Thursday, 20 March 2025

Thursday's Serial: “A Moreninha” by Dr. Joaquim Manoel de Macedo (in Portuguese) - the end.

 

Cap. XXII – Mau tempo

Tristes dias tem-se arrastado. Augusto está desesperado. Voltando da ilha de... depois daquele belo dia da declaração de amor achou na corte seu pai e em poucos momentos teve de concluir, na severidade com que era tratado, que já alguém o havia prevenido das suas loucuras e dos muitos pontos que ultimamente tinha dado nas aulas. A mais bem merecida repreensão, e um discurso cheio de conselhos e admoestações, veio por fim dar-lhe a certeza de que o seu bom velho estava ciente de tudo.

Para coroar a obra, contra o costume do maior número dos nossos agricultores que, quando vêm à cidade, estão no caso do fogo viste, lingüiça? e ainda não puseram os pés no largo do Paço já têm os olhos na praia Grande (que por estes bons cinqüenta anos há de continuar a ser praia Grande, apesar de a terem crismado Niterói), o pai de Augusto não falava em voltar para a roça; e a julgar-se pelo sossego e vagar com que tratava os menos importantes negócios. parecia haver esquecido a moagem e a safra.

Chegou o sábado. O nosso Augusto, depois de muitos rodeios e cerimônias, pediu finalmente licença para ir passar o dia de domingo na ilha de... e obteve em resposta um não redondo; jurou que tinha dado sua palavra de honra de lá se achar nesse dia e o pai. para que o filho não cumprisse a palavra, nem faltasse à honra, julgou muito conveniente trancá-lo em seu quarto.

Mania antiga é essa de querer triunfar das paixões com fortes meios; erro palmar, principalmente no caso em que se acha o nosso estudante; amor é um menino doidinho e malcriado que. quando alguém intenta refreá-lo, chora, escarapela, esperneia. escabuja. morde, belisca, e incomoda mais que solto e livre; prudente é facilitar-lhe o que deseja, para que ele disso se desgote; soltá-lo no prado, para que não corra; limpar-lhe o caminho. para que não passe; acabar com as dificuldades e oposições, para que ele durma e muitas vezes morra. O amor é um anzol que, quando se engole. agadanha-se logo no coração da gente, donde, se não é com jeito, o maldito rasga, esburaca e se aprofunda. Portanto, muita indústria deve ter quem o quer pôr na rua, e para consegui-lo convém ir despedindo-o com bons modos, parlamentares oferecimentos e nunca bater-lhe com a porta na cara. Porém os homens, mal passam de certa idade, só se lembram do seu tempo para gritar contra o atual e esquecem completamente os ardores da mocidade. O resultado disso é o mesmo que tirara o pai de Augusto da energia e violência com que procura apagar a paixão do filho.

Já era tarde. Augusto amava deveras, e pela primeira vez cm sua vida; e o amor, mais forte que seu espírito, exercia nele um poder absoluto e invencível. Ora, não há idéias mais livres que as do preso; e, pois, o nosso encarcerado estudante soltou as velas da barquinha de sua alma, que voou, atrevida, por esse mar imenso da imaginação; então começou a criar mil sublimes quadros e em todos eles lá aparecia a encantadora Moreninha, toda cheia de encantos e graças. Viu-a, com seu vestido branco, esperando-o em cima do rochedo, viu-a chorar, por ver que ele não chegava, e suas lágrimas queimavam-lhe o coração. Ouviu-a acusá-lo de inconstante e ingrato, daí a pouco pareceu-lhe que ela soluçava; escutou um grito de dor semelhante a esse que soltara no primeiro dia que ele tinha passado na ilha! Aqui, foi o nosso estudante às nuvens; saltou exasperado fora do leito em que se achava deitado, passou a largos passos por seu quarto, acusou a crueldade dos pais, experimentou se podia’ arrombar a porta, fez mil planos de fuga, esbravejou, escabelou-se e, como nada disso lhe valesse, atirou com todos os seus livros para baixo da cama e deitou-se de novo, jurando que não havia de estudar dois meses. Carrancudo e teimoso, mandou voltar o almoço, o jantar e a ceia que lhe trouxeram, sem tocar num só prato; e sentindo que seu pai abria a porta do quarto, sem dúvida para vir consolá-lo e dar-lhe salutares conselhos, voltou o rosto para a parede e principiou a roncar como um endemoninhado.

