Thursday, 26 December 2019

Thursday's Serial: "Memórias de um Sargento de Milícias" by Manuel Antônio de Almeida (in Portuguese) - V


XX - O Fogo no campo   
À hora determinada vieram os dois, padrinho e afilhado, buscar D. Maria e sua família, segundo haviam tratado: era pouco depois de ave-maria, e já se encontrava pelas ruas grande multidão de famílias, de ranchos de pessoas que se dirigiam uns para o Campo e outros para a Lapa, onde, como é sabido, também se festejava o Divino. Leonardo caminhava parecendo completamente alheio ao que se passava em roda dele; tropeçava e abalroava nos que encontrava; uma idéia única roía-lhe o miolo; se lhe perguntassem que idéia era essa, talvez mesmo o não soubesse dizer. Chegaram enfim mais depressa do que supusera o barbeiro, porque o Leonardo parecia naquela noite ter asas nos pés, tão rapidamente caminhara e obrigara o padrinho a caminhar com ele.
D. Maria estava já pronta e os esperava com algumas outras pessoas com quem também tratara ir de companhia, e em um momento puseram-se a caminho. Formavam todos um grande rancho acompanhado por não pequeno número de negras e negrinhas escravas e crias de D. Maria, que levavam cestos com comida e esteiras. D. Maria deu o braço ao compadre, e o mesmo fizeram as outras senhoras aos demais cavalheiros. Por gracejo D. Maria fez com que o Leonardo desse o braço a sua sobrinha; ele aceitou a incumbência com gosto, mas não sem ficar alguma coisa atrapalhado, e deu na pobre menina alguns encontrões, embaraçado por não saber se lhe daria a esquerda ou a direita; finalmente acertou, e deu-lhe a esquerda, ficando ele do lado da parede. Ofereceu-lhe o braço, porém Luisinha (tratemo-la desde já por seu nome) pareceu não entender o oferecimento ou não dar fé dele. Contentou-se pois o Leonardo em caminhar ao seu lado.
Assim chegaram ao Campo, que estava cheio de gente. Nesse tempo ainda se não usavam as barracas de bonecos, de sortes, de raridades e de teatros, como hoje: usavam-se apenas algumas que serviam de casas de pasto. Depois de passarem por diante delas, D. Maria e a sua gente se dirigiram para o Império. Luisinha estava atônita no meio de todo aquele movimento, diante daquele espetáculo que via pela primeira vez, pois era verdade o que dissera D. Maria: no tempo de seu pai raras ou nenhumas vezes saía de casa. Assim, sem o saber, parava algumas vezes embasbacada a olhar para qualquer coisa, e o Leonardo muitas vezes via-se forçado a puxar-lhe pelo braço para obrigá-la a prosseguir.
Chegaram ao Império, que era nesse tempo quase defronte da igreja de Sant’Ana, no lugar agora ocupado por uma das extremidades do quartel de Fuzileiros. Todos sabem o que é o Império, e por isso o não descreveremos. Lá estava na sua cadeira o imperador, que o leitor já viu passeando pela rua no meio de seus foliões. Luisinha, vendo-o, pôs-se nas pontas dos pés, esticou o pescoço, e encarou-o por muito tempo estática e absorta. O Leonardo vendo isto sentiu um não sei quê por dentro contra o menino que atraía a atenção de Luisinha, e passou-lhe pela mente o desejo louco de voltar atrás seis ou sete anos de sua existência, e ser também imperador do Divino.
Nas escadas do Império fazia-se leilão como ainda hoje, divertindo-se muito o povo ali apinhado com as graçolas pesadas do pregoeiro. Estiveram aí algum tempo entretidos os nossos conhecidos, e foram depois procurar no meio do Campo um lugar onde pudessem fazer alto para cear e ver o fogo. Acharam-no, não sem alguma dificuldade, pois que muitas outras famílias se haviam adiantado e tomado as melhores posições. Grande parte do Campo estava já coberta daqueles ranchos sentados em esteiras, ceando, conversando, cantando modinhas ao som de guitarra e viola. Fazia gosto passear por entre eles, e ouvir aqui a anedota que contava um conviva de bom gosto, ali a modinha cantada naquele tom apaixonadamente poético que faz uma das nossas raras originalidades, apreciar aquele movimento e animação que geralmente reinavam. Era essa a parte (permitam-nos a expressão) verdadeiramente divertida do divertimento.
Os nossos conhecidos sentaram-se com os outros em roda de suas esteiras, e começaram a cear. Leonardo, apesar das emoções novas que experimentava desde certo tempo, e principalmente naquela noite, nem por isso perdeu o apetite, e esqueceu-se por algum tempo de sua companheira para cuidar unicamente do seu prato. No melhor da ceia foram interrompidos pelo ronco de um foguete que subia: era o fogo que começava. Luisinha estremeceu, ergueu a cabeça, e pela primeira vez deixou ouvir sua voz, exclamando extasiada ao ver cair as lágrimas inflamadas do foguete que aclaravam todo o Campo:
— Olhe, olhe, olhe!...
