XVI - Sucesso do Plano
Para
sossegarmos os leitores, que estarão sem dúvida com cuidado no mestre-de-cerimônias,
apressamo-nos a dizer que não chegou ele a ir à cadeia; o Vidigal quis dar-lhe
apenas uma amostra do pano, e depois de o ter exposto na casa da guarda por
algumas horas, como já acontecera ao Leonardo, à vistoria pública, o deixou ir
embora envergonhado, abatido, maldizendo a idéia que tivera de ir assistir de
dentro do quarto à festa dos anos da sua amásia. Quanto ao Leonardo, não cabia
em si de contente; por pouco que a sua vingança não tinha sido completa: vira o
seu rival, como já a ele próprio sucedera, preso pelos granadeiros, levado à
casa da guarda, sofrendo aí a vistoria dos curiosos; faltara, é verdade, a sova
e os dias de cadeia, porém também ele era um simples meirinho, e o
mestre-de-cerimônias um sacerdote respeitado, e por isso qualquer coisa bastava
para feri-lo gravemente.
Além
disto o mestre-de-cerimônias, depois de graves meditações, sabendo que ficara
malvisto de seus companheiros pelo escândalo que dera, se bem que fosse certo
não estar nenhum deles a tal respeito em circunstâncias de lhe atirar a
primeira pedra, ouvindo um murmúrio surdo que se levantava ameaçando-o com a
perda do lugar que exercia na Sé, decidiu-se a abandonar a cigana, e assim o
fez. Com isto o Leonardo deu-se de todo por satisfeito, e renasceram-lhe as esperanças
de conquistar o antigo posto, uma vez que o principal inimigo o tinha
abandonado. A cigana, desprezada, não quereria sem dúvida ficar por muito tempo
devoluta; e como ele se achava com requerimento em caixa, e contava serviços
atrasados, era provável que obtivesse favorável despacho, porque também ela
ainda nem sonhava que tudo o que tinha sucedido pudesse ter sido obra sua.
Começou
pois o sentimental Leonardo a rondar a porta da sua antiga amante: se a via na
janela, ora parava na esquina a dirigir-lhe olhares suplicantes; passando por
junto dela deixava ora escapar um magoadíssimo suspiro ou uma queixa
amargurada.
Todas
estas cenas, desempenhadas por aquela figura do Leonardo, alto, corpulento,
avermelhado, vestido de casaca, calção e chapéu armado, eram tão cômicas, que
toda a vizinhança se divertiu com elas por alguns dias. Alguns imprudentes
começaram, conversando das janelas, a atirar indiretas à cigana; esta picou-se
com isso, e foi essa a fortuna do Leonardo. Um dia que ele passou deu-lhe ela
de olho que entrasse.
O
Leonardo teve uma sensação inexplicável; seu rosto coloriu-se em todos os tons,
desde o vermelho, que era sua cor habitual, até o roxo enegrecido; depois
baixou gradualmente até a palidez marmórea; caminhando do lugar onde estava até
à porta da cigana, não sentiu o solo debaixo de seus pés; quando deu acordo de
si estava com os olhos rasos d’água nos braços da antiga amada que lhe pedia
mil perdões, que prometia ser dali em diante fiel até à morte, se bem que se
não esquecia de declarar no meio de tudo que se o recebia de novo em sua casa
era porque queria quebrar a castanha na boca daquelas más-línguas da vizinhança
que se estavam metendo com a sua vida. O pobre homem não cabia em si; parecia
um viajante que volta aos velhos lares, ou um cabo-de-guerra que acaba de
livrar do poder do inimigo uma praça sitiada. Enfim reataram-se de todo os
afrouxados laços.
O
Leonardo caiu em dar parte aos seus companheiros que tinha afinal vencido a
intrincada demanda; custou-lhe isto uma tremenda caçoada de todos, e sérias
repreensões de alguns. Mas com coisa alguma se importava naquela ocasião: a
felicidade o cegava a ponto de não ver aquilo que lhe estava entrando pelos
olhos.
