Saturday, 21 December 2019

Good Readings: letter from Jane Austen to Cassandra Austen (in English)


Chawton Friday Jany 29.

    I hope you received my little parcel by J. Bond on Wednesday eveng, my dear Cassandra, & that you will be ready to hear from me again on Sunday, for I feel that I must write to you to day. Your parcel is safely arrived & everything shall be delivered as it ought. Thank you for your note. As you had not heard from me at that time it was very good in you to write, but I shall not be so much your debtor soon.—I want to tell you that I have got my own darling Child from London;—on Wednesday I received one Copy, sent down by Falknor, with three lines from Henry to say that he had given another to Charles, & sent a 3d by the Coach to Godmersham; just the two Sets which I was least eager for the disposal of. I wrote to him immediately to beg for my two other Sets, unless he would take the trouble of forwarding them at once to Steventon & Portsmouth—not having an idea of his leaving Town before to day;—by your account however he was gone before my Letter was written. The only evil is the delay, nothing more can be done till his return. Tell James & Mary so, with my Love.—For your sake I am as well pleased that it shd be so, as it might be unpleasant to you to be in the Neighbourhood at the first burst of the business.—The Advertisement is in our paper to day for the first time;—18s—He shall ask £1- 1- for my two next, & £1- 8 for my stupidest of all.—I shall write to Frank, that he may not think himself neglected. Miss Benn dined with us on the very day of the Books coming, & in the eveng we set fairly at it & read half the 1st vol. to her—prefacing that having intelligence from Henry that such a work wd soon appear we had desired him to send it whenever it came out—& I beleive it passed with her unsuspected.—She was amused, poor soul! that she cd not help you know, with two such people to lead the way; but she really does seem to admire Elizabeth. I must confess that I think her as delightful a creature as ever appeared in print, & how I shall be able to tolerate those who do not like her at least, I do not know.—There are a few Typical errors—& a "said he" or a "said she" would sometimes make the Dialogue more immediately clear—but "I do not write for such dull Elves"
    "As have not a great deal of Ingenuity themselves."—The 2d vol. is shorter than I cd wish—but the difference is not so much in reality as in look, there being a larger proportion of Narrative in that part. I have lopt & cropt so successfully however that I imagine it must be rather shorter than S. & S. altogether.—Now I will try to write of something else;—it shall be a complete change of subject—Ordination. I am glad to find your enquiries have ended so well.—If you cd discover whether Northamptonshire is a Country of Hedgerows, I shd be glad again.—We admire your Charades excessively, but as yet have guessed only the 1st. The others seem very difficult. There is so much beauty in the Versification however, that the finding them out is but a secondary pleasure.—I grant you that this is a cold day, & am sorry to think how cold you will be through the process of your visit at Manydown. I hope you will wear your China Crape. Poor wretch! I can see you shivering away, with your miserable feeling feet.—What a vile Character Mr Digweed turns out, quite beyond anything & everything;—instead of going to Steventon they are to have a Dinnerparty next tuesday!—I am sorry to say that I could not eat a Mincepie at Mr Papillon's; I was rather head-achey that day, & cd not venture on anything sweet except Jelly; but that was excellent.—There were no stewed pears, but Miss Benn had some almonds & raisins.—By the bye, she desired to be kindly remembered to you when I wrote last, & I forgot it.—Betsy sends her Duty to you & hopes you are well, & her Love to Miss Caroline & hopes she has got rid of her Cough. It was such a pleasure to her to think her Oranges were so well timed, that I dare say she was rather glad to hear of the Cough.

    [Second leaf of letter missing; postscript upside down at top of p.1]

    Since I wrote this Letter we have been visited by Mrs Digweed, her Sister & Miss Benn. I gave Mrs D. her little parcel, which she opened here & seemed much pleased with—& she desired me to make her best Thanks &c. to Miss Lloyd for it.—Martha may guess how full of wonder & gratitude she was.

    [Miss Austen Steventon]

Friday, 20 December 2019

Friday's Sung Word: "Parei Contigo" by Lamartine Babo (in Portuguese)

Tu és o tipo
do sujeito indefinido, carcomido
que só quer tirar partido!
Meu Deus, mas é isto
que se chama ser amigo?
Parei contigo! Parei contigo!

Nas eleições foi o diabo
pois tu eras meu cabo
e votaste no inimigo!
Meu Deus, mas é isto
que se chama ser amigo?
Parei contigo! Parei contigo!

Parei contigo
mesmo em caso de emergencia!
Jurei comigo
de esgotar a paciencia.
Já vou-me embora - cruz! -
vou disparando
se não tu furtas a canção
que estou cantando.

Após te dar casa e comida,
automóvel, tanta coisa
carregaste a minha esposa!
Meu Deus, mas é isto
que se chama ser amigo ?
Parei contigo! Parei contigo!

