PRIMEIRA PARTE
Anotações Orientadoras - Anotações para tomar alguma inteligência dos exercícios espirituais que se seguem e para ajudar, assim, o que os há de dar como o que os há de receber.
I. Por este nome, exercícios espirituais, entende-se todo o modo de examinar a consciência, de meditar, de contemplar, de orar vocal e mentalmente, e de outras operações espirituais, conforme adiante se dirá. Porque, assim como passear, caminhar e correr são exercícios corporais, da mesma maneira todo o modo de preparar e dispor a alma, para tirar de si todas as afeições desordenadas e, depois de tiradas, buscar e achar a vontade divina na disposição da sua vida para a salvação da alma se chamam exercícios espirituais.
II. A pessoa que dá a outrem modo e ordem para meditar ou contemplar, deve narrar fielmente a história dessa contemplação ou meditação, discorrendo somente pelos pontos, com breve ou sumária explicação. Porque, quando a pessoa que contempla toma o fundamento verdadeiro da história discorre e raciocina por si mesma, e acha alguma coisa que faça declarar um pouco mais ou sentir a história, quer pelo próprio raciocínio quer porque o entendimento é iluminado pela força divina, é-lhe de mais gosto e fruto espiritual do que se quem dá os exercícios explicasse e desenvolvesse muito o sentido da história; porque não é o muito saber que sacia e satisfaz a alma, mas o sentir e gostar as coisas internamente.
III. Como em todos os exercícios espirituais seguintes usamos dos atos do entendimento, quando discorremos, e dos da vontade, quando excitamos os afetos [50,6], advirtamos que, nos atos da vontade, quando falamos vocal ou mentalmente com Deus nosso Senhor, ou com os seus santos, se requer, da nossa parte, maior reverência do que quando usamos do entendimento para entender.
IV. Dado que para os exercícios seguintes se tomam quatro semanas, para corresponder às quatro partes em que se dividem os Exercícios, a saber: a primeira, que é a consideração e contemplação dos pecados; a segunda, a vida de Cristo nosso Senhor até ao dia de Ramos, inclusive; a terceira, a Paixão de Cristo nosso Senhor; a quarta, a Ressurreição e Ascensão, a que se juntam três modos de orar; contudo não se entenda que cada semana tenha, necessariamente, sete ou oito dias. Porque, como acontece que, na primeira semana, alguns são mais lentos para achar o que buscam, a saber, contrição, dor, lágrimas por seus pecados; assim também, como uns são mais diligentes que outros, e mais agitados e provados de diversos espíritos, requer-se, algumas vezes, encurtar a semana e, outras vezes, prolongá-la, e assim em todas as outras semanas seguintes, buscando as coisas segundo a matéria proposta. Mas os Exercícios concluir-se-ão, pouco mais ou menos, em trinta dias.
V. Muito aproveita, ao que recebe os exercícios, entrar neles com grande ânimo e liberalidade para com o seu Criador e Senhor, oferecendo-lhe todo o seu querer e liberdade, para que sua divina majestade, assim de sua pessoa como de tudo o que tem, se sirva conforme a sua santíssima vontade.
VI. Quando, o que dá os exercícios, advertir que não vêm à alma do praticante algumas moções espirituais, tais como consolações ou desolações, nem é agitado de vários espíritos, muito o deve interrogar acerca dos exercícios, se os faz nos seus devidos tempos e como; e também acerca das adições, se as faz com diligência, pedindo conta de cada uma destas coisas em particular. Fala-se de consolação e desolação em [316-324], de adições em [7390].
VII. Se o que dá os exercícios vê que o que os recebe está desolado e tentado, não se mostre com ele duro nem desabrido, mas brando e suave. Dando-lhe ânimo e forças para ir adiante, descobrindo-lhe as astúcias do inimigo da natureza humana, e fazendo-o preparar e dispor para a consolação que há de vir.
VIII. O que dá os exercícios, segundo a necessidade que notar naquele que os recebe acerca das desolações e astúcias do inimigo e também das consolações, poderá expor-lhe as regras da primeira e segunda semana que são para conhecer os vários espíritos: [313-327] e [328-336].