— Já dormes, Augusto? perguntou o bom pai, abrindo as cortinas do leito.

A única resposta que obteve foi um ronco que mais assemelhou-se a um trovão.

O experimentado velho fingiu ter-se deixado enganar, e retirando-se, trancou a porta ao pobre estudante.

Uma noite de amargor foi, então, a que se passou para este; na solidão e silêncio das trevas, a alma do homem que padece é, mais que nunca, toda de sua dor; concentra-se, mergulha-se inteira em seu sofrimento, não concebe; não pensa, não vela e não se exalta senão por ela. Isto aconteceu a Augusto, de modo que, ao abrir-se na manhã seguinte a porta do quarto, o pai veio encontrá-lo ainda acordado, com os olhos em fogo e o rosto mais enrubescido que de ordinário.

Augusto quis dar dois passos e foi preciso que os braços paternais o sustivessem para livrá-lo de cair.

— Que fizeste, louco? perguntou o pai, cuidadoso.

— Nada, meu pai; passei uma noite em claro, mas… eu não sofro nada.

Oh! ele queria dizer que sofria muito!

Imediatamente foi-se chamar um médico que, contra o costume da classe, fez-se esperar pouco.

Augusto sujeitou-se com brandura ao exame necessário e quando o médico lhe perguntou:

— O que sente?

Ele respondeu com toda fria segurança do homem determinado:

— Eu amo.

— E mais nada?

— Oh! Sr. doutor, julga isso pouco?

E além destas palavras não quis pronunciar mais uma única sobre o seu estado. E, contudo, ele estava em violenta exacerbação. O médico deu por terminada a sua visita. Algumas aplicações se fizeram e um dos colegas de Augusto, que o tinha vindo procurar, fez-lhe o que chamou uma bela sangria de braços.

A enfermidade de Augusto não cedeu, porém, com tanta facilidade como a princípio supôs o médico, e três dias se passaram sem conseguir-se a mais insignificante melhora; uma mudança apenas se operou: a exacerbação foi seguida de um abatimento e prostração de força notável; sua paixão, que também se desenhava no ardor dos olhares, na viveza das expressões e na audácia dos pensamentos, tomou outro tipo: Augusto tornou-se pálido, sombrio e melancólico; horas inteiras se passavam sem que uma só palavra fosse apenas murmurada por seus lábios, prolongadas insônias eram marcadas minuto a minuto por dolorosos gemidos; e seus olhos, amortecidos, como que obsequiavam a luz quando por acaso se entreabriam.

Na visita do quarto dia o médico disse ao pai de Augusto:

— Não vamos bem...

Uma idéia terrível apareceu então no pensamento do sensível velho: a possibilidade de morrer seu filho, a flor de suas esperanças, e tal idéia derramou em seu coração todo esse fel, cujo amargor só pode sentir a alma de um pai; entrou apressado e trêmulo no quarto do enfermo, e vendo-o prostrado no leito, como insensível, como meio morto, exclamou com lágrimas nos olhos:

— Oh! Meu filho!... Meu filho!... Por que me queres matar?

Um brando favônio de vida passeou pelo rosto de Augusto; seus olhos sc abriram, um leve sorriso de gratidão lhe alisou os lábios, também duas lágrimas ficaram penduradas em suas pálpebras e ele, tomando e beijando a mão paterna, murmurou com voz sumida e terna:

— Meu pai... tão bom!...

Doces frases que retumbaram com mais doçura ainda no coração do velho.

— Querido louco! ... disse ele: tu me obrigas a fazer loucuras!