Um dia eu fui parar
num hotel em Cascadura
me furtaste a dentadura!
Meu Deus, mas é isto
que se chama ser amigo ?
Parei contigo! Parei contigo!

Levaste os meus  bens  de casamento
só deixaste minha sogra
por um raro esquecimento!
Meu Deus, mas é isto
que se chama ser amigo ?
Parei contigo! Parei contigo!




You can hear "Parei Contigo" sung by Mário Reis and Lamartine Babo with the Diabos do Céu band here.

Thursday, 19 December 2019

Thursday's Serial: "Memórias de um Sargento de Milícias" by Manuel Antônio de Almeida (in Portuguese) - IV


XVI - Sucesso do Plano
Para sossegarmos os leitores, que estarão sem dúvida com cuidado no mestre-de-cerimônias, apressamo-nos a dizer que não chegou ele a ir à cadeia; o Vidigal quis dar-lhe apenas uma amostra do pano, e depois de o ter exposto na casa da guarda por algumas horas, como já acontecera ao Leonardo, à vistoria pública, o deixou ir embora envergonhado, abatido, maldizendo a idéia que tivera de ir assistir de dentro do quarto à festa dos anos da sua amásia. Quanto ao Leonardo, não cabia em si de contente; por pouco que a sua vingança não tinha sido completa: vira o seu rival, como já a ele próprio sucedera, preso pelos granadeiros, levado à casa da guarda, sofrendo aí a vistoria dos curiosos; faltara, é verdade, a sova e os dias de cadeia, porém também ele era um simples meirinho, e o mestre-de-cerimônias um sacerdote respeitado, e por isso qualquer coisa bastava para feri-lo gravemente.
Além disto o mestre-de-cerimônias, depois de graves meditações, sabendo que ficara malvisto de seus companheiros pelo escândalo que dera, se bem que fosse certo não estar nenhum deles a tal respeito em circunstâncias de lhe atirar a primeira pedra, ouvindo um murmúrio surdo que se levantava ameaçando-o com a perda do lugar que exercia na Sé, decidiu-se a abandonar a cigana, e assim o fez. Com isto o Leonardo deu-se de todo por satisfeito, e renasceram-lhe as esperanças de conquistar o antigo posto, uma vez que o principal inimigo o tinha abandonado. A cigana, desprezada, não quereria sem dúvida ficar por muito tempo devoluta; e como ele se achava com requerimento em caixa, e contava serviços atrasados, era provável que obtivesse favorável despacho, porque também ela ainda nem sonhava que tudo o que tinha sucedido pudesse ter sido obra sua.
Começou pois o sentimental Leonardo a rondar a porta da sua antiga amante: se a via na janela, ora parava na esquina a dirigir-lhe olhares suplicantes; passando por junto dela deixava ora escapar um magoadíssimo suspiro ou uma queixa amargurada.
Todas estas cenas, desempenhadas por aquela figura do Leonardo, alto, corpulento, avermelhado, vestido de casaca, calção e chapéu armado, eram tão cômicas, que toda a vizinhança se divertiu com elas por alguns dias. Alguns imprudentes começaram, conversando das janelas, a atirar indiretas à cigana; esta picou-se com isso, e foi essa a fortuna do Leonardo. Um dia que ele passou deu-lhe ela de olho que entrasse.
O Leonardo teve uma sensação inexplicável; seu rosto coloriu-se em todos os tons, desde o vermelho, que era sua cor habitual, até o roxo enegrecido; depois baixou gradualmente até a palidez marmórea; caminhando do lugar onde estava até à porta da cigana, não sentiu o solo debaixo de seus pés; quando deu acordo de si estava com os olhos rasos d’água nos braços da antiga amada que lhe pedia mil perdões, que prometia ser dali em diante fiel até à morte, se bem que se não esquecia de declarar no meio de tudo que se o recebia de novo em sua casa era porque queria quebrar a castanha na boca daquelas más-línguas da vizinhança que se estavam metendo com a sua vida. O pobre homem não cabia em si; parecia um viajante que volta aos velhos lares, ou um cabo-de-guerra que acaba de livrar do poder do inimigo uma praça sitiada. Enfim reataram-se de todo os afrouxados laços.
O Leonardo caiu em dar parte aos seus companheiros que tinha afinal vencido a intrincada demanda; custou-lhe isto uma tremenda caçoada de todos, e sérias repreensões de alguns. Mas com coisa alguma se importava naquela ocasião: a felicidade o cegava a ponto de não ver aquilo que lhe estava entrando pelos olhos.
A comadre, apenas soube do que havia sucedido, foi procurar o Leonardo, e começou em um longo sermão a querer persuadi-lo que tinha dado um passo errado.
— Pois, compadre, disse-lhe ela, você não se emendou ainda!...
— Qual, história, eu sou doido por estas coisas.
— Mas, homem, você não se tem dado bem nem com as saloias nem com as ciganas; para que antes não procura uma filha cá da terra?...
A comadre tinha uma sobrinha que vivia em sua companhia, e que lhe pesava sofrivelmente sobre as costas; desde há muito nutria por isso uma idéia de que o leitor mais tarde terá conhecimento quando ela se realizar, ou antes disso, se a perceber pelas palavras da comadre.
— Nada, não gosto desta gente..
— Não tem razão; há por aí muita rapariga capaz; é verdade que o que elas querem é o toma lá, dá cá debaixo do arco-cruzeiro...
— É por isso mesmo que eu não gosto.
Depois de algumas outras tentativas a comadre retirou-se um pouco contrariada, mas não de todo desanimada; ela contava com a cigana para ajudá-la a realizar o seu plano, e o leitor verá para diante que tinha nisso razão.
Quanto ao nosso ex-sacristão, continuava ainda a estar sem destino, o que sobremaneira incomodava ao compadre, mas que nem por isso o desanimava. Coimbra era a sua idéia fixa, e nada lha arrancava da cabeça. Até o próprio velho tenente-coronel já lhe tinha ido pessoalmente falar por solicitações da comadre, porém nada conseguira. Exasperado com essa obstinação deixara o negócio de parte, e não se importara mais com coisa alguma.