Alguns dos circunstantes desataram a rir; o Leonardo deu o cavaco com aquelas risadas, e as achou muito fora de tempo. Felizmente Luisinha estava por tal maneira extasiada, que não deu atenção a coisa alguma, e enquanto duraram os foguetes não tirou os olhos do céu.
Aos foguetes seguiram-se, como sabem os leitores, as rodas. Nessa ocasião o êxtase da menina passou a frenesi; aplaudia com entusiasmo, erguia o pescoço por cima das cabeças da multidão, tinha desejos de ter duas ou três varas de comprido para ver tudo a seu gosto. Sem saber como, unia-se ao Leonardo, firmava-se com as mãos sobre os seus ombros para se poder sustentar mais tempo nas pontas dos pés, falava-lhe e comunicava-lhe a sua admiração! O contentamento acabou por familiarizá-la completamente com ele. Quando se atacou a lua, a sua admiração foi tão grande que, querendo firmar-se nos ombros de Leonardo, deu-lhe quase um abraço pelas costas. O Leonardo estremeceu por dentro, e pediu ao céu que a lua fosse eterna; virando o rosto, viu sobre seus ombros aquela cabeça de menina iluminada pelo clarão pálido do misto que ardia, e ficou também por sua vez extasiado; pareceu-lhe então o rosto mais lindo que jamais vira, e admirou-se profundamente de que tivesse podido alguma vez rir-se dela e achá-la feia.
Acabado o fogo, tudo se pôs em andamento, levantaram-se as esteiras, espalhou-se o povo. D. Maria e sua gente puseram-se também em marcha para casa, guardando a mesma disposição com que tinham vindo. Desta vez porém Luisinha e Leonardo, não é dizer que vieram de braço, como este último tinha querido quando foram para o Campo, foram mais adiante do que isso, vieram de mãos dadas muito familiar e ingenuamente. Este ingenuamente não sabemos se se poderá com razão aplicar ao Leonardo. Conversaram por todo o caminho como se fossem dois conhecidos muito antigos, dois irmãos de infância, e tão distraídos iam que passaram à porta da casa sem parar, e já estavam muito adiante quando os sios de D. Maria os fizeram voltar. A despedida foi alegre para todos e tristíssima para os dois. Entretanto, como sempre que se despedia, o compadre prometeu voltar, e isso serviu de algum alívio, especialmente ao Leonardo, que tomara tudo o que se acabava de passar mais em grosso.

XXI - Contrariedades     
Cremos, pelo que temos referido, que para nenhum dos leitores será ainda duvidoso que chegara ao Leonardo a hora de pagar o tributo de que ninguém escapa neste mundo, ainda que para alguns seja ele fácil e leve, e para outros pesado e custoso: o rapaz amava. É escusado dizer a quem.
Como é que a sobrinha de D. Maria, que a principio tanto desafiara a sua hilaridade por esquisita e feia, lhe viera depois a inspirar amor, é isso segredo do coração do rapaz que nos não é dado penetrar: o fato é que ele a amava, e isto nos basta. Convém lembrar que se pela sorte de um pai se pode augurar a de um filho, o Leonardo em matéria de amor não prometia decerto grande fortuna. E com efeito, logo depois da noite do fogo no Campo, em que as coisas começavam a tomar vulto, principiou a roda a desandar-lhe em quase todos os sentidos. Luisinha, uma vez extinto o entusiasmo que, suscitado pelas emoções que experimentara na noite do fogo, a acordara da sua apatia, voltara de novo ao seu antigo estado: e, como de tudo esquecida, na primeira visita que o barbeiro e o Leonardo fizeram a D. Maria depois desses acontecimentos, nem para este último levantara os olhos; conservara-se de cabeça baixa e olhos no chão.
Ora, para quem, como o Leonardo, levara depois daquela feliz noite a construir esses castelos de extravagante arquitetura com que sonhamos nos dias felizes do primeiro amor, isso foi já uma contrariedade sem nome; quando se viu assim tratado quase desatou a chorar; só o conteve o receio de não poder depois justificar o seu pranto com qualquer pretexto. A este primeiro movimento sucedeu-lhe um momento de calma, e depois cresceu-lhe por dentro uma chama de raiva, e esteve a ponto de chegar-se para a menina, desenterrar-lhe o queixo do peito, e chamá-la quatro ou cinco vezes de estúrdia e feia. Afinal cismou um pouco e murmurou um-que me importa!-que pretendia ser desprezo, e que não era senão despeito.
À primeira visita depois da noite do fogo seguiram-se muitas outras em que as coisas se passaram pouco mais ou menos do mesmo modo.