A
comadre, apenas soube do que havia sucedido, foi procurar o Leonardo, e começou
em um longo sermão a querer persuadi-lo que tinha dado um passo errado.
— Pois,
compadre, disse-lhe ela, você não se emendou ainda!...
— Qual,
história, eu sou doido por estas coisas.
— Mas,
homem, você não se tem dado bem nem com as saloias nem com as ciganas; para que
antes não procura uma filha cá da terra?...
A
comadre tinha uma sobrinha que vivia em sua companhia, e que lhe pesava
sofrivelmente sobre as costas; desde há muito nutria por isso uma idéia de que
o leitor mais tarde terá conhecimento quando ela se realizar, ou antes disso,
se a perceber pelas palavras da comadre.
— Nada,
não gosto desta gente..
— Não
tem razão; há por aí muita rapariga capaz; é verdade que o que elas querem é o
toma lá, dá cá debaixo do arco-cruzeiro...
— É por
isso mesmo que eu não gosto.
Depois
de algumas outras tentativas a comadre retirou-se um pouco contrariada, mas não
de todo desanimada; ela contava com a cigana para ajudá-la a realizar o seu
plano, e o leitor verá para diante que tinha nisso razão.
Quanto
ao nosso ex-sacristão, continuava ainda a estar sem destino, o que sobremaneira
incomodava ao compadre, mas que nem por isso o desanimava. Coimbra era a sua
idéia fixa, e nada lha arrancava da cabeça. Até o próprio velho tenente-coronel
já lhe tinha ido pessoalmente falar por solicitações da comadre, porém nada
conseguira. Exasperado com essa obstinação deixara o negócio de parte, e não se
importara mais com coisa alguma.
XVII - D. Maria
Um dia
de procissão foi sempre nesta cidade um dia de grande festa, de lufa-lufa, de
movimento e de agitação; e se ainda é hoje o que os nossos leitores bem sabem,
na época em que viveram as personagens desta história a coisa subia de ponto;
enchiam-se as ruas de povo, especialmente de mulheres de mantilha; armavam-se
as casas, penduravam-se às janelas magníficas colchas de seda, de damasco de
todas as cores, e armavam-se coretos em quase todos os cantos. E quase tudo o
que ainda hoje se pratica, porém em muito maior escala e grandeza, porque era
feito por fé, como dizem as velhas desse bom tempo, porém nós diremos, porque
era feito por moda: era tanto do tom enfeitar as janelas e portas em dias de
procissão, ou concorrer de qualquer outro modo para o brilhantismo das
festividades religiosas, como ter um vestido de mangas de presunto, ou trazer à
cabeça um formidável trepa-moleque de dois palmos de altura.
Nesse
tempo as procissões eram multiplicadas, e cada qual buscava ser mais rica e
ostentar maior luxo: as da quaresma eram de uma pompa extraordinária,
especialmente quando el-rei se dignava acompanhá-las, obrigando toda a corte a
fazer outro tanto: a que primava porém entre todas era a chamada procissão dos
ourives. Ninguém ficava em casa no dia em que ela saia, ou na rua ou nas casas
dos conhecidos e amigos que tinham a ventura de morar em lugar por onde ela
passasse, achavam todos meio de vê-la. Alguns haviam tão devotos, que não se
contentavam vendo-a uma só vez; andavam de casa deste para a casa daquele,
desta rua para aquela, até conseguir vê-la desfilar de principio a fim duas,
quatro e seis vezes, sem o que não se davam por satisfeitos. A causa principal
de tudo isto era, supomos nós, além talvez de outras, o levar esta procissão
uma coisa que não tinha nenhuma das outras: o leitor há de achá-la sem dúvida
extravagante e ridícula; outro tanto nos acontece, mas temos obrigação de
referi-la. Queremos falar de um grande rancho chamado das-Baianas,-que
caminhava adiante da procissão, atraindo mais ou tanto como os santos, os
andores, os emblemas sagrados, os olhares dos devotos; era formado esse rancho
por um grande número de negras vertidas à moda da província da Bahia, donde lhe
vinha o nome, e que dançavam nos intervalos dos Deo-gratias uma dança lá a seu
capricho. Para falarmos a verdade, a coisa era curiosa: e se não a empregassem
como primeira parte de uma procissão religiosa, certamente seria mais
desculpável. Todos conhecem o modo por que se vestem as negras na Batia; é um
dos modos de trajar mais bonito que temos visto, não aconselhamos porém que
ninguém o adote; um país em que todas as mulheres usassem desse traje,
especialmente se fosse desses abençoados em que elas são alvas e formosas,
seria uma terra de perdição e de pecados. Procuremos descrevê-lo.