E saiu do quarto e logo depois de casa, mas, voltando passadas algumas horas, entrou de novo na câmara do doente; fez retirar todas as pessoas que aí se achavam e, ficando só com ele, deu-lhe provavelmente algum elixir tão admirável, que as melhoras começaram a parecer como por encantamento, no mesmo instante. Que milagre não será capaz de fazer o amor dos pais?...

Novidades do mesmo gênero perturbavam a paz e os prazeres da ilha de... D. Carolina também padecia. Os nossos amantes acabavam de chegar ao sentimental, e com seu sentimentalismo estavam azedando a vida dos que lhes queriam bem. Os namoradores são semelhantes às crianças: primeiro divertem-nos com suas momices, depois incomodam-nos choramingando.

A bela Moreninha tinha visto romper a aurora do domingo, no rochedo da gruta, e tendo, debalde, esperado o seu estudante até alto dia, voltou para casa arrufada. No almoço não houve prato que não acusasse de mal temperado: faltava-lhe o tempero do amor; o chá não se podia tomar, o dia estava frio de enregelar, toda a gente de sua casa a olhava com maus olhos, e seu próprio irmão tinha um deleite imperdoável: era estudante, pertencia a uma classe cujos membros eram, sem exceção, sem exceção nenhuma (bradava ela lindamente enraivecida), falsos, maus, mentirosos e até... feios. A tarde sentiu-se incomodada. Retirou-se, não ceou e não dormiu.

Tudo neste mundo é mais ou menos compensado, e o amor mio podia deixar de fazer parte da regra. Ele, que de um nadazinho tira motivos para o prazer de dias inteiros, que de uma flor já murcha engendra o mais vivo contentamento, que por um só cabelo faz escarcéus tais, que nem mesmo a sorte grande os causaria, que por uma cartinha de cinco linhas põe os lábios de um pobre amante em inflamação aguda com o estalar de tantos beijos, se não produzisse também agastados arrufos, às vezes algumas cólicas, outras amargores de boca, palpitações, ataques de hipocondria, pruído de canelas etc., seria tão completa a felicidade cá embaixo, que a terra chegaria a lembrar-se de ser competidora do céu.

Um exemplo dessa regra está sendo a nossa cara menina. Coitadinha! Vai passando uma semana de ciúmes e amarguras; acordando-se ao primeiro trinar do canário, ela busca o rochedo, e com os olhos embebidos no mar, canta muitas vezes a balada de Ahy, repetindo com fogo a estrofe que tanto lhe condiz, por principiar assim:

 

"Eu tenho quinze anos

E sou morena e linda".

 

E quando o sol começa a fazer-se quente, deixa o rochedo, para passar o dia inteiro no fundo do seu gabinete, ou ao lado de sua boa avó, que mal pode consolá-la, porque, conhecendo já a causa da tristeza da querida neta, teme vê-la fugir vermelha de pejo, se não fingir com finura ignorar o estado de seu coração.

O dia de sexta-feira trouxe ainda algumas novidades à ilha de... A sra. d. Ana recebeu cartas que a tornaram talvez menos triste, mas, sem dúvida, muito pensativa. A presença da linda neta parecia alentar mais essas reflexões, que se prolongaram até à tarde do dia seguinte, em que um velho e particular amigo de sua família veio da corte visitá-la e com a respeitável senhora ficou duas horas conferenciando a sós.

Esse homem despediu-se, enfim, da sra. d. Ana, deixando-a cheia de prazer; e no momento em que saltava dentro do seu batei, vendo a interessante Moreninha que tristemente passeava à borda do mar, saudou-a com esta simples palavra, apontando para o céu:

— Esperança!

D. Carolina levantou a cabeça e viu que já o batel cortava as ondas mas, como para corresponder a tão animador cumprimento, ela por sua vez, apontou também para o céu, e pondo a outra não no lugar do coração disse:

— Esperarei.