Um novo sucesso veio porém um dia dar outra cor e andamento aos sucessos; foi o encontro dos dois, padrinho e afilhado, em casa de D. Maria com uma personagem estranha a ambos. Era um conhecido de D. Maria que havia há pouco chegado de uma viagem à Bahia. Figure o leitor um homenzinho nascido em dias de maio, de pouco mais ou menos trinta e cinco anos de idade, magro, narigudo, de olhar vivo e penetrante, vestido de calção e meias pretas, sapatos de fivela, capote e chapéu armado, e terá idéia do físico do Sr. José Manuel, o recém-chegado. Quanto ao moral, se os sinais físicos não falham, quem olhasse para a cara do Sr. José Manuel assinava-lhe logo um lugar distinto na família dos velhacos de quilate. E quem tal fizesse não se enganava de modo algum; o homem era o que parecia ser. Se tinha alguma virtude, era a de não enganar pela cara. Entre todas as suas qualidades possuía uma que infelizmente caracterizava naquele tempo, e talvez que ainda hoje, positiva e claramente o fluminense, era a maledicência. José Manuel era uma crônica viva, porém crônica escandalosa, não só de todos os seus conhecidos e amigos, e das famílias destes, mas ainda dos conhecidos e amigos dos seus amigos e conhecidos e de suas famílias.
Debaixo do mais fútil pretexto tomava a palavra, e enfiava um discurso de duas horas sobre a vida de fulano ou de beltrano.
Por exemplo, conversando-se sobre qualquer objeto acontecia falar-se em D. Francisca Brites.
— Conheci muito D. Francisca Brites, atalhava imediatamente o incansável falador; era mulher de João Brites, filho bastardo do capitão Sanches; em tempo de casada diziam suas coisas dela, e a culpa tinha Pedro d’Aguiar, sujeito que não gozava de boa nota, principalmente depois que se meteu aí n’alhada de um testamento falso que atribuíram ao Lourenço da Cunha que, em abono da verdade, era bem capaz disso, pois era sujeito de mãos limpas. Foi até ele quem furtou de casa a filha de D. Úrsula, que foi moça de Francisco Borges, a quem deixou para seguir a Pedro Antunes, que por sinal lhe deu bem má vida. E também ela não devia esperar outra coisa dele, porque homem que se atreveu a fazer o que ele fez a três filhas que tinha, é capaz de tudo. Chegou a pôr pela porta fora com um pau as pobres moças depois de as ter espancado desapiedadamente. Entretanto uma delas foi bem feliz: achou aí um capitão de navio que tratou dela; as outras não, coitadas...
— Infelizes por quê? acudia por acaso algum dos circunstantes; elas casaram...
— Casaram, sim, é verdade, retorquia ele tomando novo fôlego, porém com que marido? Um tomava moafas de todo o tamanho, o outro gastou tudo quanto tinha no jogo. Conheci-os a ambos muito bem...
E por aí prosseguia e internava-se a perder de vista pela geração toda dos dois maridos, e era capaz de gastar nesse trabalho horas inteiras.
Desde o primeiro dia que o padrinho e o afilhado encontraram-se com José Manuel em casa de D. Maria, nenhum dos dois lhe ficou por certo querendo muito bem, e este não querer bem foi crescendo de dia em dia, especialmente pela parte do Leonardo. E o caso é que ele tinha razão; foi o instinto que o avisou de que ali havia um inimigo. Tão exagerados eram os afagos de José Manuel para com D. Maria, e tanto repartia ele esses afagos com Luisinha, que bem claro se deixou ver que havia neles fim oculto. Afinal o negócio aclarou-se. D. Maria era, como dissemos, rica e velha; não tinha outro herdeiro senão sua sobrinha; se morresse D. Maria, Luisinha ficaria arranjada, e como era muito criança e mostrava ser muito simples, era uma esposa conveniente a qualquer esperto que se achasse, como José Manuel, em disponibilidade; este pois fazia a corte à velha com intenções na sobrinha. Quando Leonardo, esclarecido pela sagacidade do padrinho, entrou no conhecimento destas coisas, ficou fora de si, e a idéia mais pacífica que teve foi que podia mui bem, quando fosse visitar D. Maria, munir-se de uma das navalhas mais afiadas de seu padrinho, e na primeira ocasião oportuna fazer de um só golpe em dois o pescoço de José Manuel. Porém teve de aplacar-se e ceder às admoestações do padrinho, que sabia de todos os seus sentimentos, e que os aprovava.

XXII - Aliança    
Se Leonardo se afligira do modo que acabamos de ver pelo contratempo que lhe sobreviera com o aparecimento e com as disposições de José Manuel, o padrinho não se incomodava menos com isso: vendo que o afilhado se fazia homem, e tendo decididamente abortado aquele seu gigantesco plano de mandá-lo a Coimbra, enxergava na sobrinha de D. Maria um meio de vida excelente para o seu rapaz. Verdade é que se lembrava de que D. Maria podia com muito justa razão, se as coisas continuassem do mesmo modo, quando chegasse o momento do desfecho das coisas, recusar sua sobrinha a um rapaz que não se ocupava em coisa alguma, e que não tinha futuro. Por este motivo muitas vezes instava com o afilhado para que ensaiasse na cara de algum freguês tolo entrar no ofício; porém este recusava-se obstinadamente. A comadre, quando alguma vez aparecia por casa do barbeiro, não cessava de insistir no seu antigo projeto de fazer o rapaz entrar para a Conceição. Uma ocasião em que nisso falou diante dele, custou-lhe a história uma forte sarabanda: o rapaz tomara gosto à vida de vadio, e por princípio algum queria deixá-la. E se em outras ocasiões estava ele desse humor, agora depois dos últimos acontecimentos, quando o amor e o ciúme lhe ocupavam a alma, não queria ouvir falar em semelhantes coisas; acreditava que a sua melhor ocupação devia consistir em dar cabo do rival que se lhe antepusera.