As
chamadas Baianas não usavam de vestido; traziam somente umas poucas de saias
presas à cintura, e que chegavam pouco abaixo do meio da perna, todas elas
ornadas de magníficas rendas; da cintura para cima apenas traziam uma finíssima
camisa, cuja gola e mangas eram também ornadas de renda; ao pescoço punham um
cordão de ouro ou um colar de corais, os mais pobres eram de miçangas; ornavam
a cabeça com uma espécie de turbante a que davam o nome de trunfas, formado por
um grande lenço branco muito teso e engomado; calçavam umas chinelinhas de
salto alto, e tão pequenas, que apenas continham os dedos dos pés, ficando de
fora todo o calcanhar; e além de tudo isto envolviam-se graciosamente em uma
capa de pano preto, deixando de fora os braços ornados de argolas de metal
simulando pulseiras.
Poucos
dias depois dos últimos acontecimentos narrados nos capítulos antecedentes,
chegou o dia da procissão dos ourives. Os nossos costumes nesse tempo a
respeito de franqueza e hospitalidade não eram lá muito louváveis; nesse dia
porém sofriam uma exceção, e, como dissemos, as portas daqueles que moravam nas
ruas por onde passava a procissão se abriam a todos os amigos e conhecidos. Em
virtude disso aconteceu que se achassem reunidos em casa de uma certa D. Maria
o compadre acompanhado do afilhado (ricamente vestido nesse dia com o seu
robissão de duraque preto e o seu boné de pêlo de lontra), a comadre e a
vizinha dos maus agouros.
D.
Maria era uma mulher velha, muito gorda; devia ter sido muito formosa no seu
tempo, porém dessa formosura só lhe restavam o rosado das faces e alvura dos
dentes; trajava nesse dia o seu vestido branco de cintura muito curta e mangas
de presunto, o seu lenço também branco e muito engomado ao pescoço; estava
penteada de bugres, que eram dois grossos cachos caídos sobre as fontes; o
amarrado do cabelo era feito na coroa da cabeça, de maneira que simulava um
penacho. D. Maria tinha bom coração, era benfazeja, devota e amiga dos pobres,
porém em compensação destas virtudes tinha um dos piores vícios daquele tempo e
daqueles costumes: era a mania das demandas. Como era rica, D. Maria alimentava
este vício largamente; as suas demandas eram o alimento da sua vida; acordada
pensava nelas, dormindo sonhava com elas; raras vezes conversava em outra coisa,
e apenas achava uma tangente caía logo no assunto predileto; pelo longo habito
que tinha da matéria, entendia do riscado a palmo, e não havia procurador que a
enganasse; sabia todos aqueles termos jurídicos e toda a marcha do processo de
modo tal, que jurídicos lhe levava nisso a palma. Essa mania chegava nela à
impertinência, e aborrecia desesperadamente a quem a ouvia, falando nos últimos
provarás que lhe tinha feito o seu letrado nos autos da sua demanda de terras,
nas razões finais que se tinham apresentado na ação que intentava contra um dos
testamenteiros de seu pai, no depoimento das testemunhas no seu processo por
causa da venda das suas casas, na citação que mandara fazer a um seu inquilino
que lhe havia passado um crédito de 20 doblas e que agora negava a dívida, e em
mil outras coisas deste gênero.