IX. É de advertir que, quando o praticante anda nos exercícios da primeira semana, se é pessoa que não tenha sido versada em coisas espirituais, e se é tentada grosseira e abertamente, mostrando, por exemplo, impedimentos em prosseguir no serviço de Deus nosso Senhor, tais como trabalhos, vergonha e temor pela honra do mundo, etc.; o que dá os Exercícios não lhe deve explicar as regras dos vários espíritos da segunda semana, porque, sendo-lhe proveitosas as da primeira semana, o prejudicariam as da segunda, por serem matéria mais subtil e demasiado elevada para que a possa compreender.
X. Quando o que dá os exercícios pressente que aquele que os recebe é combatido e tentado sob aparência de bem, então é o momento próprio para lhe falar das regras da segunda semana já referidas. Porque, comumente, o inimigo da natureza humana tenta mais sob aparência de bem, quando a pessoa se exercita na via iluminativa que corresponde aos exercícios da segunda semana, e não tanto na vida purgativa que corresponde aos exercícios da primeira semana.
XI. Ao que toma os exercícios na primeira semana, é-lhe proveitoso não saber coisa alguma do que há de fazer na segunda semana; mas que trabalhe de tal modo na primeira, para alcançar aquilo que busca, como se, na segunda, nenhuma coisa boa esperasse achar.
XII. O que dá os Exercícios há de advertir muito ao que os recebe que, uma vez que em cada um dos cinco exercícios ou contemplações, que se farão cada dia, há de estar durante uma hora, procure, por isso, sempre que o espírito fique satisfeito em pensar que esteve uma hora inteira no exercício, e antes mais que menos. Porque o inimigo costuma, não pouco, tentar fazer que se encurte a hora da contemplação, meditação ou oração.
XIII. É também de advertir que, como no tempo da consolação é fácil e leve estar na contemplação a hora inteira, assim no tempo da desolação é muito difícil completá-la. Portanto, a pessoa que se exercita, para agir contra a desolação e vencer as tentações, deve sempre estar alguma coisa mais além da hora completa, para que não só se habitue a resistir ao adversário, mas ainda a derrotá-lo.
XIV. Se o que dá os Exercícios vê que quem os recebe anda consolado e com muito fervor, deve-o prevenir que não faça promessa nem voto algum inconsiderado e precipitado; e quanto mais o conhecer de caráter ligeiro, tanto mais o deve prevenir e admoestar. Porque, ainda que justamente alguém possa mover a outrem a entrar na vida religiosa, na qual se supõe fazer voto de obediência, pobreza e castidade; e embora uma boa obra que se faz com voto, seja mais meritória que a que se faz sem ele, deve-se atender muito ao caráter e à capacidade da pessoa, e a quanta ajuda ou estorvo poderá encontrar no cumprimento daquilo que quisesse prometer.
XV. O que dá os Exercícios não deve mover ao que os recebe mais a pobreza nem a promessa dela do que a seus contrários, nem a um estado ou modo de viver mais que a outro. Porque, embora fora dos Exercícios, lícita e merecidamente possamos mover todas as pessoas, que provavelmente tenham capacidade, a escolher continência, virgindade, vida religiosa ou qualquer outro modo de perfeição evangélica; contudo, nos Exercícios Espirituais, é mais conveniente e muito melhor, enquanto busca a divina vontade, que o mesmo Criador e Senhor se comunique à alma a Ele devotada, abraçando-a no seu amor e louvor, e dispondo-a a seguir pelo caminho em que melhor o pode servir no futuro. De maneira que, quem dá os Exercícios não propenda nem se incline a uma parte nem a outra; mas, estando no meio, como o fiel da balança, deixe agir o Criador imediatamente com a criatura, e a criatura com o seu Criador e Senhor.
XVI. Para isso, a saber, para que o Criador e Senhor opere mais seguramente na sua criatura, se por ventura essa alma está afeiçoada e inclinada desordenadamente a uma coisa, é muito conveniente que, empregando todas as suas forças, se motive ao contrário daquilo a que se sente mal afeiçoada; e assim, se está inclinada a buscar e a ter um ofício ou benefício, não pela honra e glória de Deus nosso Senhor, nem pela salvação espiritual das almas, mas por seus proveitos próprios e interesses temporais, deve inclinar-se ao contrário, instando em orações e outros exercícios espirituais e pedindo a Deus nosso Senhor o contrário, a saber, que não querer esse ofício ou benefício nem outra coisa qualquer, se sua divina majestade, ordenando seus desejos, não lhe mudar a sua afeição anterior; de maneira que o motivo de desejar ou ter uma coisa ou outra seja só o serviço, a honra e a glória de sua divina majestade.