No meio de tudo isto pior era que José Manuel parecia adiantar-se cada vez mais; astuto como era, insinuava-se destramente no animo de D. Maria, e a cativava com atenções de toda a sorte. O compadre começou a banzar sobre o caso, e um dia veio-lhe uma idéia: era preciso pôr a comadre ao corrente do que se passava, e interessá-la no negócio; ela era bem capaz, se quisesse, de arcar com José Manuel, e pô-lo fora de combate; gozava boa fama de ter jeito para essas coisas. Com efeito mandou chamar a comadre e expôs-lhe tudo.
— Sim! respondeu ela ao ouvir a narração; o caso é este? pois está de cor o tal sujeito: hei de mostrar-lhe para quanto presto. Já hoje mesmo vou visitar a D. Maria.
Mal sabia José Manuel que tormenta se levantava contra ele. Há muito percebera ele que Leonardo e seu padrinho o não podiam tragar, e mesmo que tinham segundas tenções a respeito de Luisinha, porém nunca lhe passara pela mente que seria mister lutar com eles. Em breve teve de ver que se enganava. A comadre foi, como prometera, à casa de D. Maria, e achando lá José Manuel procurou fazer-se ostensivamente muito sua camarada, ainda que baixinho, e de vez em quando soltava perto de D. Maria algumas indiretas contra ele.
Quando José Manuel acabava de contar uma história com todos os detalhes costumados sobre a vida deste ou daquele, a comadre murmurava, por exemplo:
— Que língua! safa...
E com estas e outras ia pondo em relevo, sem parecer que tinha tal intenção, o caráter do adversário.
Além da qualidade de maldizente, José Manuel mentia com um descaro como raras vezes se encontra. D. Maria, amiga de novidades, e além disso muito crédula, comungava perfeitamente quanta peta lhe queria ele embutir. Uma das suas histórias mais comuns era a que ele intitulava-O naufrágio dos potes.-Acontecera-lhe na sua última viagem à Bahia, e ele a contava pelo modo seguinte:
—Estávamos quase a chegar ao ancoradouro; viajava ao lado do meu navio um enorme peru carregado unicamente de potes. De repente arma-se um temporal, que parecia vir o mundo abaixo; o vento era tão forte, que do mar, apesar da escuridão, viam-se contradançar no espaço as telhas arrancadas da cidade alta. Afinal quando já parecia tudo sossegado e começava a limpar o tempo, veio uma onda tão forte e em tal direção, que as duas embarcações esbarraram com toda a força uma contra a outra. Já muito maltratadas pelo temporal que acabavam de suportar, não puderam mais resistir, e abriram-se ambas de meio a meio: o navio vazou toda a sua carga e passageiros, e o peru toda a sua carregação de potes; ficou o mar coalhado deles, em tão grande quantidade os havia! Os marinheiros e outros passageiros trataram de agarrar-se a tábuas, caixões e outros objetos para se salvarem; porém o único que se escapou fui eu, e isso devo à feliz lembrança que tive; do pedaço do navio em que tinha ficado dei um salto sobre o pote que boiava mais perto. Com o meu peso o pote mergulhou, e enchendo-se d’água desapareceu debaixo de meus pés; porém isto não teve lugar antes que eu, percebendo o que ia acontecer, não saltasse imediatamente deste pote para outro. A este outro e a todos os mais aconteceu a mesma coisa, porém servi-me do mesmo meio, e assim, como a força das ondas os impelia para a praia, vim de pote em pote até à terra sem o menor acidente!"
Como esta contava José Manuel milhares de histórias.
Foi também isso um tema de que se serviu a comadre para o desconceituar no ânimo de D. Maria, sempre, é verdade, muito sorrateiramente.
Veremos quais foram os resultados que alcançaram o compadre e o Leonardo com a aliança formada com a comadre contra o concorrente à Luisinha.

XXIII - Declaração            
Enquanto a comadre dispunha seu plano de ataque contra José Manuel, Leonardo ardia em ciúmes, em raiva, e nada havia que o consolasse em seu desespero, nem mesmo as promessas de bom resultado que lhe faziam o padrinho e a madrinha. O pobre rapaz via sempre diante de si a detestável figura de seu rival a desconcertar-lhe todos os planos, a desvanecer-lhe todas as esperanças. Nas horas de sossego entregava-se às vezes à construção imaginária de magníficos castelos, castelos de nuvens, é verdade, porém que lhe pareciam por instantes os mais sólidos do mundo; de repente surdia-lhe de um canto o terrível José Manuel com as bochechas inchadas ; e soprando sobre a construção , a arrasava num volver d’olhos.