Apenas
entrara o compadre, de quem era antiga amiga, e a quem não via há muito tempo,
começou logo D. Maria por dar-lhe parte que aquela antiga demanda com o
testamenteiro de seu pai ainda não estava acabada, e por aí ia já prosseguindo
conforme seu costume, quando o compadre lhe apresentou o afilhado, e começou
também a contar a sua história.
Começou
ele pela origem do pequeno; remontou à pisadela e ao beliscão com que a Maria e
o Leonardo tinham começado o seu namoro na viagem de Lisboa ao Rio de Janeiro,
o que fez dar a D. Maria boas risadas. Passou em seguida à festa do batizado,
que descreveu detalhadamente. Até aqui era o drama risonho e feliz; veio depois
a tragédia; contou todas aquelas histórias da perfídia da Maria, dos ciúmes do
Leonardo e da briga final, cujo resultado trouxera o pequeno às suas mãos.
D.
Maria ouviu tudo com a maior atenção, e só interrompia ao compadre de vez em
quando para lançar uma praga à Maria, manifestar compaixão pelo Leonardo, e dar
alguma risada pelas travessuras do pequeno. Quando a conversa estava nesta
altura, a vizinha dos maus agouros, que também já se achava presente, porém que
até ali estivera distraída, chego-se para intervir na conversa, já se sabe, contra
o pequeno. Referiu então alguma das suas graçolas, acrescentando sempre no fim
de cada período e dirigindo-se ao compadre:
— O
vizinho, por mais bem que lhe queira, não poderá negar isto...
O
compadre, que no meio de tudo tinha sempre pintado a história do menino com
cores muito favoráveis, não cessando de gabar a sua mansidão, boa índole, e
dourando sempre as suas diabruras com o título de inocências, ingenuidades ou
coisas de criança, começou a dar o cavaco com o desmentido que lhe dava a
vizinha, que ao contrário dele pintava tudo com cores negras. A comadre
interveio também nessa ocasião, porém conservando uma posição duvidosa: ora era
da opinião do compadre, ora da opinião da vizinha.
D.
Maria, que morria por conversa, e sobretudo por novidades, tomava o maior
interesse na história, e ninguém se lembrava de que vez alguma tivesse ela
esquecido por tanto tempo suas demandas.
O
pequeno, sentado em um canto, ouvia tudo em silêncio observador. O compadre mal
se podia conter, em respeito a D. Maria, com as invectivas da vizinha; esta,
julgando-se segura na roda em que estava, desabafava largamente contra o
menino. Finalmente terminou dirigindo-se a D. Maria, e dizendo na sua frase do
costume:
—
Então, senhora, é o que eu digo ou não? Tem maus bofes...
— Maus
bofes, atalhou o compadre já com a calva muito vermelha, maus bofes? ora
esta...
O
pequeno lançou do seu lugar à vizinha um olhar fulminante, e que queria pouco
mais ou menos dizer:
— Deixa
estar que esta não fica sem troco.
D.
Maria, vendo que o compadre começava a exasperar-se, fez-se medianeira, e disse
dirigindo-se à vizinha:
— Você
tem-lhe raiva demais; realmente a função da cera na mantilha é para dar o
cavaco, porém, bem diz o mestre: qual é a criança que não faz travessuras? Isto
tudo há de passar com a idade.
Dirigindo-se
depois ao pequeno.
— Venha
cá, Sr. travesso, disse-lhe com bondade, venha defender-se do que aqui estão
dizendo a seu respeito.
O
menino chegou-se com um ar entre vexado e capadoçal, colocou-se em pé entre a
madrinha e a vizinha.
D.
