matas virgens, que se assemelham a grandes zimbórios de verdura.
Neste momento um rugido espantoso fez estremecer a floresta, e encheu a solidão com os ecos estridentes.
Os caminheiros empalideceram e olharam um para o outro; os cavaleiros engatilharam os arcabuzes e seguiram lentamente, lançando um olhar cauteloso pelos ramos das árvores.
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