Entretanto o que havia de notável é que Luisinha, causa de tantas tormentas, ignorava tudo, e a tudo continuava indiferente. Leonardo veio a entender, depois de muito meditar, que isto constituía um dos principais defeitos de sua posição; se a comadre e o compadre conseguissem derrotar a José Manuel, e pô-lo em estado de não poder mais entrar em combate, quem poderia dizer que o triunfo era completo? Não havia ainda uma segunda campanha a dar contra a indiferença de Luisinha? Daqui concluiu ele que era mister ir já rompendo fogo por esse lado; e como lhe pareceu o de mais importância, não quis confiar a nenhum dos aliados o seu ataque, e decidiu-se a dá-lo em pessoa. Devia começar, como o sabe de cor e salteado a maioria dos leitores, que é sem dúvida nenhuma muito entendida na matéria, por uma declaração em forma.
Mas em amor, assim como em tudo, a primeira saída é o mais difícil. Todas as vezes que esta idéia vinha à cabeça do pobre rapaz, passava-lhe uma nuvem escura por diante dos olhos e banhava-se-lhe o corpo em suor. Muitas semanas levou a compor, a estudar o que havia de dizer a Luisinha quando aparecesse o momento decisivo. Achava com facilidade milhares de idéias brilhantes; porém mal tinha assentado em que diria isto ou aquilo, e já isto e aquilo lhe não parecia bom. Por várias vezes tivera ocasião favorável para desempenhar a sua tarefa, pois estivera a sós com Luisinha; porém nessas ocasiões nada havia que pudesse vencer um tremor de pernas que se apoderava dele, e que não lhe permitia levantar-se do lugar onde estava, e um engasgo que lhe sobrevinha, e que o impedia de articular uma só palavra. Enfim, depois de muitas lutas consigo mesmo para vencer o acanhamento, tomou um dia a resolução de acabar com o medo, e dizer-lhe a primeira coisa que lhe viesse à boca.
Luisinha estava no vão de uma janela a espiar para a rua pela rótula; Leonardo aproximou-se tremendo, pé ante pé, parou e ficou imóvel como uma estátua atrás dela que, entretida para fora, de nada tinha dado fé. Esteve assim por longo tempo calculando se devia falar em pé ou se devia ajoelhar-se. Depois fez um movimento como se quisesse tocar no ombro de Luisinha, mas retirou depressa a mão. Pareceu-lhe que por aí não ia bem; quis antes puxar-lhe pelo vestido, e ia já levantando a mão quando também se arrependeu. Durante todos estes movimentos o pobre rapaz suava a não poder mais. Enfim, um incidente veio tirá-lo da dificuldade. Ouvindo passos no corredor, entendeu que alguém se aproximava, e tomado de terror por se ver apanhado naquela posição, deu repentinamente dois passos para trás, e soltou um-ah!-muito engasgado. Luisinha, voltando-se, deu com ele diante de si, e recuando espremeu-se de costas contra a rótula; veio-lhe também outro-ah!-porém não lhe passou da garganta, e conseguiu apenas fazer uma careta.
A bulha dos passos cessou sem que ninguém chegasse à sala; os dois levaram algum tempo naquela mesma posição, até que o Leonardo, por um supremo esforço, rompeu o silêncio e com voz trêmula e em tom o mais sem graça que se possa imaginar perguntou desenxabidamente:
— A senhora... sabe... uma coisa?
E riu-se com uma risada forçada, pálida e tola.
Luisinha não respondeu. Ele repetiu no mesmo tom:
— Então... a senhora... sabe ou... não sabe?
E tornou a rir-se do mesmo modo. Luisinha conservou-se muda.
— A senhora bem sabe... é porque não quer dizer...
Nada de resposta.
— Se a senhora não ficasse zangada... eu dizia...
Silêncio.
— Está bom... eu digo sempre... mas a senhora fica ou não fica zangada?
Luisinha fez um gesto de quem estava impacientada.
— Pois então eu digo... a senhora não sabe... eu... eu lhe quero... muito bem.
Luisinha fez-se cor de uma cereja; e fazendo meia volta à direita, foi dando as costas ao Leonardo e caminhando pelo corredor. Era tempo, pois alguém se aproximava.
Leonardo viu-a ir-se, um pouco estupefato pela resposta que ela lhe dera, porém não de todo descontente: seu olhar de amante percebera que o que se acabava de passar não tinha sido totalmente desagradável a Luisinha.
Quando ela desapareceu, soltou o rapaz um suspiro de desabafo e assentou-se, pois se achava tão fatigado como se tivesse acabado de lutar braço a braço com um gigante.


      SEGUNDA PARTE 
I - A Comadre em exercício                
Os leitores devem estar lembrados de que o nosso antigo conhecido, de quem por algum tempo nos temos esquecido, o Leonardo-Pataca, apertara-se em laços amorosos com a filha da comadre, e que com ela vivia em santa e honesta paz. Pois este viver santo e honesto deu em tempo oportuno o seu resultado. Chiquinha (era este o nome da filha da comadre) achou-se de esperanças e pronta a dar à luz. Já vêem os leitores que a raça dos Leonardos não se há de extinguir com facilidade. Leonardo-Pataca não perdia por modo algum aqueles hábitos de ternura com que sempre o conhecemos, e nas atuais circunstâncias, quando ele via às portas da vida um fruto do seu derradeiro amor, crescia-lhe n’alma aquela violenta chama do costume; o pobre homem ardia todo por dentro e por fora, e desfazia-se em carinhos para com sua companheira.
