Um sacristão estava distribuindo círios para quem quisesse acompanhar a procissão do Senhor Morto, em certa sexta-feira da Paixão, e sobrou um. Procurou com os olhos, estavam todos servidos. Entrou na igreja, colocou o círio atrás da porta e falou:
- Este aqui fica para o diabo.
Passado algum tempo, durante um naufrágio, o sacristão foi aprisionado pelos piratas e levado para a ilha dos Mouros. Andava desesperado, quando uma voz falou perto dele:
- Quando sentir bater no seu rosto uma ramada, agarre-se nela.
Ele assim fez. Sentindo o contato dos galhos, agarrou-se aos ramos invisíveis. No mesmo instante deu um vento forte, e quando ele viu estava descendo diante da sua porta.
Porém, não ficou sabendo quem foi o seu benfeitor. Como gostava de viajar, saiu novamente correndo mundo, e, desta vez a pé, por uma região desolada e pobre. Acabou-se o dinheiro, não encontrava trabalho e parou diante de uma granja. Vendo tantas galinhas, pediu que a mulher lhe fritasse meia dúzia de ovos, pelo amor de Deus. Não tinha dinheiro para pagar, mas iria correr mundo e quando voltasse, assim o ajudasse Deus, pagaria a dívida.
- E desta vez acho que ficarei curado da mania de viajar. Vou ficar quieto na sacristia da igreja da minha terra, que é um lugar santo.
A mulher fritou os seis ovos, ele os comeu, deliciadamente, e partiu.
Muitas aventuras o esperavam, andou ainda bastante, porém sorriu-lhe a sorte, progrediu, fez bons negócios, enriqueceu. Quis fazer duas coisas imediatamente: pagar aqueles seis ovos comidos há tanto tempo, dez anos ou mais, e voltar para a quietude da sua igreja.
Uma tarde, estava a granjeira diante da porta, viu apear de um cavalo baio, com arreios de couro macio e prata, um homem bem-vestido. Não o reconheceu senão quando ele contou que era o devedor dos seis ovos.
- Vim pagar-lhe, boa mulher, que me atendeu na hora da fome e da necessidade. Quero pagar tudo e deixar-lhe ainda uma boa quantia de presente.
A ganância mordeu o coração da mulher, vendo-o tão generoso, parecendo endinheirado.
- Vou fazer as contas - respondeu de cara fechada.
- Contas? Que contas? - estranhou o homem. - Pois então lá é preciso estar fazendo contas para saber o preço de seis ovos? Que lhe deu, boa mulher?
E ela lhe apresentou uma conta fantástica, uma lista imensa com o preço de milhares de galinhas.
- Que é isso? - perguntou o homem.
- Se eu tivesse posto aqueles seis ovos para chocar, teriam saído cinco franguinhas e um frango. As frangas botariam e tornariam a chocar. Em dez anos, eu teria tudo isto que está aqui nesta lista.
Como o homem se recusasse a pagar aquele absurdo, foram todos ao juiz mais próximo, e o julgamento do caso ficou marcado para daí a uns dias.
Muito desgostoso, foi o antigo sacristão andar um pouco, para espairecer. Andava e pensava, de cara amarrada, cenho franzido, temendo já tornar a ficar pobre, por causa da ambição da granjeira. Numa de suas voltas, encontrou-se com um homem, todo vestido de preto, de colarinho duro, sapatos de verniz, muito bem penteado.
- Que mal o aflige, amigo, que o vejo tão transtornado?
Contou-lhe tudo o homem, e o outro, sorrindo, falou:
- Ora, não é caso para tristezas. Acontece que sou advogado. O senhor ainda nem pensou em contratar os serviços de um profissional?
- Ainda não.
- Pois então, eu me considero contratado. Vá tranquilo. No dia do julgamento, estarei lá para defendê-lo.
Parecia tão seguro de si que o homem se animou.
Chegou o dia do julgamento. Começou a sessão. Alguns casos foram julgados. E foi a vez do sacristão. E nada de aparecer o advogado. O juiz esperou. Nada. Começou a ficar impaciente, fulminando com o olhar o pobre homem, que ainda estava mais agoniado. E o advogado não aparecia. Ele estava vendo que, por falta de defesa, ia ser obrigado a entregar todo o seu dinheiro, ia ser preso, iam matá-lo. Suava frio e maldizia a hora em que aceitara o serviço de qualquer desconhecido. Nisso, o advogado entrou. O homem se animou, mas olhando para ele, viu-lhe a barbicha em ponta, os pés de pato e tremeu.
"Com quem me meti, neste embaraço! E agora mais esta. Acabo perdendo também a alma"
Porém o temível advogado tranquilizou-o:
- Se lembra do círio que deixou para mim, atrás da porta da igreja? Em agradecimento, já o livrei da prisão na ilha dos Mouros e aqui estou novamente para tornar a salvá-lo. Tranquilize-se que não quero a sua alma.
E dirigindo-se ao juiz, que não sabia da sua condição satânica, falou, cortesmente:
- Queira desculpar o meu atraso, estava cozinhando um pouco de feijão, para plantar.
- Estava fazendo o quê!?
- Estava cozinhando feijão para plantar - repetiu o advogado, insensível às risadas que estalavam de todos os lados, ao ouvir o povo declaração tão esquisita.
O juiz recostou-se na sua alta cadeira e riu também.
- Amigo, - disse ele - trabalho completamente perdido, pois feijão cozido não nasce.
- Então, por que estamos aqui debatendo se de ovos fritos nascem pintos?
E foi assim que o sacristão pôde voltar em paz à sua igreja.
Ruth Guimarães. Lendas e Fábulas do Brasil. 1964.
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