 

 

Cap. XXIII – A esmeralda e o camafeu

D. Carolina passou uma noite cheia de pena e de cuidados, porém já menos ciumenta e despeitada; a boa avó livrou-a desses tormentos. Na hora do chá, fazendo com habilidade e destreza cair a conversação sobre o estudante amado, dizendo:

— Aquele interessante moço, Carolina, parece pagar-nos bem a amizade que lhe temos, não entendes assim?...

— Minha avó… eu não sei.

— Dize sempre, pensarás acaso de maneira diversa?...

A menina hesitou um instante e depois respondeu:

— Se ele pagasse bem, teria vindo domingo.

— Eis uma injustiça, Carolina. Desde sábado à noite que Augusto está na cama, prostrado por uma enfermidade cruel.

— Doente?! exclamou a linda Moreninha, extremamente comovida. Doente?... Em perigo?...

— Graças a Deus, há dois dias ficou livre dele; hoje já pôde chegar à janela, assim me mandou dizer Filipe.

— Oh! Pobre moço!... Se não fosse isso, teria vindo ver-nos!...

E, pois, todos os antigos sentimentos de ciúme e temor da inconstância do amante se trocaram por ansiosas inquietações a respeito de sua moléstia.

No dia seguinte, ao amanhecer, a amorosa menina despertou, e buscando o toucador, há uma semana esquecido, dividiu seus cabelos nas duas costumadas belas tranças, que tanto gostava de fazer ondear pelas espáduas, vestiu o estimado vestido branco e correu para o rochedo.

— Eu me alinhei, pensava ela, porque enfim... hoje é domingo e talvez… como ontem já pôde chegar à janela, talvez consiga com algum esforço vir ver-me.

E quando o sol começou a refletir seus raios sobre o liso espelho do mar, ela principiou também a cantar sua balada:

 

"Eu tenho quinze anos

E sou morena e linda ."

 

Mas, como por encantamento, no instante mesmo em que ela dizia no seu canto:

 

"Lá vem sua piroga

Cortando leve os mares".

 

um lindo batelão apareceu ao longe, voando com asa intumescida para a ilha.

Com força e comoção desusadas bateu o coração de d. Carolina, que calou-se para só empregar no batel que vinha atentas vistas, cheias de amor e de esperança. Ah! Era o batel suspirado.

Quando o ligeiro barquinho se aproximou suficientemente, a bela Moreninha distinguiu dentro dele Augusto, sentado junto a um respeitável ancião, a quem não pôde conhecer; então, ela, vendo que chegavam à praia, fingiu não tê-los sentido e continuou sua balada:

 

"Enfim abica à praia

Enfim salta apressado..."

 

Augusto, com efeito, saltava nesse momento fora do batel,e depois deu a mão a seu pai para ajudá-lo a desembarcar; d. Carolina, que ainda não mostrava dar fé deles, prosseguiu seu canto até que quando dizia:

 

"Quando há de ele correr

Somente pra me ver...”

 

sentiu que Augusto corria para ela. Prazer imenso inundava a alma da menina, para que possa ser descrito; como todos prevêem, a balada foi nessa estrofe interrompida e d. Carolina, aceitando o braço do estudante, desceu do rochedo e foi cumprimentar o pai dele.

Ambos os amantes compreenderam o que queria dizer a palidez de seus semblantes e os vestígios de um padecer de oito dias guardaram silêncio e não tiveram uma palavra para pronunciar; tiveram só olhares para trocar e suspiros a verter. E para que mais?... A sra. d. Ana recebeu com sua costumada afabilidade o pai de

Augusto e abraçou a este com ternura. Ao servir-se o almoço, ela lhe perguntou:

— Por que não veio o meu neto?

— Ficou para vir mais tarde, com os nossos dois amigos Leopoldo e Fabrício.

— Eu o espero.

— Então teremos um excelente dia.

Uma hora depois o pai de Augusto e a sra. d. Ana conferenciavam a sós, e os dois namorados achavam-se, defronte um do outro, no vão de uma janela.

E eles continuavam no silêncio, mas olhavam-se com fogo.

Augusto parecia querer comunicar alguma coisa bem extraordinária à sua interessante amada, porém sempre estremecia ao entreabrir os lábios.