XVII - D. Maria  
Um dia de procissão foi sempre nesta cidade um dia de grande festa, de lufa-lufa, de movimento e de agitação; e se ainda é hoje o que os nossos leitores bem sabem, na época em que viveram as personagens desta história a coisa subia de ponto; enchiam-se as ruas de povo, especialmente de mulheres de mantilha; armavam-se as casas, penduravam-se às janelas magníficas colchas de seda, de damasco de todas as cores, e armavam-se coretos em quase todos os cantos. E quase tudo o que ainda hoje se pratica, porém em muito maior escala e grandeza, porque era feito por fé, como dizem as velhas desse bom tempo, porém nós diremos, porque era feito por moda: era tanto do tom enfeitar as janelas e portas em dias de procissão, ou concorrer de qualquer outro modo para o brilhantismo das festividades religiosas, como ter um vestido de mangas de presunto, ou trazer à cabeça um formidável trepa-moleque de dois palmos de altura.
Nesse tempo as procissões eram multiplicadas, e cada qual buscava ser mais rica e ostentar maior luxo: as da quaresma eram de uma pompa extraordinária, especialmente quando el-rei se dignava acompanhá-las, obrigando toda a corte a fazer outro tanto: a que primava porém entre todas era a chamada procissão dos ourives. Ninguém ficava em casa no dia em que ela saia, ou na rua ou nas casas dos conhecidos e amigos que tinham a ventura de morar em lugar por onde ela passasse, achavam todos meio de vê-la. Alguns haviam tão devotos, que não se contentavam vendo-a uma só vez; andavam de casa deste para a casa daquele, desta rua para aquela, até conseguir vê-la desfilar de principio a fim duas, quatro e seis vezes, sem o que não se davam por satisfeitos. A causa principal de tudo isto era, supomos nós, além talvez de outras, o levar esta procissão uma coisa que não tinha nenhuma das outras: o leitor há de achá-la sem dúvida extravagante e ridícula; outro tanto nos acontece, mas temos obrigação de referi-la. Queremos falar de um grande rancho chamado das-Baianas,-que caminhava adiante da procissão, atraindo mais ou tanto como os santos, os andores, os emblemas sagrados, os olhares dos devotos; era formado esse rancho por um grande número de negras vertidas à moda da província da Bahia, donde lhe vinha o nome, e que dançavam nos intervalos dos Deo-gratias uma dança lá a seu capricho. Para falarmos a verdade, a coisa era curiosa: e se não a empregassem como primeira parte de uma procissão religiosa, certamente seria mais desculpável. Todos conhecem o modo por que se vestem as negras na Batia; é um dos modos de trajar mais bonito que temos visto, não aconselhamos porém que ninguém o adote; um país em que todas as mulheres usassem desse traje, especialmente se fosse desses abençoados em que elas são alvas e formosas, seria uma terra de perdição e de pecados. Procuremos descrevê-lo.
As chamadas Baianas não usavam de vestido; traziam somente umas poucas de saias presas à cintura, e que chegavam pouco abaixo do meio da perna, todas elas ornadas de magníficas rendas; da cintura para cima apenas traziam uma finíssima camisa, cuja gola e mangas eram também ornadas de renda; ao pescoço punham um cordão de ouro ou um colar de corais, os mais pobres eram de miçangas; ornavam a cabeça com uma espécie de turbante a que davam o nome de trunfas, formado por um grande lenço branco muito teso e engomado; calçavam umas chinelinhas de salto alto, e tão pequenas, que apenas continham os dedos dos pés, ficando de fora todo o calcanhar; e além de tudo isto envolviam-se graciosamente em uma capa de pano preto, deixando de fora os braços ornados de argolas de metal simulando pulseiras.
Poucos dias depois dos últimos acontecimentos narrados nos capítulos antecedentes, chegou o dia da procissão dos ourives. Os nossos costumes nesse tempo a respeito de franqueza e hospitalidade não eram lá muito louváveis; nesse dia porém sofriam uma exceção, e, como dissemos, as portas daqueles que moravam nas ruas por onde passava a procissão se abriam a todos os amigos e conhecidos. Em virtude disso aconteceu que se achassem reunidos em casa de uma certa D. Maria o compadre acompanhado do afilhado (ricamente vestido nesse dia com o seu robissão de duraque preto e o seu boné de pêlo de lontra), a comadre e a vizinha dos maus agouros.
D. Maria era uma mulher velha, muito gorda; devia ter sido muito formosa no seu tempo, porém dessa formosura só lhe restavam o rosado das faces e alvura dos dentes; trajava nesse dia o seu vestido branco de cintura muito curta e mangas de presunto, o seu lenço também branco e muito engomado ao pescoço; estava penteada de bugres, que eram dois grossos cachos caídos sobre as fontes; o amarrado do cabelo era feito na coroa da cabeça, de maneira que simulava um penacho. D. Maria tinha bom coração, era benfazeja, devota e amiga dos pobres, porém em compensação destas virtudes tinha um dos piores vícios daquele tempo e daqueles costumes: era a mania das demandas. Como era rica, D. Maria alimentava este vício largamente; as suas demandas eram o alimento da sua vida; acordada pensava nelas, dormindo sonhava com elas; raras vezes conversava em outra coisa, e apenas achava uma tangente caía logo no assunto predileto; pelo longo habito que tinha da matéria, entendia do riscado a palmo, e não havia procurador que a enganasse; sabia todos aqueles termos jurídicos e toda a marcha do processo de modo tal, que jurídicos lhe levava nisso a palma. Essa mania chegava nela à impertinência, e aborrecia desesperadamente a quem a ouvia, falando nos últimos provarás que lhe tinha feito o seu letrado nos autos da sua demanda de terras, nas razões finais que se tinham apresentado na ação que intentava contra um dos testamenteiros de seu pai, no depoimento das testemunhas no seu processo por causa da venda das suas casas, na citação que mandara fazer a um seu inquilino que lhe havia passado um crédito de 20 doblas e que agora negava a dívida, e em mil outras coisas deste gênero.
Apenas entrara o compadre, de quem era antiga amiga, e a quem não via há muito tempo, começou logo D. Maria por dar-lhe parte que aquela antiga demanda com o testamenteiro de seu pai ainda não estava acabada, e por aí ia já prosseguindo conforme seu costume, quando o compadre lhe apresentou o afilhado, e começou também a contar a sua história.