XVII. É muito proveitoso que o que dá os Exercícios, sem querer perguntar nem saber os pensamentos pessoais ou pecados de quem os recebe, seja informado fielmente das várias agitações e pensamentos que os vários espíritos lhe trazem; porque, segundo o maior ou menor aproveitamento, lhe pode dar alguns exercícios espirituais convenientes e conformes à necessidade da tal alma assim agitada.
XVIII. Segundo a disposição das pessoas que querem fazer exercícios espirituais, a saber, conforme a idade, letras ou engenho que têm, se hão de aplicar tais exercícios; para que não se dêem a quem é rude ou de compleição delicada, coisas que não possa descansadamente levar e com elas aproveitar. Do mesmo modo, conforme quiserem dispor-se, assim se devem dar a cada um, para que mais se possa ajudar e aproveitar. Portanto àquele que se quer ajudar para se instruir e chegar a certo grau de contentar a sua alma pode dar-se-lhe o exame particular [24-31] e, depois, o exame geral [32-43] e, juntamente, durante meia hora, pela manhã, o modo de orar sobre os mandamentos, pecados mortais, etc. [238-248], recomendando-lhe também a confissão de seus pecados, de oito em oito dias, e, se puder, tomar o sacramento da eucaristia de quinze em quinze dias, e, se o deseja, melhor de oito em oito dias. Esta maneira é mais própria para pessoas mais rudes ou sem letras. Se lhes declare cada mandamento e também os pecados mortais, os preceitos da Igreja, os cinco sentidos, e as obras de misericórdia. Assim mesmo, se o que dá os exercícios vir que quem os recebe é de débil compleição ou de pouca capacidade natural, de quem não se espera muito fruto, é mais conveniente dar-lhe alguns destes exercícios leves, até que se confesse de seus pecados; e, depois, dar-lhe alguns exames de consciência e maneira de se confessar mais amiúde do que costumava, para se conservar no que conseguiu. Não avance com matérias de eleição nem quaisquer outros exercícios dos que estão fora da primeira semana; sobretudo quando com outras pessoas se pode obter maior proveito, e falta tempo para fazer tudo.
XIX. Quem estiver ocupado em cargos públicos ou negócios de que convém ocupar-se, se é instruído ou inteligente, tome uma hora e meia para se exercitar, se lhe exponha para que é criado o homem. Pode dar-se-lhe também, por espaço de meia hora, o exame particular e depois o exame geral e o modo de se confessar e de receber o sacramento da eucaristia. Faça, durante três dias, em cada manhã, por espaço de uma hora, a meditação do primeiro, segundo e terceiro pecado [45-53]; depois, durante outros três dias, à mesma hora, a meditação do processo dos pecados [55-61]; depois, outros três dias, à mesma hora, faça a das penas que correspondem aos pecados [65-72]. Se lhe dêem, em todas as três meditações, as dez adições [73-90]; para os mistérios de Cristo nosso Senhor, siga-se o mesmo processo que mais adiante e amplamente nos próprios exercícios se declara.
XX. A quem está mais desembaraçado e deseja aproveitar em tudo o possível, se lhe dêem todos os exercícios espirituais, pela mesma ordem que seguem; neles, por via de regra, tanto mais se aproveitará quanto mais se apartar de todos os amigos e conhecidos, e de qualquer preocupação terrena, mudando-se, por exemplo, da casa onde morava e tomando outra casa ou quarto, para aí habitar o mais secretamente que puder; de maneira que esteja em sua mão ir cada dia à missa e a vésperas, sem temor de que os seus conhecidos lhe sejam causa de impedimento. Desta separação seguem-se, além de outros muitos, três proveitos principais: O primeiro é que, ao apartar-se uma pessoa de muitos amigos e conhecidos assim como de muitos negócios não bem ordenados, para servir e louvar a Deus nosso Senhor, não pouco merece diante de sua divina majestade; o segundo é que, estando assim apartado, e não tendo o espírito repartido por muitas coisas, mas pondo todo o cuidado numa só coisa, a saber, em servir a seu Criador e aproveitar à sua própria alma, usa das suas potências naturais mais livremente, para buscar com diligência o que tanto deseja; o terceiro é que, quanto mais a nossa alma se acha só e apartada, tanto mais apta se torna para se aproximar e unir a seu Criador e Senhor. E quanto mais assim se une, mais se dispõe para receber graças e dons da sua divina e suma bondade.
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