Chegou finalmente o dia de aparecer o desejado resultado: ao amanhecer manifestara os primeiros sintomas. Leonardo levantou logo uma poeira em casa: andava de dentro para fora pretendendo fazer mil coisas, e sem fazer coisa alguma, atrapalhado e tonto. Mandou chamar a comadre, que pronta acudiu ao chamado, e começaram-se a arranjar os preparativos. Talvez alguns leitores tenham idéia do mundo infinito de arranjos que naquele tempo se punha em giro em semelhantes ocasiões. A primeira coisa a que o Leonardo-Pataca providenciou foi que se mandassem dar as nove badaladas no sino grande da Sé. Esta prática só costumava ter lugar quando a parturiente se achava em perigo, porém ele quis prevenir tudo a tempos e a horas. Mandou-se depois pedir à vizinha, pois por um descuido imperdoável não havia em casa, um ramo de palha benta; a comadre trouxe um par de bentinhos da Senhora do Monte do Carmo que tinham grande reputação de milagrosos, e o lançou ao pescoço da Chiquinha. Pôs a palha benta ao lado da cabeceira; na sala improvisou-se um oratório com uma toalha, um copo com arruda e uma imagem de Nossa Senhora da Conceição de louça, enfeitada com cordões de ouro. Chiquinha, para nada esquecer das regras estabelecidas, amarrou à cabeça um lenço branco, meteu-se embaixo dos lençóis, e começou a rezar ao santo de sua devoção. A comadre assentou-se aos pés da cama em uma banquinha, e desunhava também em um grande rosário, observando entretanto a Chiquinha, e interrompendo-se a cada instante para dar ordens ao Leonardo-Pataca, e responder ao que fora do quarto se dizia.
Leonardo-Pataca, depois de tudo arranjado, quando viu que a única coisa que restava era esperar a natureza, como dizia a comadre, pôs-se em menores, quero dizer, despiu os calções e o colete, ficou em ceroulas e chinelas, amarrou à cabeça, segundo um antigo costume, um lenço encarnado, e pôs-se a passear na sala de um lado para outro, com uma cara de fazer dó: parecia que era ele e não Chiquinha quem se achava com dores de parto. De vez em quando parava à porta do quarto que se achava cerrada, lançava para dentro um olhar de curiosidade e medo, e abanando a cabeça murmurava:
— Não sirvo para isto... estas coisas não se dão com o meu gênio... Estou a tremer como se fosse o negócio comigo...
E realmente a cada gemido forte que partia do quarto o homem estremecia e fazia-se de mil cores.
Dentro do quarto a comadre exortava a padecente, pouco mais ou menos nestes termos:
— Não vos façais de criança, menina... isso não é nada... é um pau por um olho... Não tarda aí um Bendito, e estais já livre. Estas coisas na minha mão andam depressa. Verdade seja que é o primeiro, e isto causa seu medo, mas não é coisa que valha estares agora tão desanimada; é preciso também ajudar a natureza. "Faze da tua parte que eu te ajudarei!" São palavras de Jesus Cristo.
A padecente estava porém a morrer de susto: nem se moveu à exortação da comadre. Entretanto o tempo ia passando, e a pobre rapariga a sofrer; já lhe tinha a comadre arranjado de um modo diverso os bentinhos no peito, já tinha inclinado mais sobre a cama a palma benta, e ainda nada de novo. O Leonardo-Pataca começava a impacientar-se; de vez em quando chegava à porta do quarto, e perguntava com voz esmorecida:
— Então?...
— Compadre, respondia a comadre, já lhe disse que não é bom a quem está neste estado estar ouvindo voz de homem: esteja calado e espere lá.
Continuava o tempo a passar: a comadre saiu do quarto e veio acender uma nova vela benta a Nossa Senhora, e depois de uma breve oração voltou ao seu posto. Tirou então do bolso da saia uma fita azul comprida e passou-a em roda da cintura da Chiquinha; era uma medida de Nossa Senhora do Parto. Depois disse com ar de triunfo:
— Ora agora vamos a ver, porque isto já não vai do meu agrado... Mas a culpa também é sua, menina, já lhe disse que é preciso ajudar a natureza.
Passou-se ainda algum tempo. De repente a comadre gritou para fora:
— Ó compadre, dê cá lá uma garrafa...
O Leonardo-Pataca obedeceu prontamente. Ouviu-se então dentro do quarto o som que produziria uma boca humana a soprar com toda a força dentro de alguma coisa. Era Chiquinha que por ordem da comadre soprava a morrer de cansaço dentro da garrafa que esta mandara vir.