Começou ele pela origem do pequeno; remontou à pisadela e ao beliscão com que a Maria e o Leonardo tinham começado o seu namoro na viagem de Lisboa ao Rio de Janeiro, o que fez dar a D. Maria boas risadas. Passou em seguida à festa do batizado, que descreveu detalhadamente. Até aqui era o drama risonho e feliz; veio depois a tragédia; contou todas aquelas histórias da perfídia da Maria, dos ciúmes do Leonardo e da briga final, cujo resultado trouxera o pequeno às suas mãos.
D. Maria ouviu tudo com a maior atenção, e só interrompia ao compadre de vez em quando para lançar uma praga à Maria, manifestar compaixão pelo Leonardo, e dar alguma risada pelas travessuras do pequeno. Quando a conversa estava nesta altura, a vizinha dos maus agouros, que também já se achava presente, porém que até ali estivera distraída, chego-se para intervir na conversa, já se sabe, contra o pequeno. Referiu então alguma das suas graçolas, acrescentando sempre no fim de cada período e dirigindo-se ao compadre:
— O vizinho, por mais bem que lhe queira, não poderá negar isto...
O compadre, que no meio de tudo tinha sempre pintado a história do menino com cores muito favoráveis, não cessando de gabar a sua mansidão, boa índole, e dourando sempre as suas diabruras com o título de inocências, ingenuidades ou coisas de criança, começou a dar o cavaco com o desmentido que lhe dava a vizinha, que ao contrário dele pintava tudo com cores negras. A comadre interveio também nessa ocasião, porém conservando uma posição duvidosa: ora era da opinião do compadre, ora da opinião da vizinha.
D. Maria, que morria por conversa, e sobretudo por novidades, tomava o maior interesse na história, e ninguém se lembrava de que vez alguma tivesse ela esquecido por tanto tempo suas demandas.
O pequeno, sentado em um canto, ouvia tudo em silêncio observador. O compadre mal se podia conter, em respeito a D. Maria, com as invectivas da vizinha; esta, julgando-se segura na roda em que estava, desabafava largamente contra o menino. Finalmente terminou dirigindo-se a D. Maria, e dizendo na sua frase do costume:
— Então, senhora, é o que eu digo ou não? Tem maus bofes...
— Maus bofes, atalhou o compadre já com a calva muito vermelha, maus bofes? ora esta...
O pequeno lançou do seu lugar à vizinha um olhar fulminante, e que queria pouco mais ou menos dizer:
— Deixa estar que esta não fica sem troco.
D. Maria, vendo que o compadre começava a exasperar-se, fez-se medianeira, e disse dirigindo-se à vizinha:
— Você tem-lhe raiva demais; realmente a função da cera na mantilha é para dar o cavaco, porém, bem diz o mestre: qual é a criança que não faz travessuras? Isto tudo há de passar com a idade.
Dirigindo-se depois ao pequeno.
— Venha cá, Sr. travesso, disse-lhe com bondade, venha defender-se do que aqui estão dizendo a seu respeito.
O menino chegou-se com um ar entre vexado e capadoçal, colocou-se em pé entre a madrinha e a vizinha.
D. Maria fez-lhe então algumas perguntas, a que ele respondeu com prontidão, porém com mau modo. A vizinha não se julgou muito em segurança com tão bom vizinho a seu lado, e foi querendo levantar-se. O menino, percebendo isto, não quis perder ocasião de fazer o que quer que fosse de maligno contra ela; estendeu a ponta do pé, e pisou-lhe com toda a força na barra da saia preta que ela conservava tendo tirado a mantilha. A vizinha, vendo-lhe o gesto, sem entender bem o que era, percebeu que ele preparava alguma, e quis levantar-se rapidamente: lá se foram alguns quatro palmos da barra da saia.
— Ah! disse o menino fingindo-se espantado...
— Valha-te, Deus, menino! disse a comadre.
A vizinha contemplava a sua saia rota, dizendo para os circunstantes:
— Então é o que eu digo, ou não? Tem maus bofes!...
O compadre sorria-se disfarçadamente vendo a vingança que o menino tomava do que a vizinha acabava de dizer.
— Ora, disse afinal D. Maria com ar de quem não estava muito certa do que dizia, ele estava descuidado, não foi por querer...
O menino foi sentar-se, e a conversa prosseguiu.
Chegou-se ao ponto do destino que o padrinho queria dar ao afilhado, e, segundo era costume, começou logo grande divergência entre o compadre e a comadre; esta não falava senão na Conceição, e aquele não falava senão em Coimbra.
D. Maria, solicitada a dar a sua opinião, disse:
— Pois olhem, se fosse comigo, eu havia de pô-lo em um cartório, e havia de fazer dele um bom procurador de causas.
— Oh! não, respondeu o compadre; perdoe-me, Sra. D. Maria, perdoe-me se lhe ofendo com isso, mas eu tenho uma birra dos diabos com as tais demandas...
— Pois olhe, não tem razão; elas dão-me que fazer, mas eu já estou acostumada. Por exemplo, aquela demanda das terras, isto tem sido um nunca acabar; os herdeiros do meu compadre João Bernardo, que ainda não estavam habilitados em juízo, mandaram-me aqui citar...
E por aí continuava, sem que ninguém soubesse onde pararia, quando felizmente teve de interromper-se porque a procissão aproximava-se, e todos correram às janelas.
Isto deu fim à conversa, começou a desfilar a procissão, que realmente fazia bonito efeito, sobretudo vista da casa de D. Maria, que era, e tínhamos esquecido esta circunstância, na mesma rua dos Ourives: as luzes das tochas refletidas nos galões das armações das portas e nas tabuletas cheias de ouro e prata em obra, com que os ourives nesse dia costumavam ornar os intervalos de suas casas, tinham um aspecto de muita riqueza e luxo, ainda que de mau gosto. De tudo que levava a procissão, o que mais mereceu as honras do agrado dos devotos foi o rancho das Baianas que o leitor já conhece, e o sacrifício de Abraão, que ia representado ao vivo.
Caminhava adiante um menino com um feixe de lenha aos ombros, representando Isaac: logo atrás dele um latagão vestido com um traje extravagante, com uma enorme espada de pau suspensa sobre a cabeça do menino; era Abraão; um pouco mais atrás um anjo, suspendendo o furibundo gládio por uma fita de 3 ou 4 varas de comprimento.
Terminada a procissão, retiravam-se os convidados.
Ao sair o compadre com o pequeno, D. Maria chegou-se a ele, e disse-lhe significativamente:
— Apareça, que temos que conversar a respeito do pequeno...
Já se vê que o menino não era dos mais infelizes, pois que, se tinha inimigos, achava também protetores por toda parte. Para diante os leitores verão o papel que D. Maria representará nesta história.