E d. Carolina, cônscia já de sua fraqueza, e como lembrando-se dos pesares que tinha sofrido, não sabia mais servir-se de seus sorrisos com a malícia do tempo da liberdade e mostrava-se esquecida de seu viver de alegrias e travessuras.

Alguma grande resolução obrigava o moço a estar silencioso, como tremendo pelo êxito dela...

No fim de muito tempo eles haviam conseguido dizer-se:

— O mar está bem manso.

— O dia está sereno.

Felizmente para eles a sra. d. Ana convidou-os a entrar no gabinete. Augusto para aí se dirigiu tremendo, d. Carolina curiosa. Quando eles se sentaram, o ancião falou:

— Augusto, eu acabo de obter desta respeitável senhora a honra de te julgar digno de pretenderes a mão de sua linda neta, e agora resta que alcances o sim da interessante pessoa que amas. Fala.

Tanto d. Carolina como o pobre estudante ficaram cor de nácar; houve bons cinco minutos de silêncio e o pai de Augusto instou para que ele falasse, e o bom do rapaz não fez mais do que olhar para a moça, com ternura, abrir a boca e fechá-la de novo, sem dizer palavra.

A sra. d. Ana tomou, então, a palavra e disse sorrindo-se:

— Enfim, é necessário que os ajudemos. Carolina, o sr. Augusto te ama e te quer para sua esposa; tu que dizes?...

Nem palavra.

Foi preciso que se repetisse pela terceira vez a pergunta, para que a menina, sem levantar a cabeça, murmurasse apenas:

— Minha avó… eu não sei.

— Pois creio que ninguém melhor que tu o poderá saber. Desejas que eu responda em teu nome?...

A bela Moreninha pensou um momento... não pôde vencer-se, sorriu-se como se sorria dantes, e erguendo a cabeça disse:

— Eu rogo que daqui a meia hora se vá receber a minha resposta na gruta do jardim.

— Quererás consultar a fonte? Pois bem, iremos.

D. Carolina saiu com ar meio acanhado e meio maligno.

Passados alguns instantes a sra.. d. Ana, como quem estava certa do resultado da meia hora de reflexão, e já por tal podia gracejar com os noivos, disse a Augusto:

— O sr. não quer refletir também no jardim?

— O estudante não esperou segundo conselho e para logo dirigiu-se à gruta. D. Carolina estava sentada no banco de relva, e seu rosto, sem poder ocultar a comoção e o pelo que lhe produzia o objeto de que se tratava, tinha, contudo, retomado o antigo verniz do prazer e malícia. Vendo entrar o moço, disse:

— Eu creio que ainda se não passou meia hora.

— Ah! Podia eu esperar tanto tempo?...

— Acaso veio perguntar-me alguma coisa?...

— Não, minha senhora, eu só venho ouvir a minha sentença.

— Então... pede-me para sua esposa. A senhora o ouviu há pouco.

— Pois bem, sr. Augusto, veja como verificou—se o prognóstico que fiz do seu futuro! Não se lembra que aqui mesmo lhe disse que não longe estava o dia em que o sr. havia de esquecer sua mulher?

— Mas eu nunca fui casado... murmurou o estudante.

— Oh! Isso é uma recomendação contra a sua constância! E quem tem a culpa de tudo, senhora?

— Muito a tempo ainda me lança em rosto a parte que tenho na sua infidelidade; pois, eu emendarei a mão agora. O senhor há de cumprir a palavra que deu há sete anos!

Augusto recuou dois passos.

— O senhor é um moço honrado, continuou a cruel Moreninha, e, portanto, cumprirá a palavra que deu, e só casará com sua desposada antiga.

— Oh!... Agora já é impossível!

— Ela deve ser uma bonita moça! ... Teria razão de queixar-se contra mim, se eu roubasse um coração que lhe pertence… até por direito de antiguidade; ora, eu, apesar de ser travessa, não sou má, e, portanto, o senhor só será esposo dessa menina.

— Jamais!