Maria fez-lhe então algumas perguntas, a que ele respondeu com prontidão, porém
com mau modo. A vizinha não se julgou muito em segurança com tão bom vizinho a
seu lado, e foi querendo levantar-se. O menino, percebendo isto, não quis
perder ocasião de fazer o que quer que fosse de maligno contra ela; estendeu a
ponta do pé, e pisou-lhe com toda a força na barra da saia preta que ela
conservava tendo tirado a mantilha. A vizinha, vendo-lhe o gesto, sem entender
bem o que era, percebeu que ele preparava alguma, e quis levantar-se
rapidamente: lá se foram alguns quatro palmos da barra da saia.
— Ah!
disse o menino fingindo-se espantado...
—
Valha-te, Deus, menino! disse a comadre.
A
vizinha contemplava a sua saia rota, dizendo para os circunstantes:
— Então
é o que eu digo, ou não? Tem maus bofes!...
O
compadre sorria-se disfarçadamente vendo a vingança que o menino tomava do que
a vizinha acabava de dizer.
— Ora,
disse afinal D. Maria com ar de quem não estava muito certa do que dizia, ele
estava descuidado, não foi por querer...
O
menino foi sentar-se, e a conversa prosseguiu.
Chegou-se
ao ponto do destino que o padrinho queria dar ao afilhado, e, segundo era
costume, começou logo grande divergência entre o compadre e a comadre; esta não
falava senão na Conceição, e aquele não falava senão em Coimbra.
D.
Maria, solicitada a dar a sua opinião, disse:
— Pois
olhem, se fosse comigo, eu havia de pô-lo em um cartório, e havia de fazer dele
um bom procurador de causas.
— Oh!
não, respondeu o compadre; perdoe-me, Sra. D. Maria, perdoe-me se lhe ofendo
com isso, mas eu tenho uma birra dos diabos com as tais demandas...
— Pois
olhe, não tem razão; elas dão-me que fazer, mas eu já estou acostumada. Por
exemplo, aquela demanda das terras, isto tem sido um nunca acabar; os herdeiros
do meu compadre João Bernardo, que ainda não estavam habilitados em juízo,
mandaram-me aqui citar...
E por
aí continuava, sem que ninguém soubesse onde pararia, quando felizmente teve de
interromper-se porque a procissão aproximava-se, e todos correram às janelas.
Isto
deu fim à conversa, começou a desfilar a procissão, que realmente fazia bonito
efeito, sobretudo vista da casa de D. Maria, que era, e tínhamos esquecido esta
circunstância, na mesma rua dos Ourives: as luzes das tochas refletidas nos
galões das armações das portas e nas tabuletas cheias de ouro e prata em obra,
com que os ourives nesse dia costumavam ornar os intervalos de suas casas,
tinham um aspecto de muita riqueza e luxo, ainda que de mau gosto. De tudo que
levava a procissão, o que mais mereceu as honras do agrado dos devotos foi o
rancho das Baianas que o leitor já conhece, e o sacrifício de Abraão, que ia
representado ao vivo.
Caminhava
adiante um menino com um feixe de lenha aos ombros, representando Isaac: logo
atrás dele um latagão vestido com um traje extravagante, com uma enorme espada
de pau suspensa sobre a cabeça do menino; era Abraão; um pouco mais atrás um
anjo, suspendendo o furibundo gládio por uma fita de 3 ou 4 varas de
comprimento.
Terminada
a procissão, retiravam-se os convidados.
Ao sair
o compadre com o pequeno, D. Maria chegou-se a ele, e disse-lhe
significativamente:
—
Apareça, que temos que conversar a respeito do pequeno...
Já se
vê que o menino não era dos mais infelizes, pois que, se tinha inimigos, achava
também protetores por toda parte. Para diante os leitores verão o papel que D.
Maria representará nesta história.
XVIII - Amores
Os
leitores devem já estar fatigados de histórias de travessuras de criança; já
conhecem suficientemente o que foi o nosso memorando em sua meninice, as
esperanças que deu, e o futuro que prometeu. Agora vamos saltar por cima de
alguns anos, e vamos ver realizadas algumas dessas esperanças. Agora começam
histórias, se não mais importantes, pelo menos um pouco mais sisudas.