XVIII - Amores  
Os leitores devem já estar fatigados de histórias de travessuras de criança; já conhecem suficientemente o que foi o nosso memorando em sua meninice, as esperanças que deu, e o futuro que prometeu. Agora vamos saltar por cima de alguns anos, e vamos ver realizadas algumas dessas esperanças. Agora começam histórias, se não mais importantes, pelo menos um pouco mais sisudas.
Como sempre acontece a quem tem muito onde escolher, o pequeno, a quem o padrinho queria fazer clérigo mandando-o a Coimbra, a quem a madrinha queria fazer artista metendo-o na Conceição, a quem D. Maria queria fazer rábula arranjando-o em algum cartório, e a quem enfim cada conhecido ou amigo queria dar um destino que julgava mais conveniente às inclinações que nele descobria, o pequeno, dizemos, tendo tantas coisas boas, escolheu a pior possível: nem foi para Coimbra, nem para a Conceição, nem para cartório algum; não fez nenhuma destas coisas, nem também outra qualquer: constituiu-se um completo vadio, vadio-mestre, vadio-tipo.
O padrinho desesperava com isso vinte vezes em cada dia por ver frustrado seu belo sonho, porém não se animava mais a contrariar o afilhado, e deixava-o ir à sua vontade.
A comadre tinha conseguido o seu fim, pelo que diz respeito à sobrinha; tanto fizera, que o Leonardo, pilhando a cigana em nova infidelidade, resolveu-se... e arranjou-se... Dessa época começou ele a viver sossegado: o vento da idade começava a apagar-lhe as flamas de ternura.
D. Maria envelhecera sofrivelmente, porém não perdera de modo nenhum a sua mania favorita das demandas: a última que tivera foi talvez a mais tivera a mais razoável de todas. Teve por causa a tutoria de uma sua sobrinha que ficara órfã por morte de um seu irmão. Este irmão tinha um compadre que não gozava de boa reputação: ora, tendo a órfã ficado senhora de alguns mil cruzados que deixara seu pai, ainda que este não tivesse feito testamento, por ser ela filha única e legítima, o compadre apresentou-se pretendendo ser seu tutor.
D. Maria, percebendo o caso, apresentou-se também, e afinal venceu: foi nomeada tutora, e veio-lhe a sobrinha para casa: ela estimou isso, tanto mais que a sua idade já a fazia precisar, ainda não de um apoio, porém de uma companhia.
As mais personagens continuaram no mesmo estado.
Daqui em diante trataremos o nosso memorando pelo seu nome de batismo: não nos ocorre se já dissemos que ele tinha o nome do pai; mas se o não dissemos, fique agora dito. E para que se possa saber quando falamos do pai e quando do filho, daremos a este o nome do Leonardo, e acrescentaremos o apelido de pataca, já muito vulgarizado nesse tempo, quando quisermos tratar daquele.
Leonardo havia pois chegado à época em que os rapazes começam a notar que o seu coração palpita mais forte e mais apressado, em certas ocasiões, quando se encontra com certa pessoa, com quem, sem saber por quê, se sonha umas poucas de noites seguidas, e cujo nome se acode continuadamente a fazer cócegas nos lábios.
Já dissemos que D. Maria tinha agora em casa sua sobrinha: o compadre, como a própria D. Maria lhe pedira, continuou a visitá-la, e nessas visitas passavam longo tempo em conversas particulares. Leonardo acompanhava sempre o seu padrinho e fazia diabruras pela casa enquanto estava em idade disso, e depois que lhes perdeu o gosto, sentava-se em um canto e dormia de aborrecimento.
Disso resultou que detestava profundamente as visitas, e que só se sujeitava a elas obrigado pelo padrinho.
Em uma das últimas vezes que foram à casa de D. Maria, esta, assim que os viu entrar, dirigiu-se ao compadre e disse-lhe muito contente:
— Ora, afinal venci a minha campanha... veio ontem para o meu poder a menina... O tal velhaco do compadre de meu irmão não levou a sua avante.
— Muitos parabéns, muitos parabéns! respondeu o compadre.
Leonardo deu pouca atenção a isso; há muito tempo que ouvia falar da tal sobrinha; sentou-se a um canto, e começou a bocejar como de costume.
Depois de mais algumas palavras trocadas entre os dois, D. Maria chamou por sua sobrinha, e esta apareceu. Leonardo lançou-lhe os olhos, e a custo conteve o riso. Era a sobrinha de D. Maria já muito desenvolvida, porém que, tendo perdido as graças de menina, ainda não tinha adquirido a beleza de moça: era alta, magra, pálida: andava com o queixo enterrado no peito, trazia as pálpebras sempre baixas, e olhava a furto; tinha os braços finos e compridos; o cabelo, cortado, dava-lhe apenas até o pescoço, e como andava mal penteada e trazia a cabeça sempre baixa, uma grande porção lhe caía sobre a testa e olhos, como uma viseira. Trajava nesse dia um vestido de chita roxa muito comprido, quase sem roda, e de cintura muito curta; tinha ao pescoço um lenço encarnado de Alcobaça.
Por mais que o compadre a questionasse, apenas murmurou algumas frases ininteligíveis com voz rouca e sumida. Mal a deixaram livre, desapareceu sem olhar para ninguém. Vendo-a ir-se, Leonardo tornou a rir-se interiormente.
Quando se retiraram, riu-se ele pelo caminho à sua vontade. O padrinho indagou a causa da sua hilaridade; respondeu-lhe que não se podia lembrar da menina sem rir-se.
— Então lembras-te dela muito a miúdo, porque muito a miúdo te ris.
Leonardo viu que esta observação era verdadeira.
Durante alguns dias umas poucas de vezes falou na sobrinha da D. Maria; e apenas o padrinho lhe anunciou que teriam de fazer a visita do costume, sem saber por quê, pulou de contente, e, ao contrário dos outros dias, foi o primeiro a vestir-se e dar-se por pronto.
Saíram e encaminharam-se para o seu destino.