— Juro-lhe que há de sê-lo.

— E quem me poderá obrigar?

— Eu, pedindo.

— A senhora?

— E a honra, mandando.

— Para que, pois, animou o amor que pela senhora sinto?...

— Para satisfazer a minha vaidade de moça, somente para isso. Eu o ouvi gabar-se de que nenhuma mulher seria capaz de conservá-lo em amoroso enleio por mais de três dias, e desejei vingar a injúria feita ao meu sexo. Trabalhei, confesso que trabalhei para prendê-lo; fiz talvez mais do que devia, só para ter a glória de perguntar-lhe uma vez, como agora o faço: "Então, senhor, quem venceu: o homem ou a mulher9

— Foi a beleza.

— Porém já passou o tempo do galanteio, e eu devo lembrar-lhe o dever que com a paixão esquece. Escute: de idade de treze anos o senhor amou uma linda e travessa menina, que contava apenas sete.

— Já a senhora em outra ocasião me disse isso mesmo.

— Junto ao leito de um moribundo jurou que havia de amá-la para sempre.

— Foi um juramento de criança.

— Embora, foi um juramento; trocou com ela aí mesmo prendas de amor, e quando a menina lhe apresentar a que recebeu e lhe pedir a que ofereceu e o senhor o aceitou?...

— Ah! Senhora...

— Quando o velho moribundo, dando-lhe o breve de cor branca disse: tomai este breve, cuja cor exprime a candura da alma daquela menina; ele contém vosso camafeu; se tendes bastante força para ser constante e amar para sempre aquele belo anjo, dai-lho, para que ela o guarde com desvelo. Por que deu o senhor o breve à menina?...

— Porque eu era um louco, uma criança!...

— E nem ao menos se lembra de que o velho disse com voz inspirada: "Deus paga sempre a esmola que se dá ao pobre!... Lá no futuro vós o sentíreis?" Não tem o senhor esperança de ver realizar-se essa bela profecia? Não se lembra de ouvi-la? Pois ela soou bem docemente no meu coração quando, às escondidas, a escutei repetida nesta gruta por seus lábios.

— Oh! Mas porque Deus não me prendeu a essa menina nos laços indissolúveis, antes que eu visse o lindo anjo desta ilha?

— E como, senhor, posso eu acreditar nos seus protestos de ternura e constância, se já o vejo faltar à fé de outra?…Senhor! Senhor! O que foi que prometeu há sete anos passados?...

— Então eu não pensava no que fazia. E agora pensa no que quer fazer?

— Penso que sou um desgraçado, um louco!... Penso que é uma barbaridade inqualificável que, enquanto eu padeço, sofro mil torturas, deixe a senhora brincar nos seus lábios o sorriso com que costuma encantar para matar; penso...

— Acabe!

— Penso que devo fugir para sempre desta ilha fatal, deixar aquela cidade detestável, abandonar esta terra de minha pátria, onde não posso ser outra vez feliz!... Penso que a lembrança do meu passado faz a minha desgraça, que o presente me enlouquece e me mata, que o futuro... Oh! Já não haverá futuro para mim! Adeus, senhora!

— Então, parte?…

— E para sempre.

D. Carolina deixou cair uma lágrima e falou ainda, mas já com voz fraca e trêmula:

— Sim, deve partir... vá... Talvez encontre aquela a quem jurou amor eterno... Ah! Senhor! Nunca lhe seja perjuro.

— Se eu a encontrasse!

— Então?... Que faria?...

— Atirar-me-ia a seus pés, abraçar-me-ia com eles e lhe diria:

"Perdoai-me, perdoai-me, senhora, eu já não posso ser vosso esposo! Tomai a prenda que me deste..."

E o infeliz amante arrancou debaixo da camisa um breve, que convulsivamente apertou na mão.

— O breve verde!…, exclamou d. Carolina, o breve que contém a esmeralda!

— Eu lhe diria, continuou Augusto: "Recebei este breve que já não devo conservar, porque eu amo outra que não sois vós, que é mais bela e mais cruel do que vós!..."