Como
sempre acontece a quem tem muito onde escolher, o pequeno, a quem o padrinho
queria fazer clérigo mandando-o a Coimbra, a quem a madrinha queria fazer artista
metendo-o na Conceição, a quem D. Maria queria fazer rábula arranjando-o em
algum cartório, e a quem enfim cada conhecido ou amigo queria dar um destino
que julgava mais conveniente às inclinações que nele descobria, o pequeno,
dizemos, tendo tantas coisas boas, escolheu a pior possível: nem foi para
Coimbra, nem para a Conceição, nem para cartório algum; não fez nenhuma destas
coisas, nem também outra qualquer: constituiu-se um completo vadio,
vadio-mestre, vadio-tipo.
O
padrinho desesperava com isso vinte vezes em cada dia por ver frustrado seu
belo sonho, porém não se animava mais a contrariar o afilhado, e deixava-o ir à
sua vontade.
A
comadre tinha conseguido o seu fim, pelo que diz respeito à sobrinha; tanto
fizera, que o Leonardo, pilhando a cigana em nova infidelidade, resolveu-se...
e arranjou-se... Dessa época começou ele a viver sossegado: o vento da idade
começava a apagar-lhe as flamas de ternura.
D.
Maria envelhecera sofrivelmente, porém não perdera de modo nenhum a sua mania
favorita das demandas: a última que tivera foi talvez a mais tivera a mais
razoável de todas. Teve por causa a tutoria de uma sua sobrinha que ficara órfã
por morte de um seu irmão. Este irmão tinha um compadre que não gozava de boa
reputação: ora, tendo a órfã ficado senhora de alguns mil cruzados que deixara
seu pai, ainda que este não tivesse feito testamento, por ser ela filha única e
legítima, o compadre apresentou-se pretendendo ser seu tutor.
D.
Maria, percebendo o caso, apresentou-se também, e afinal venceu: foi nomeada
tutora, e veio-lhe a sobrinha para casa: ela estimou isso, tanto mais que a sua
idade já a fazia precisar, ainda não de um apoio, porém de uma companhia.
As mais
personagens continuaram no mesmo estado.
Daqui
em diante trataremos o nosso memorando pelo seu nome de batismo: não nos ocorre
se já dissemos que ele tinha o nome do pai; mas se o não dissemos, fique agora
dito. E para que se possa saber quando falamos do pai e quando do filho,
daremos a este o nome do Leonardo, e acrescentaremos o apelido de pataca, já
muito vulgarizado nesse tempo, quando quisermos tratar daquele.
Leonardo
havia pois chegado à época em que os rapazes começam a notar que o seu coração
palpita mais forte e mais apressado, em certas ocasiões, quando se encontra com
certa pessoa, com quem, sem saber por quê, se sonha umas poucas de noites
seguidas, e cujo nome se acode continuadamente a fazer cócegas nos lábios.
Já
dissemos que D. Maria tinha agora em casa sua sobrinha: o compadre, como a
própria D. Maria lhe pedira, continuou a visitá-la, e nessas visitas passavam
longo tempo em conversas particulares. Leonardo acompanhava sempre o seu
padrinho e fazia diabruras pela casa enquanto estava em idade disso, e depois
que lhes perdeu o gosto, sentava-se em um canto e dormia de aborrecimento.
Disso
resultou que detestava profundamente as visitas, e que só se sujeitava a elas
obrigado pelo padrinho.
Em uma
das últimas vezes que foram à casa de D. Maria, esta, assim que os viu entrar,
dirigiu-se ao compadre e disse-lhe muito contente:
— Ora,
afinal venci a minha campanha... veio ontem para o meu poder a menina... O tal
velhaco do compadre de meu irmão não levou a sua avante.
—
Muitos parabéns, muitos parabéns! respondeu o compadre.
Leonardo
deu pouca atenção a isso; há muito tempo que ouvia falar da tal sobrinha;
sentou-se a um canto, e começou a bocejar como de costume.