XIX - Domingo do Espírito Santo              
Era esse dia domingo do Espírito Santo. Como todos sabem, a festa do Espírito Santo é uma das festas prediletas do povo fluminense. Hoje mesmo que se vão perdendo certos hábitos, uns bons, outros maus, ainda essa festa é motivo de grande agitação; longe porém está o que agora se passa daquilo que se passava nos tempos a que temos feito remontar os leitores. A festa não começava no domingo marcado pela folhinha, começava muito antes, nove dias cremos, para que tivesse lugar as novenas. O primeiro anúncio da festa eram as Folias. Aquele que escreve estas Memórias ainda em sua infância teve ocasião de ver as Folias, porém foi já no seu último grau de decadência, e tanto que só as crianças como ele davam-lhe atenção e achavam nelas prazer; os mais, se delas se ocupavam, era unicamente para lamentar a diferença que faziam das primitivas. O que dantes se passava, bem encarado, não estava muito longe de merecer censura; porém era costume, e ninguém vá lá dizer a alguma velha desse tempo que aquilo devia ser por força muito feio, porque leva uma risada na cara, e ouve uma tremenda filípica contra as nossas festas de hoje.
Entretanto digamos sempre o que eram as Folias desse tempo, apesar de que os leitores o saberão pouco mais ou menos. Durante os 9 dias que precediam ao Espírito Santo, ou mesmo não sabemos se antes disso, saía pelas ruas da cidade um rancho de meninos, todos de 9 a 11 anos, caprichosamente vestidos à pastora: sapatos de cor-de-rosa, meias brancas, calção da cor do sapato, faixas à cintura, camisa branca de longos e caídos colarinhos, chapéus de palha de abas largas, ou forrados de seda, tudo isto enfeitado com grinaldas de flores, e com uma quantidade prodigiosa de laços de fita encarnada. Cada um destes meninos levava um instrumento pastoril em que tocavam, pandeiro, machete e tamboril. Caminhavam formando um quadrado, no meio do qual ia o chamado imperador do Divino, acompanhados por uma música de barbeiros, e precedidos e cercados por uma chusma de irmãos de opa levando bandeiras encarnadas e outros emblemas, os quais tiravam esmolas enquanto eles cantavam e tocavam.
O imperador, como dissemos, ia no meio: ordinariamente era um menino mais pequeno que os outros, vestido de casaca de veludo verde, calção de igual fazenda e cor, meias de seda, sapatos afivelados, chapéu de pasta, e um enorme e rutilante emblema do Espírito Santo ao peito: caminhava pausadamente e com ar grave.
Confessem os leitores se não era coisa deveras extravagante ver-se um imperador vestido de veludo e seda, percorrendo as ruas cercado por um rancho de pastores, ao toque de pandeiro e machete. Entretanto, apenas se ouvia ao longe a fanhosa música dos barbeiros, tudo corria à janela para ver passar a Folia: os irmãos aproveitavam-se do ensejo, e iam colhendo esmolas de porta em porta.
Enquanto caminhava o rancho tocava a música de barbeiros; quando parava, os pastores, acompanhando-se com seus instrumentos, cantavam; as cantigas eram pouco mais ou menos no gênero e estilo desta:

    O Divino Espírito Santo
    É um grande folião,
    Amigo de muita carne,
    Muito vinho e muito pão.

Eis aí o que era a Folia, eis aí o que o compadre e o afilhado encontraram no caminho.
A este episódio da Folia seguiam-se outros de que vamos em breve dar conta aos leitores. Por agora porém voltemos aos nossos visitantes.
Chegaram eles à casa de D. Maria, e acharam ainda todos à janela, porque acabava de passar a Folia. D. Maria recebeu-os com a sua costumada amabilidade. Leonardo ao entrar lançou logo os olhos para a sobrinha de D. Maria; porém, sem saber por quê, não teve desta vez mais vontade de rir-se; entretanto a menina continuava a ser feia e esquisita; nesse dia estava ainda pior do que nos outros. D. Maria tinha tido pretensões de asseá-la; vestira-lhe um vestido branco muito curto, pusera-lhe um lenço de seda encarnado ao pescoço e penteara-a de bugres. Por isso, agora que tendo ela tirado a costumada viseira de cabelos, lhe podemos ver o rosto, digamos, em abono da verdade, que se estava nesse dia mais esquisita quanto ao todo, podia-se-lhe notar que não era tão feia de cara como a princípio pareceu.
O caso foi que o Leonardo começou a olhar para ela sem mais vontade de rir-se; olhou uma, duas, três, quatro, muitas vezes enfim, sem que nunca satisfizesse ao que ele interiormente chamava curiosidade de apreciar aquela figura.
A menina por sua parte continuava no seu inalterável silêncio e concentração, de olhos baixos e queixo no peito. Entretanto quem tivesse hábito de observador fino poderia ter visto algum levantar de pálpebras rápido, e algum olhar fugaz dirigido para o lado do Leonardo.
D. Maria e o compadre conversaram segundo o seu costume.
Na ocasião da saída, D. Maria, dirigindo-se ao compadre, disse-lhe:
— Olhe, escute: nós hoje vamos ao Campo ver o fogo, bem podíamos ir todos juntos; que diz?
— Sim, podíamos, respondeu o compadre: eu tinha de ir só com o meu rapaz; mas uma vez que me oferece, iremos todos juntos. E leva a senhora a sua menina, não é?
— Oh! levo, coitada; ela nunca viu o fogo; no tempo do pai nunca saía...
Sem pensar, o Leonardo estremeceu de contente: pareceu-lhe que desse modo teria mais ocasião de satisfazer a sua curiosidade. A menina nem se mexeu; pareceu-lhe aquilo absolutamente indiferente.
— Pois então estamos ajustados, acrescentou o compadre, e à noite cá as viremos buscar.
E saíram.