— Com força, menina, com bem força, e Nossa Senhora não desampara os fiéis. Animo, ânimo; isto o mais que sucede é uma vez por ano. Desde que nossa mãe Eva comeu aquela maldita fruta ficamos nós sujeitas a isto. "Eu multiplicarei os trabalhos de teu parto." São palavras de Jesus Cristo!
Já se vê que a comadre era forte em história sagrada.
Ao Leonardo-Pataca tremiam-lhe cá fora tanto as pernas, que não pudera mais continuar no passeio, e achava-se sentado a um canto com os dedos nos ouvidos.
— Soprai, menina, continuava sempre dentro a comadre, soprai com Nossa Senhora, soprai com S. João Batista, soprai com os Apóstolos Pedro e Paulo, soprai com os Anjos e Serafins da Corte Celeste, com todos os Santos do paraíso, soprai com o Padre, com o Filho e com o Espírito Santo.
Houve finalmente um instante de silêncio, que foi interrompido pelo choro de uma criança.
— Ora lá vai o mau tempo, exclamou a comadre; bem dizia eu que isto não era mais do que um pau por um olho... Ah! Sr. compadre, chegue, que é agora a sua vez, venha ver a sua pecurrucha...
— É uma pecurrucha!... exclamou o Leonardo-Pataca fora de si; ora isto é de bom agouro, porque com o outro que saiu macho não fui feliz.
Recendeu então pela casa um agradável cheiro de alfazema; a comadre veio à sala, apagou as velas que estavam acesas a Nossa Senhora; foi depois desatar a fita da cintura da Chiquinha e tirar-lhe do pescoço os bentinhos.
A recém-nascida, enfraldada, encueirada, encinteirada, entoucada e com um molho de figas e meias-luas, signos de Salomão e outros preservativos de maus-olhados presos ao cinteiro, passava das mãos de Chiquinha para as do Leonardo-Pataca, que não cabia em si de contentamento; era uma formosa criancinha, em tudo o oposto de seu irmão paterno o nosso amigo Leonardo, mansa e risonha.
O Leonardo-Pataca recorreu imediatamente à folhinha para ver que nome trazia a menina; porém como este lhe não agradasse, travou logo com Chiquinha uma questão a respeito do nome que se lhe devia dar.
A comadre aproveitou-se disso para dar conta dos últimos arranjos, e depois envergou a mantilha e saiu para acudir a outras necessitadas.

II - Trama      
Como esta cena que acabamos de pintar tinha a comadre muitas outras todos os dias, porque era uma das parteiras mais procuradas da cidade; gozava grande reputação de muito entendida, e ainda nos casos mais graves era sempre a escolhida com os seus milagrosos bentinhos, a palma benta, a medida de Nossa Senhora, a garrafa soprada, e com a invocação de todas as legiões de santos, de serafins e de anjos livrava-se ela dos maiores apertos. E ninguém lhe fosse dar regras, que as não ouvia, nem do físico-mor, se nisso se metesse: era só olhar para uma mulher de esperanças, e dizia-lhe logo sem grande trabalho o sexo, o tamanho do filho que trazia nas entranhas, e com uma pontualidade miraculosa o dia e hora em que teria de ver-se desembaraçada; até às vezes, por certos sinais que só ela conhecia, chegava a dizer qual seria o gênio e as inclinações do ente que ia ver a luz. Já se vê que esta vida era trabalhosa e demandava sérios cuidados; porém a comadre dispunha de uma grande soma de atividade; e, apesar de gastar muito tempo nos deveres do ofício e na igreja, sempre lhe sobrara algum para empregar em outras coisas. Como dissemos, ela havia tomado a peito a causa dos amores de Leonardo com Luisinha, e jurara pôr José Manuel, o novo candidato, fora da chapa.
Começou pois a ocupar o seu tempo disponível nesse grave negócio, e movia uma intriga surdíssima e constante contra o rival de seu afilhado. Gozando da intimidade e do crédito de D. Maria, não perdia junto dela ocasião de desconceituar José Manuel, o que era-lhe tanto mais fácil quanto ele prestava-se a isso, e D. Maria, de espírito demandista e chicaneiro, dava o cavaco por um mexerico. Eis aqui uma das que ela armou ao adversário.
Todos sabem nesta cidade onde é o Oratório de Pedra; mas o que todos talvez não saibam é para que serviu ele em outros tempos. Sem dúvida naquele oratório havia a imagem de algum santo, e o povo devoto ia ali rezar? Exatamente. Mas por que é que hoje não continua essa prática, por que apenas se conserva sobre a parede aquela espécie de guarita de pedra, sem imagem alguma, sem luz à noite, e diante da qual passam todos irreverentemente sem tirar o chapéu e curvar o joelho? Primeiro que tudo extinguiu-se isso pela razão por que se extinguiram muitas coisas boas daquele bom tempo; começaram todos a aborrecer-se de achá-las boas, e acabaram com elas. Depois houve a respeito do Oratório de Pedra muito boas razões policiais para que ele deixasse de ser o que era.