Depois
de mais algumas palavras trocadas entre os dois, D. Maria chamou por sua
sobrinha, e esta apareceu. Leonardo lançou-lhe os olhos, e a custo conteve o
riso. Era a sobrinha de D. Maria já muito desenvolvida, porém que, tendo
perdido as graças de menina, ainda não tinha adquirido a beleza de moça: era
alta, magra, pálida: andava com o queixo enterrado no peito, trazia as
pálpebras sempre baixas, e olhava a furto; tinha os braços finos e compridos; o
cabelo, cortado, dava-lhe apenas até o pescoço, e como andava mal penteada e
trazia a cabeça sempre baixa, uma grande porção lhe caía sobre a testa e olhos,
como uma viseira. Trajava nesse dia um vestido de chita roxa muito comprido,
quase sem roda, e de cintura muito curta; tinha ao pescoço um lenço encarnado
de Alcobaça.
Por
mais que o compadre a questionasse, apenas murmurou algumas frases
ininteligíveis com voz rouca e sumida. Mal a deixaram livre, desapareceu sem
olhar para ninguém. Vendo-a ir-se, Leonardo tornou a rir-se interiormente.
Quando
se retiraram, riu-se ele pelo caminho à sua vontade. O padrinho indagou a causa
da sua hilaridade; respondeu-lhe que não se podia lembrar da menina sem rir-se.
— Então
lembras-te dela muito a miúdo, porque muito a miúdo te ris.
Leonardo
viu que esta observação era verdadeira.
Durante
alguns dias umas poucas de vezes falou na sobrinha da D. Maria; e apenas o
padrinho lhe anunciou que teriam de fazer a visita do costume, sem saber por
quê, pulou de contente, e, ao contrário dos outros dias, foi o primeiro a
vestir-se e dar-se por pronto.
Saíram
e encaminharam-se para o seu destino.
XIX - Domingo do Espírito Santo
Era
esse dia domingo do Espírito Santo. Como todos sabem, a festa do Espírito Santo
é uma das festas prediletas do povo fluminense. Hoje mesmo que se vão perdendo
certos hábitos, uns bons, outros maus, ainda essa festa é motivo de grande
agitação; longe porém está o que agora se passa daquilo que se passava nos
tempos a que temos feito remontar os leitores. A festa não começava no domingo
marcado pela folhinha, começava muito antes, nove dias cremos, para que tivesse
lugar as novenas. O primeiro anúncio da festa eram as Folias. Aquele que
escreve estas Memórias ainda em sua infância teve ocasião de ver as Folias,
porém foi já no seu último grau de decadência, e tanto que só as crianças como
ele davam-lhe atenção e achavam nelas prazer; os mais, se delas se ocupavam,
era unicamente para lamentar a diferença que faziam das primitivas. O que
dantes se passava, bem encarado, não estava muito longe de merecer censura;
porém era costume, e ninguém vá lá dizer a alguma velha desse tempo que aquilo
devia ser por força muito feio, porque leva uma risada na cara, e ouve uma
tremenda filípica contra as nossas festas de hoje.
Entretanto
digamos sempre o que eram as Folias desse tempo, apesar de que os leitores o
saberão pouco mais ou menos. Durante os 9 dias que precediam ao Espírito Santo,
ou mesmo não sabemos se antes disso, saía pelas ruas da cidade um rancho de
meninos, todos de 9 a 11 anos, caprichosamente vestidos à pastora: sapatos de
cor-de-rosa, meias brancas, calção da cor do sapato, faixas à cintura, camisa
branca de longos e caídos colarinhos, chapéus de palha de abas largas, ou
forrados de seda, tudo isto enfeitado com grinaldas de flores, e com uma
quantidade prodigiosa de laços de fita encarnada. Cada um destes meninos levava
um instrumento pastoril em que tocavam, pandeiro, machete e tamboril.