A cena estava se tornando patética; ambos choravam e só passados alguns instantes, a inexplicável Moreninha pôde falar e responder ao triste estudante.

— Oh! Pois bem, disse; vá ter com sua antiga desposada, repita-lhe o que acaba de dizer, e se ela ceder, se perdoar, volte que eu serei sua... esposa.

— Sim... eu corro... Mas meu Deus, onde poderei achar essa moça a quem não tornei a ver, nem poderei conhecer?... Onde, meu Deus?... Onde?...

E tornou a deixar correr o pranto por um momento suspenso.

— Espere, tornou d. Carolina, escute, senhor. Houve um dia, quando minha mãe era viva, em que eu também socorri um velho moribundo. Como o senhor e sua camarada, matei a fome de sua família e cobri a nudez de seus filhos; em sinal de reconhecimento também este velho me fez um presente; deu-me uma relíquia milagrosa que, asseverou-me ele, tem o poder uma vez, na vida de quem a possui, de dar o que se deseja. Eu cosi essa relíquia dentro de um breve; ainda não lhe pedi coisa alguma, mas trago-a sempre comigo; eu lha cedo... tome o breve, descosa-a, tire a relíquia e à mercê dela talvez encontre sua antiga amada. Obtenha o seu perdão e me terá por esposa.

— Isto tudo me parece um sonho, respondeu Augusto, porém, dê-me, dê-me esse breve!

A menina, com efeito, entregou o breve ao estudante, que começou a descosê-Lo precipitadamente. Aquela relíquia, que se dizia milagrosa, era sua última esperança; e, semelhante ao náufrago que no derradeiro extremo se agarra à mais leve tábua, ele se abraçava com ela. Sé faltava a derradeira capa do breve.., ei-la que cede e se descose alta uma pedra... e Augusto, entusiasmado e como delirante, cai aos pés de d. Carolina, exclamando:

— O meu camafeu!…O meu camafeu!...

A senhora d. Ana e o pai de Augusto entraram nesse instante na gruta e encontraram o feliz e fervoroso amante de joelhos e a dar mil beijos nos pés da linda menina, que também por sua parte chorava de prazer.

— Que loucura é esta? perguntou a senhora d. Ana.

— Achei minha mulher!... bradava Augusto; encontrei minha mulher! … Encontrei minha mulher!

— Que quer dizer isto, Carolina?...

— Ah! Minha boa avó!… respondeu a travessa Moreninha ingenuamente; nós éramos conhecidos antigos.

 

 

Epílogo

  A chegada de Filipe, Fabrício e Leopoldo veio dar ainda mais viveza ao prazer que reinava na gruta. O projeto de casamento de Augusto e d. Carolina não podia ser um mistério para eles, tendo sido, como foi, elaborado por Filipe. de acordo com o pai do noivo, que fizera a proposta, e com o velho amigo, que ainda no dia antecedente viera concluir os ajustes com a senhora d. Ana e portanto, o tempo que se gastaria em explicações passou-se em abraços.

— Muito bem! Muito bem! disse por fim Filipe; quem pôs o fogo ao pé da pólvora fui eu, eu que obriguei Augusto a vir passar o dia de Sant’Ana conosco.

— Então estás arrependido?...

— Não, por certo, apesar de me roubares minha irmã. Finalmente para este tesouro sempre teria de haver uni ladrão: ainda bem que foste tu que o ganhaste.

— Mas, meu maninho, ele perdeu ganhando...

— Como?...

Estamos no dia 20 de agosto: um mês!

— E verdade! Um mês!... exclamou Filipe.

— Um mês! ... gritaram Fabrício e Leopoldo.

— Eu não entendo isto, disse a senhora d. Ana.

Minha boa avó, acudiu a noiva, isto quer dizer que, finalmente, está presa a borboleta.

— Minha boa avó, exclamou Filipe, isto quer dizer que Augusto deve-me um romance.

— Já está pronto, respondeu o noivo.

— Como se intitula?

“A Moreninha”.

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