O leitor, que sem dúvida sabe muito bem de quanto eram nossos pais crentes, devotos e tementes a Deus, se admirará talvez de ler que houve razões policiais para a extinção de um oratório. Entretanto é isso uma verdade, e se fosse ainda vivo o nosso amigo Vidigal, de quem já tivemos ocasião de falar em alguns capítulos desta historieta, poderia dizer quanto garoto pilhou em flagrante delito, ali mesmo aos pés do oratório, ajoelhado, contrito e beato.
Quando passava a via-sacra e que se acendia a lâmpada do oratório, o pai de família que morava ali pelas vizinhanças tomava o capote, chamava toda a gente de casa, filhos, filhas, escravos e crias, e iam fazer oração ajoelhando-se entre o povo diante do oratório. Mas se acontecia que o incauto devoto se esquecia da filha mais velha que se ajoelhava um pouco mais atrás e embebido em suas orações não estava alerta, sucedia-lhe às vezes voltar para casa com a família dizimada: a menina aproveitava-se do ensejo, e sorrateiramente escapava-se em companhia de um devoto que se ajoelhara ali perto, embrulhado no seu capote, e que inda há dois minutos todos tinham visto entregue fervorosamente às suas súplicas a Deus.
Aquilo era a execução do plano concertado na véspera ao cair de ave-marias, através dos postigos da rótula. Outras vezes, quando estavam todos os circunstantes entregues à devoção, e que a ladainha entoada a compasso enchia aquele circuito de contrição, ouvia-se um grito agudo e doloroso que interrompia o hino; corriam todos para o lugar donde partira, e achavam um homem estendido no chão com uma ou duas facadas.
Não levamos ainda em conta as inocentes caçoadas que a todo instante faziam os gaiatos. Eis aqui pois por que, além de outros motivos, dissemos que tinham havido razões policiais para que se acabasse com as piedosas práticas do Oratório de Pedra.
No tempo em que se passavam as cenas que temos narrado ainda o Oratório de Pedra estava no galarim. Um ou dois dias depois do nascimento do segundo filho de Leonardo-Pataca correu pela cidade a notícia de um grande escândalo que se passara nesse lugar clássico dos escandalos: uma moça, que vivia em companhia de sua mãe, velha, rica e devota, indo com ela rezar junto ao Oratório, na ocasião da passagem da via-sacra, fugira, tendo levado consigo um pé de meia preta contendo uma boa porção de peças de ouro. Falava-se muito no caso, não porque fosse naquele tempo coisa de estranhar-se, mas porque havia um mistério no sucesso: ninguém sabia com quem tinha fugido a moça.
D. Maria, como todos, estava ansiosa por ver deslindada a questão, quando lhe apareceu em casa a comadre que a vinha visitar.
D. Maria estava sentada na sua banquinha, tendo diante de si uma enorme almofada de renda carregada com seis ou sete dúzias de bilros, e esmerava-se em fazer um largo pegamento. A seu lado, sentada em uma esteira, cercada por uma porção de negrinhas, crias de D. Maria, estava Luisinha também ocupada em fazer renda.
Quando a comadre entrou, D. Maria largou imediatamente a almofada do colo, tirou do nariz e pôs na testa um par de óculos de aros de prata com que trabalhava, e começou logo por tocar no caso que a preocupava. A comadre fez sinal que mandasse retirar Luisinha e as mais crianças; e a conversa caminhou livremente.
— Então que me diz, senhora, da desgraça da pobre velha? Criar a gente uma rapariga com todo o carinho, e no fim ter aquela recompensa!... no meu tempo não se viam coisas destas...
— Que quer, senhora? respondeu a comadre; pois foi ali, nas barbas de todos. Não havia um instante que ela havia chegado com a velha, e que se tinham todas duas ajoelhado ao pé de mim...
— Ao pé da comadre? Pois a comadre estava lá?...
— Estava... que antes não estivesse...
— Mas o diabo, senhora, acrescentou D. Maria, é ninguém saber quem foi o maldito que fugiu com ela...
A comadre interrompeu, dando uma risadinha sardônica.
— Tenho perguntado a todos, e ninguém sabe dizer-me.
— É porque todos estavam cegos...
— Como?
— Mas não o estava eu, por mal de meus pecados, que antes estivesse...
— Pois viu e sabe com quem foi... disse D. Maria, remexendo-se de prazer em cima da banquinha.
A idéia de poder saber de uma novidade que todos ignoravam encheu-a de contentamento.
— Mas então quem foi, vamos; quero saber quem foi o ladrão da moça e do dinheiro...
— Só lhe direi, respondeu a comadre depois de alguma hesitação, se me prometerdes guardar todo o segredo, que o caso é muito sério.
— Ora bem sabe que eu... é o mesmo que cair num poço.
Apesar de estarem sós, a comadre inclinou-se ao ouvido de D. Maria, e disse-lhe o mais baixinho que pôde:
— Foi o nosso grande camarada... a boa peça do José Manuel...
— O que é que diz, comadre?
— Vi, respondeu esta, arregalando com dois dedos os olhos, com estes que a terra há de comer... Se eles estavam ao pé de mim... D. Maria ficou por algum tempo muda deestupefação.

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