Caminhavam formando um quadrado, no meio do qual ia o chamado imperador do
Divino, acompanhados por uma música de barbeiros, e precedidos e cercados por
uma chusma de irmãos de opa levando bandeiras encarnadas e outros emblemas, os
quais tiravam esmolas enquanto eles cantavam e tocavam.
O
imperador, como dissemos, ia no meio: ordinariamente era um menino mais pequeno
que os outros, vestido de casaca de veludo verde, calção de igual fazenda e
cor, meias de seda, sapatos afivelados, chapéu de pasta, e um enorme e
rutilante emblema do Espírito Santo ao peito: caminhava pausadamente e com ar
grave.
Confessem
os leitores se não era coisa deveras extravagante ver-se um imperador vestido
de veludo e seda, percorrendo as ruas cercado por um rancho de pastores, ao
toque de pandeiro e machete. Entretanto, apenas se ouvia ao longe a fanhosa
música dos barbeiros, tudo corria à janela para ver passar a Folia: os irmãos
aproveitavam-se do ensejo, e iam colhendo esmolas de porta em porta.
Enquanto
caminhava o rancho tocava a música de barbeiros; quando parava, os pastores,
acompanhando-se com seus instrumentos, cantavam; as cantigas eram pouco mais ou
menos no gênero e estilo desta:
O Divino Espírito Santo
É um grande folião,
Amigo de muita carne,
Muito vinho e muito pão.
Eis aí
o que era a Folia, eis aí o que o compadre e o afilhado encontraram no caminho.
A este
episódio da Folia seguiam-se outros de que vamos em breve dar conta aos
leitores. Por agora porém voltemos aos nossos visitantes.
Chegaram
eles à casa de D. Maria, e acharam ainda todos à janela, porque acabava de
passar a Folia. D. Maria recebeu-os com a sua costumada amabilidade. Leonardo
ao entrar lançou logo os olhos para a sobrinha de D. Maria; porém, sem saber
por quê, não teve desta vez mais vontade de rir-se; entretanto a menina
continuava a ser feia e esquisita; nesse dia estava ainda pior do que nos
outros. D. Maria tinha tido pretensões de asseá-la; vestira-lhe um vestido
branco muito curto, pusera-lhe um lenço de seda encarnado ao pescoço e
penteara-a de bugres. Por isso, agora que tendo ela tirado a costumada viseira
de cabelos, lhe podemos ver o rosto, digamos, em abono da verdade, que se
estava nesse dia mais esquisita quanto ao todo, podia-se-lhe notar que não era
tão feia de cara como a princípio pareceu.
O caso
foi que o Leonardo começou a olhar para ela sem mais vontade de rir-se; olhou
uma, duas, três, quatro, muitas vezes enfim, sem que nunca satisfizesse ao que
ele interiormente chamava curiosidade de apreciar aquela figura.
A
menina por sua parte continuava no seu inalterável silêncio e concentração, de
olhos baixos e queixo no peito. Entretanto quem tivesse hábito de observador
fino poderia ter visto algum levantar de pálpebras rápido, e algum olhar fugaz
dirigido para o lado do Leonardo.
D.
Maria e o compadre conversaram segundo o seu costume.
Na
ocasião da saída, D. Maria, dirigindo-se ao compadre, disse-lhe:
— Olhe,
escute: nós hoje vamos ao Campo ver o fogo, bem podíamos ir todos juntos; que
diz?
— Sim,
podíamos, respondeu o compadre: eu tinha de ir só com o meu rapaz; mas uma vez
que me oferece, iremos todos juntos. E leva a senhora a sua menina, não é?
— Oh!
levo, coitada; ela nunca viu o fogo; no tempo do pai nunca saía...
Sem
pensar, o Leonardo estremeceu de contente: pareceu-lhe que desse modo teria
mais ocasião de satisfazer a sua curiosidade. A menina nem se mexeu;
pareceu-lhe aquilo absolutamente indiferente.
— Pois
então estamos ajustados, acrescentou o compadre, e à noite cá as viremos
buscar.
E
saíram.
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