Wednesday, 18 December 2019

Good Readings: "Leito de Folhas Verdes" by Gonçalves Dias (in Portuguese)

Por que tardas, Jatir, que tanto a custo
À voz do meu amor moves teus passos?
Da noite a viração, movendo as folhas,
Já nos cimos do bosque rumoreja.

Eu sob a copa da mangueira altiva
Nosso leito gentil cobri zelosa
Com mimoso tapiz de folhas brandas,
Onde o frouxo luar brinca entre flores.

Do tamarindo a flor abriu-se, há pouco,
Já solta o bogari mais doce aroma!
Como prece de amor, como estas preces,
No silêncio da noite o bosque exala.

Brilha a lua no céu, brilham estrelas,
Correm perfumes no correr da brisa,
A cujo influxo mágico respira-se
Um quebranto de amor, melhor que a vida!

A flor que desabrocha ao romper d'alva
Um só giro do sol, não mais, vegeta:
Eu sou aquela flor que espero ainda
Doce raio do sol que me dê vida.

Sejam vales ou montes, lago ou terra,
Onde quer que tu vás, ou dia ou noite,
Vai seguindo após ti meu pensamento;
Outro amor nunca tive: és meu, sou tua!

Meus olhos outros olhos nunca viram,
Não sentiram meus lábios outros lábios,
Nem outras mãos, Jatir, que não as tuas
A arazóia na cinta me apertaram.

Do tamarindo a flor jaz entreaberta,
Já solta o bogari mais doce aroma
Também meu coração, como estas flores,
Melhor perfume ao pé da noite exala!

Não me escutas, Jatir! nem tardo acodes
À voz do meu amor, que em vão te chama!
Tupã! lá rompe o sol! do leito inútil
A brisa da manhã sacuda as folhas!